Contos de Andersen/As flores da pequena Ida

As flores da pequena Ida

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"As flores da pequena Ida"
ilustração de Anne Anderson (1874–1930)

“Minhas pobres florzinhas estão todas mortas!” disse a pequena Ida. “Elas estavam tão lindas ontem à noite, e agora todas as folhas murcharam. Porque será que isto aconteceu?” perguntou ao colega de escola, que estava sentado com ela no sofá; e de quem ela gostava muito. Ele conhecia as histórias mais lindas, e gostava de recortar as figuras mais engraçadas — corações, com mulheres dançando dentro deles, flores, e enormes castelos onde as portas podiam ser abertas: ele era um aluno feliz. “Mas porque será que as flores estão tão murchas hoje?” ela perguntou novamente, mostrando-lhe um buquê inteiro, que estava todo murcho.

“Você sabe porque isso acontece com elas?” disse o estudante. “É que as flores foram a um baile ontem à noite, e é por isso que elas estão cansadas e pendendo a cabeça.”

“Mas as flores não sabem dançar!” exclamou a pequena Ida.

“Oh, sabem sim,” disse o estudante, “quando anoitece, e nós estamos dormindo, elas dão pulo de felicidade. Quase todas as noites elas vão ao baile.”

“E as crianças também podem ir a esse baile?”

“Sim,” disse o estudante, “as pequenas margaridas, e os lírios do vale.”

“Onde as flores mais lindas ficam dançando?” perguntou a pequena Ida.

“Ora, você não sai sempre dos portões da cidade, perto do grande castelo, onde o rei vem passar o verão, é aí que fica o lindo jardim, com todas as flores? Você já deve ter visto os cisnes, que nadam ao teu encontro quando você oferece a eles migalhas de pão? Há bailes muito importantes lá, pode acreditar em mim.”

“Ontem eu saí até jardim com minha mãe,” disse Ida; “mas todas as folhas haviam caído das árvores, e não havia nenhuma folha nos galhos. Onde estão elas? No verão havia tantas.”

“Elas estão lá dentro do castelo,” respondeu o estudante. “Você devia saber, que assim que o rei e toda a sua corte vão para a cidade, as flores vão correndo do jardim para o castelo, e elas ficam felizes. Você precisava ver isso. As duas rosas mais lindas ficavam sentadas no trono, e então, fazendo de conta que eram o rei e a rainha; todos os galos com cristas vermelhas são colocados um de cada lado, ficam de pé e fazem reverência; eles são os camareiros. E depois, todas as flores belas se aproximam, e começa o grande baile. As violetas azuis representam os pequenos cadetes navais: elas dançam com os jacintos e os açafrões, a quem chamam de jovens donzelas; as tulipas e os grandes lírios de tigre[1]são senhoras dedicadas que ficam olhando se tudo está indo bem na dança, e que tudo ocorra como planejado.”

“Mas,” perguntou a pequena Ida, “ninguém faz nada às flores, por dançarem no castelo do rei?”

“Na verdade, ninguém sabe que isto acontece,” respondeu o estudante. “Algumas vezes, com certeza, o velho administrador do castelo vem algumas noites, para dar uma olhada. Ele costuma trazer um grande molho de chaves; mas assim que as flores ouvem o barulho das chaves, elas ficam bem quietinhas, se escondem atrás de longas cortinas, ficando somente com as cabeças de fora. Então, o velho administrador diz, "Estou sentindo o cheiro de flores aqui," mas ele não consegue vê-las.

“Que legal!” exclamou a pequena Ida, batendo palminhas. Mas será que eu consigo ver as flores?”

“Claro que sim,” disse o estudante; “lembre-se apenas de espiar pela janela, quando você for sair novamente; então, você as verá. Foi o que eu fiz hoje. E lá estava um longo lírio amarelo deitado no sofá se espreguiçando. Ele se imaginava um cavalheiro da corte.”

“Será que as flores do Jardim Botânico também podem sair para ir lá? Elas conseguem percorrer longas distâncias?”

“É claro que podem,” respondeu o estudante; “se quiserem, elas podem até voar. Você já viu as lindas borboletas, vermelhas, amarelas, e brancas? Elas se parecem muito com as flores; e é isso o que elas já foram. Elas voaram de seus caules para o céu lá no alto, batendo no ar com suas folhinhas, como se as folhinhas fossem pequenas asas, e assim voaram. E como elas se comportaram direitinho, elas tiveram permissão para voar durante o dia também, e não tinham que voltar para casa novamente para ficarem sentadinhas em seus caules; e assim finalmente as asas se tornaram asas de verdade. Foi isso que você viu.

