Contos de Andersen/As galochas da felicidade

As galochas da felicidade editar

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Numa casa em Copenhagen, não muito distante do novo mercado do rei, uma festa muito grande foi realizada, e o anfitrião e a sua família estavam esperançosos, sem dúvida, porque receberiam também muitos convites. Metade dos convidados já estavam sentados nas mesas de cartas, a outra metade parecia estar esperando o resultado da situação da sua anfitriã, "Bem, como iremos nos divertir agora?”

As conversas prosseguiam, e depois de algum tempo, elas começaram a se mostrar interessantes. Dentre outros assuntos, ela se voltou para os acontecimentos da idade média, onde algumas pessoas diziam que eram muito mais interessantes do que nos nossos dias. O conselheiro Knapp defendia tão calorosamente seus pontos de vistas que a dona da casa imediatamente veio sentar do lado dele, e os dois ficaram protestando conta os "Ensaios sobre os Tempos Antigos e Modernos" de Oersted, onde a preferência caía sobre os nosso tempos. O conselheiro tinha opinião de que a época do rei Hans da Dinamarca fora a mais nobre e a mais feliz de todas.

A conversação sobre este assunto foi apenas interrompida por um instante com a chegada de um jornal, o qual, no entanto, não continha muitas notícias que valessem a pena ser lidos, e enquanto tudo isso acontece, vamos dar um pulo até a ante-sala, onde mantos, bastões, e galochas foram cuidadosamente colocados. Num certo lugar duas senhoras estavam sentadas, uma jovem, e a outra mais velha, parecia que elas tinham vindo e estavam esperando para fazer companhia às suas senhoras para retornarem para casa, porém, ao olhar mais detalhadamente para elas, poder-se-ia facilmente perceber que não eram criadas comuns. Suas formas eram graciosas, a pele muito delicada, e o talhe de seus vestidos muito elegante. Elas eram duas fadas.

A mais jovem delas não era a Felicidade propriamente dita, mas a camareira de uma das atendentes da Felicidade, a distribuir os presentes mais triviais. A mais velha, que se chamava a fada da Preocupação, parecia um pouco intranquila, ela gostava de realizar pessoalmente seus próprios negócios, pois só assim ela sabia que eles eram integralmente realizados. Elas estavam dizendo uma para a outra onde estiveram durante o dia. A mensageira da Felicidade tinha feito algumas transações muito pouco importantes, por exemplo, ela havia protegido um chapéu novo de tomar um banho de chuva, e conseguiu que uma pessoa sem importância fizesse reverência para um senhor honesto, e assim por diante, mas finalmente ela tinha algo extraordinário para contar.

"Devo dizer," disse ela, "que hoje é o meu aniversário, e em homenagem, um par de galochas me foram confiadas, para apresentar para essas pessoas. Estas galochas tem a propriedade de fazer com que cada um que as use, imagine-se no lugar que ele ou ela quiser, ou que essa pessoa vivencie qualquer época. Todos os desejos são realizados no momento em que forem expressos, de modo que pelo menos uma vez as pessoas terão a chance de serem felizes.”

"Não, respondeu a fada da Preocupação, "você ficará dependendo dela, e qualquer um que vestir estas galochas se sentirão muito infelizes, e abençoarão o momento quando poderão ver-se livre delas."

"Como você pode pensar assim? respondeu a outra, "Vejá só isto, eu vou colocá-las perto da porta, alguém irá vestí-la ao invés das próprias, e ela será uma pessoa feliz."

Este foi o fim da conversa delas.

O que aconteceu com o conselheiro editar

Já era tarde quando o Conselheiro Knapp, perdido em seus pensamentos a respeito da época do Rei Hans, desejou retornar para casa, e o destino assim ordenou que ele vestisse as galochas da Felicidade ao invés das próprias, e caminhou em direção à Rua Oriente. Sob os poderes mágicos das galochas, ele foi levado de volta no tempo, trezentos anos atrás, para a época do rei Hans, pois há muito tempo que ele vinha desejando isso quando as experimentou. Então, imediatamente, ele sentiu que seus pés pisavam no lodo e na lama da rua, as quais naqueles dias, ainda não eram pavimentadas.