No entanto, pode ser que as flores do Jardim Botânico jamais estiveram no castelo do rei, ou jamais ficaram sabendo dos alegres festejos que acontecem por lá a noite. Por isso vou lhe dizer uma coisa: o professor de botânica, que mora perto daqui, ficará muito surpreso. Você já viu ele, não viu? Quando você for ao jardim da casa dele, você deve dizer à uma das flores, que no castelo, todas as noites, há um grande baile. Então, esta flor irá contar para todas as outras, e todas elas irão voar: se o professor então, sair para o jardim, nenhuma flor estará ali, e ele nem conseguirá imaginar para onde elas foram.”

“Mas como uma flor pode contar para a outra? Pois, sabemos que as flores não podem falar.”

“Isso é verdade, elas não podem,” respondeu o estudante; “mas elas conseguem fazer sinais. Você já percebeu que quando o vento sopra levemente, as flores ficam balançando umas para as outras, e mexem suas folhas verdes? Elas entendem esses sinais tão bem como se estivessem conversando.”

“Será que o professor consegue entender esses sinais?” perguntou Ida.

“Sim, com certeza. Um dia de manhã ele veio até o jardim, e viu que havia ali um grande pé de urtiga, que estava fazendo sinais com suas folhas para um lindo cravo vermelho. Ele estava dizendo, "Você é tão linda, e eu te amo muito." Mas o professor não gostava muito dessas coisas, e ele bateu diretamente nas folhas da urtiga, porque as folhas são as mãos das plantas; e ele sentiu que foi picado, e desde então, nunca mais ousou tocar na folha de uma urtiga.”

“Isso foi engraçado,” exclamou a pequena Ida; e ria muito.

“Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança?” disse o chato do conselheiro secreto, que tinha vindo para fazer uma visita, e estava sentado no sofá. Ele não gostava do estudante, e resmungava sempre quando o via recortando as figuras cômicas e engraçadas — que algumas vezes era um homem pendurado numa forca e segurando um coração na mão, para mostrar que ele era um ladrão de corações; outras vezes uma velha bruxa voando numa vassoura, levando o marido no nariz. O conselheiro não conseguia aguentar isso, e então, ele disse, como fez agora, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!”

Mas, para a pequena Ida, o que o estudante havia falado sobre as flores parecia muito divertido; e ela ficou pensando muito sobre isso. As flores estavam com as cabeças penduradas, pois elas estavam cansadas, porque elas tinham dançado a noite toda; podiam até estarem doentes. Então, ela as levou até onde estavam todos os seus brinquedos, em cima de uma bonita mesinha, e a gaveta estava toda cheia de coisas lindas. Na cama das bonecas estava a sua boneca Sofia, dormindo; mas, a pequena Ida disse para ela:

“Agora você precisa acordar, Sofia, e tentar dormir na gaveta esta noite. As pobres florzinhas estão doentes, e elas precisam deitar em sua cama; talvez, então, elas fiquem boas novamente.”

E ela, imediatamente, tirou a boneca; mas a boneca parecia estar zangada, e não disse nem uma palavra; ela estava brava, porque não podia deitar na própria cama.

Então, Ida colocou as flores na cama da boneca, cobriu-as com o pequeno cobertor, e disse que elas podiam dormir descansadas para ficarem boas, depois ela iria preparar um pouco de chá, para que elas pudessem sarar, e poderem se levantar no dia seguinte. E ela puxou bem as cortinas em volta da caminha, para que o sol não incomodasse os olhinhos delas. E durante toda a noite ela não conseguia deixar de pensar no que o estudante havia lhe falado. E quando ela mesma estava indo dormir, fez questão de olhar por traz das cortinas penduradas nas janelas onde ficavam as lindas flores da sua mãe — alguns jacintos bem como algumas tulipas; então, ela sussurrou bem baixinho, “Eu sei que vocês vão ao baile hoje a noite!” Mas as flores faziam de conta que não haviam entendido nenhuma palavra, e não moviam sequer uma folha, ainda assim, a pequena Ida sabia que elas haviam entendido.

Quando ela foi para cama, ela ficou durante muito tempo pensando como seria lindo ver as flores felizes dançando no castelo do rei. “Gostaria de saber se as minhas florzinhas já estiveram lá?” E então, adormeceu. Durante a noite ela acordou: ela tinha sonhado com as flores, e com o estudante que o conselheiro havia repreendido. Estava muito tranquilo no quarto em que Ida dormia; a lamparina brilhava em cima da mesa, e a mãe e o pai dela também estavam dormindo.