"Nossa, que horror, esta rua é terrivelmente suja! disse o conselheiro, "e toda a calçada desapareceu, e os lampiões não foram instalados."

A lua não havia subido o bastante para penetrar o ar espesso e fumacento, e todos os objetos ao seu redor se confundiam na escuridão. Na esquina mais próxima, havia um lampião diante da imagem de Nossa Senhora, mas a luz que ele proporcionava era praticamente inútil, pois somente podia ser percebida quando alguém se aproximasse bem de perto e o seus olhos se voltaram para as imagens pintadas da Mãe e da Criança.

"Esse provavelmente é um museu de arte," pensou ele, "e alguém esqueceu de retirar a tabuleta."

Dois homens, vestidos como nos velhos tempos, passou por ele.

"Que criaturas estranhas!" pensou ele, "eles devem estar voltando de alguma festa à fantasia.”

Subitamente ele ouviu o som de tambores e pífaros, e, em seguida, luzes resplandecentes de tochas brilharam sobre ele. O conselheiro olhou espantado para a mais estranha procissão a desfilar diante dele. Primeiro vinha uma tropa inteira de batedores, tocando os seus tambores com muita destreza, eles eram seguidos pelos salva-vidas, munidos de arcos e bestas. A pessoa mais importante da procissão era um cavalheiro com ares de religioso. O conselheiro espantado perguntou o que tudo aquilo significava, e quem poderia ser aquele cavalheiro.

"Aquele é o bispo da Zelândia."

"Meu Deus!" ele exclamou, "mas o que será que aconteceu com o bispo? o que será que ele está pensando?" Depois, ele balançou a cabeça e disse, "Não é possível que seja o príncipe."

Enquanto refletia sobre esse estranho caso, e sem olhar para a esquerda ou para a direita, ele percorreu toda a Rua Oriental até a Praça da Ponte Elevada. A ponte, que ele supunha conduzir à Praça do Palácio, estava longe de ser encontrada, mas, ao invés, ele encontrou a margem e um parte com água rasa, e duas pessoas, que estavam sentadas num barco.

"Vamos para o Holm!" exclamou o conselheiro, sem saber em que época ele estava vivendo naquele momento; "eu quero ir para o Porto Cristiano, na pequena Rua das Turfas." O homem arregalou os olhos para ele. "Por favor, me diga onde fica essa ponte!" disse o barqueiro. "É uma vergonha que os lampiões não estejam iluminando aqui, e tudo está tão lamacento como se alguém estivesse caminhando num pântano." Mas, quanto mais ele falava com o barqueiro, menos eles conseguiam entender um ao outro.

"Não compreendo o seu sotaque estrangeiro," ele exclamou afinal, virando furioso as costas para os circunstantes. Não obstante, ele não conseguia encontrar a ponte nem qualquer grade de proteção.

"Mas que situação vergonhosa esta praça se encontra," disse ele, nunca, com certeza, jamais ele havia achado a sua época tão miserável como naquela noite. "Acho que seria melhor que eu pegasse uma carruagem, mas, onde será que ficavam elas?" Não havia nenhuma por ali! "Serei obrigado a retornar até o novo mercado do rei," disse ele, "onde dezenas de carruagens ficavam por ali, ou jamais chegarei ao Porto Cristiano." Então, ele seguiu em direção à Rua Oriental, e já tinha atravessado quase ela toda, quando a lua surgiu por entre as nuvens.