“Preciso saber se as minhas flores estão ainda deitadas na cama da Sofia?” pensava consigo mesma. “Ah, como eu gostaria de saber!” Então, ela se levantou, e olhou pela porta que ficou entreaberta; e lá estavam as flores e todos os seus brinquedos. Ela ficou escutando, e então, lhe pareceu ter ouvido alguém tocando o piano no quarto ao lado, suave e divinamente, como ela nunca tinha ouvido antes.

“Agora, com certeza, todas as flores estarão dançando lá dentro!” pensou ela. “Oh, como eu gostaria de ver isso!” Mas ela não ousou sair do lugar, pois ela poderia incomodar o seu pai e a sua mãe.

“Ah, se as flores pudessem vir até aqui!” pensou ela. Mas elas não vinham, e a música continuava a tocar maravilhosamente; então, ela não aguentou mais, porque a música era linda demais; e saiu bem devagarzinho da cama, e tranquilamente caminhou até a porta, e deu uma olhada dentro do quarto. Oh, o que ela viu, era tudo tão esplêndido!

A lamparina não estava iluminando, mas tudo estava tão claro: a lua brilhava pela janela e refletia no meio do ambiente; parecia que era dia. Todos os jacintos e tulipas desfilavam em duas longas filas no chão; não havia nenhuma delas na janela. Todos os vasos de flores estavam vazios. No chão, todas as flores dançavam graciosamente umas ao redor das outras, criando uma corrente perfeita, e abraçavam-se umas às outras com as longas folhas verdes fazendo uma roda. Mas no piano tocava um grande lírio amarelo, que a pequena Ida certamente o tinha visto no verão passado, pois ela se lembrava do que o estudante havia lhe falado, “Como ela se parece com a Senhorita Lina.”

Então, todos riram dele; mas agora, para a pequena Ida, parecia mesmo, como se a longa flor amarela fosse, sem dúvida, a jovem dama; com os seus mesmos modos de tocar — algumas vezes inclinando sua longa face amarela para um lado, outras vezes para o outro lado, e balançando a cabeça no ritmo da encantadora música! Ninguém notou a pequena Ida. Então, ela viu um grande açafrão azul pular em cima da mesa, onde estavam os brinquedos, e ir até a cama das bonecas e puxar as cortinas de lado; ali estavam as flores doentes, mas elas se levantaram imediatamente, e balançavam-se umas para as outras, como a dizer que desejavam dançar também. O velho boneco limpador de chaminés, cujo lábio inferior se partira, ficou de pé e fazia reverência para as flores sorridentes: e elas não pareciam estar doentes agora; ela davam pulos no meio das outras, e estavam muito felizes.

Então, pareceu que alguma coisa caiu da mesa. Ida olhou nessa direção. Era a atrevida vara de bétula que havia pulado! Ela parecia acreditar que também fosse uma flor. De qualquer forma, tudo era muito lindo; um pequeno boneco de cera, com um chapéu tão grande na cabeça igual ao que o conselheiro usava, sentou em cima dela. A vara de bétula pulava entre as flores com suas três pernas, e ela batia o pé bem alto, porque estava dançando a mazurca; e as outras flores não conseguiam dançar essa música, porque elas eram leves demais, e não conseguiam bater o pé com força daquele jeito.

O boneco de cera sobre a vara de bétula de repente ficou grande e longo, deu uma volta sobre as flores de papel, e disse, “Como é que alguém pode colocar essas coisas na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas!” ora, o boneco de cera era exatamente o conselheiro com o seu longo chapéu, e era mesmo amarelo e mal humorado como ele. Mas as flores de papel batiam-lhe nas pernas finas, obrigando-o a se encolher, e tornar-se novamente um pequenino boneco de cera. Isso era muito engraçado de ver; e a pequena Ida não conseguia parar de rir. A vara de bétula continuou dançando, e o conselheiro foi obrigado a dançar também; não importava se ele quisesse ficar grande e longo, ou permanecer o pequeno boneco de cera amarelo com o grande chapéu preto. Então, as outras flores decidiram ajudá-lo, principalmente aquelas que haviam se deitado na cama da boneca, e então, a vara de bétula parou de dançar. No mesmo instante, ouviu-se uma batida forte dentro da gaveta, onde Sofia, a boneca de Ida, estava com muitos outros brinquedos. O limpador de chaminés correu até a ponta da mesa, deitou de bruços, e começou a puxar a gaveta. Sofia então, se levantou, e olhava ao redor admirando tudo aquilo.