"Meu Deus, o que será que estão construindo aqui?" ele exclamou, assim que avistou o Portão Oriental, que nos tempos passados costumava ficar no final da Rua Oriental. Todavia, ele encontrou uma abertura pela qual passou, e saiu no lugar onde ele esperava encontrar o novo mercado. Nada havia ali além de um campo aberto, cercado por matos por todos os lados, e através do qual fluía um largo canal ou um riacho. Alguns quiosques de madeira de aspecto miserável, para a acomodação dos barqueiros holandeses, ficavam na praia em direção contrária.

"Ou eu estou vendo a fada morgana, ou devo estar bêbedo," resmungou o conselheiro. "O que poderá ser aquilo? O que será que está acontecendo comigo?" E se voltou com a plena convicção de que devia estar doente. Ao caminhar pela rua daquela época, ele analisava as casas mais detidamente, e achou que a maioria delas eram construídas com madeira e barro, e muitas tinham apenas um telhado de palha.

"Certamente que está tudo errado," disse ele com um suspiro, "e no entanto, eu bebi apenas um copo de ponche. Mas nem isso eu posso aguentar, e foi mesmo uma tolice terem nos oferecido ponche com salmão quente, eu vou falar sobre isso com a nossa anfitriã, a esposa do agenciador. Acho que eu deveria voltar agora mesmo e dizer como me sinto doentio, acho que isso iria parecer ridículo, e não me parece provável que eu encontraria alguém lá agora. E então, ele voltou a procurar a casa, mas ela não existia.

"Isto é realmente assustador, eu nem sequer consigo reconhecer a Rua Oriental. Não tem nenhuma loja, não há nada além de casas velhas, destruídas, e caindo aos pedaços, como se eu estivesse numa cidade provinciana. Oh, realmente eu devo estar muito mal! Não adianta ficar aqui olhando a cerimônia. Mas, onde será que fica a casa do agenciador. Lá tem uma casa, mas não é a dele, e as pessoas estão subindo até lá, eu posso ouvir. Oh, meu Deus, certamente estou muito esquisito." E assim que chegou à uma porta que estava meio aberta, ele viu uma luz lá dentro e entrou. Era uma taberna dos tempos antigos, e mais se parecia com uma cervejaria. O ambiente tinha o aspecto do interior da Holanda. Algumas pessoas, constituídas por marinheiros, cidadãos de Copenhagen, e alguns estudantes, estavam sentados e conversavam animadamente segurando suas canecas, e nem sequer notaram a chegada do novo visitante.

“Perdão,” disse o conselheiro, dirigindo-se à dona da casa, "Não estou me sentindo muito bem, e eu ficaria muito grato se vocês pudessem me providenciar uma carruagem que pudesse me levar até o Porto Cristiano." A mulher olhou para ele e balançou a cabeça. Então ela falou com ele em alemão. O conselheiro diante disto deduziu que ela não falava dinamarquês, ele, então, repetiu a pergunta em alemão. Isto, bem como a roupa singular que ele usava, convenceram a mulher de que ele era um estrangeiro. No entanto, ela logo compreendeu que ele não estava passando bem, e portanto foi buscar para ele um caneco com água. O gosto era um tanto parecido com o de água do mar, certamente, embora ela tivesse sido tirada de um poço do lado de fora. Em seguida, o conselheiro apoiou a cabeça nas mãos, respirou profundamente, e refletiu em todas as coisas estranhas que tinham acontecido com ele.

"Seria esse um exemplar do jornal "O Dia"? perguntou ele, quase que de modo mecânico, quando viu que a mulher jogava fora um pedaço grande de papel. Ela não entendeu o que ele queria dizer, mas entregou para ele a folha, era uma gravura, representando um meteoro, que tinha caído na cidade de Colônia.

"Esse é muito velho," disse o conselheiro, sentindo-se bastante feliz ao ver aquele desenho antigo. "Onde você conseguiu esta folha singular? Isso é muito interessante, embora todo o caso seja apenas uma fantasia. Meteoros podem ser perfeitamente explicados nos dias de hoje, eles são luzes que vem do norte, e que são vistos frequentemente, e sem dúvida nenhuma eles são causado pela eletricidade.”