“Está havendo um baile aqui,” disse ela; “porque ninguém me avisou?”

“Você quer dançar comigo?” perguntou o limpador de chaminés.

“Até parece que você é o tipo ideal para dançar!” ela respondeu, e virou as costas para ele.

Então, ela sentou na gaveta, e achou que uma das flores viria convidá-la para dançar; mas nenhuma apareceu. Então, ela tossiu, “Hum! hum! hum!” mesmo assim ninguém veio. O limpador de chaminés dançou sozinho, e isso não era tão mau.

Como nenhuma das flores pareciar notar Sofia, ela então, pulou da gaveta e foi direto para o chão, fazendo um grande barulho. As flores então, vieram todas correndo, e perguntaram se ela tinha se machucado; e foram todas muito educadas com ela, principalmente as flores que haviam se deitado em sua cama. Mas ela não havia se machucado; e todas as flores de Ida lhe agradeceram pela cama deliciosa, e foram muito gentis com ela, e a levaram até o meio do salão, onde a lua brilhava, e dançaram com ela; e todas as outras flores fizeram um círculo em torno dela. Ora, Sofia estava feliz, e disse que elas podiam ficar na sua cama; ela não se importava nem um pouquinho de dormir dentro da gaveta.

Mas as flores disseram, “Nós te agradecemos de todo o coração, mas nós não vivemos por muito tempo. Amanhã já estaremos totalmente mortas. Mas diga à pequena Ida para que ela nos enterre fora do jardim, onde fica o canário; então, nós despertaremos de novo no verão, e seremos muito mais lindas.”

“Não, vocês não podem morrer,” disse Sofia beijando as flores.

Nesse instante a porta se abriu, e um montão de flores maravilhosas entraram dançando. Ida não conseguia imaginar de onde elas tinham vindo; certamente todas elas eram flores que tinham vindo do castelo do rei. Na frente de todas vinham duas rosas gloriosas, usando coroas douradas na cabeça; eram o rei e a rainha. Depois vieram os mais lindos goivos[2] e cravos; e eles faziam reverências em todas as direções. Todos estavam dançando. Grandes papoulas e peônias[3] vinham soprando vagens de ervilha até ficarem com a cara vermelha. Os jacintos azuis e as pequeninas campânulas-brancas[4] vibravam como vibram os sinos. A música era maravilhosa! Depois iam chegando muitas outras flores, e todas dançando juntas; as violetas azuis e as róseas primaveras, as margaridas e os lírios do vale. E todas as flores se beijavam. Era lindo de se ver!

Até que as flores desejaram boa noite umas para as outras; então, a pequena Ida, também foi para a cama, onde ela sonhou com tudo que tinha visto.

Quando ela acordou na manhã seguinte, ela correu rapidamente até a pequena mesa, para ver se as flores ainda estavam lá. Ela puxou de lado as cortinas da pequena caminha; e lá estavam todas elas, mas elas estavam muito murchas, mais do que no dia anterior. Sofia estava deitada na gaveta onde Ida a havia colocado; ela parecia dormir profundamente.

“Você se lembra do que você queria dizer para mim!” perguntou a pequena Ida.

Mas Sofia estava embevecida, e não disse uma única palavra.

“Você não foi boazinha!” disse Ida. “E no entanto todos dançaram com você.”

Então, ela pegou uma pequena caixa de papel, onde lindos pássaros estavam pintados, e a abriu, e colocou as flores mortas dentro dela.

“Este será o lindo ataúde de vocês,” disse ela, “e quando os meus primos da Noruega vierem me visitar de vez em quando, eles me ajudarão a sepultá-las fora do jardim, para que vocês floresçam novamente no verão, e se tornem mais lindas do que nunca.”

Os primos da Noruega eram garotos muito inteligentes. Seus nomes eram Jonas e Adolfo; o pai deles havia dado a eles dois novos arcos, e eles haviam trazido os arcos para mostrar para Ida. Ela contou para eles sobre as pobres florzinhas que haviam morrido, e então, eles tiveram permissão para sepultá-las. Os dois garotos iam na frente, com seus arcos nos ombros, e a pequena Ida ia logo atrás com as flores mortas dentro da linda caixa. Fora do jardim uma linda sepultura foi aberta. Ida primeiro beijou as flores, e depois as colocou na terra dentro da caixa, e Adolfo e Jonas lançaram seus arcos sobre a sepultura, porque eles não tinham armas nem canhões.



Veja também

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Notas e Referências do Tradutor

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  1. Lírio de tigre
  2. Goiveiro
  3. Peônia
  4. Campânulas