Aqueles que estavam sentados perto dele, ouviram o que ele disse, olhavam para ele totalmente confusos, e um deles se levantou, tirou o chapéu respeitosamente, e falou de uma maneira muito séria: "O senhor certamente deve ser um homem muito culto, meu senhor."

"Oh não," respondeu o conselheiro, "Eu só consigo tratar de assuntos que qualquer um pode entender."

"A modéstia é uma bela virtude," disse o homem. "Além do mais, devo acrescentar aos seus discursos que penso de forma diferente, porém, no momento não gostaria de impor meus próprios conceitos."

"Posso perguntar ao senhor com quem tenho a honra de falar?"

"Eu sou Bacharel em Teologia," disse o homem. Esta resposta satisfez o conselheiro. O título combinava com a vestimenta.

"Ele é com certeza," pensou o conselheiro, "um velho professor de alguma aldeia, um sujeito muito especial, tal como encontramos algumas vezes quando vou a Jutlândia."

"Embora aqui não seja um local adequado," começou o homem, "gostaria de pedir-lhe para que prosseguíssemos com a nossa conversação. O senhor deve entende muito a respeito das antigas tradições.”

"Oh, sim," respondeu o conselheiro, "gosto muito de ler bons livros antigos, e modernos também, com exceção das histórias do dia a dia, e das quais já temos mais do que o suficiente."

"Histórias do dia a dia?" perguntou o bacharel.

"Sim, estou falando dos novos romances que encontramos em nossos dias atuais."

"Oh," respondeu o homem com um sorriso, e no entanto, eles são muito espirituosos, e são muito apreciados na Corte. O rei gosta especialmente do romance des Senhores Iffven e Gaudian, os quais descrevem "o rei Artur e os cavaleiros da távola redonda". Ele tem brincado muito sobre este assunto com os cavalheiros da Corte."

"Bem, com certeza não tive ainda o prazer de lê-lo," respondeu o conselheiro. "Suponho que seja uma obra recente, e publicada pela Heiberg."

"Não," respondeu o homem, "não foi Heiberg, foi Godfred von Gehman quem a publicou.”

"Oh, é ele mesmo o publicador? Esse é um nome bastante antigo," disse o conselheiro, "não seria ele o nome do primeiro publicador da Dinamarca?"

"Sim, e esse é o nosso primeiro impressor e publicador agora," respondeu o estudioso.

Até agora tudo estava transcorrendo muito bem, mas nesse instante um dos cidadãos começou a falar da terrível peste que havia devastado alguns anos atrás, referindo-se à peste de 1484. O conselheiro achou que ele se referia à colera, e eles poderiam ter discutido o assunto sem ter encontrado o equívoco. A guerra de 1490 era tratada como se fosse um fato recente. Os piratas ingleses haviam tomado alguns navios no Canal em 1801, e o conselheiro, supondo que ele se referia a estes navios, concordou com eles ao achar que os culpados eram os ingleses. O resto da conversa, todavia, não foi muito agradável, a todo momento um contestava o que o outro dizia. O senhor bacharel parecia ser muito ignorante, pois a menor observação do conselheiro parecia aos olhos deles uma coisa audaciosa demais ou exageradamente fantasiosa. Eles olhavam um para o outro, e quando a coisa piorava ainda mais, o bacharel falava em latim, na esperança de ser melhor compreendido, mas tudo em vão.

"Como vai você agora? perguntou a dona da casa, puxando a manga do conselheiro.

Em seguida, suas lembranças começaram a voltar. No decurso da conversação ele havia esquecido tudo o que tinha acontecido anteriormente.

"Meu Deus," onde estou?" disse ele. E quase ficou tonto quando pensou nisso.

"Nós vamos tomar um clarete[1], hidromel[2] ou cerveja de Brêmen," disse um dos convidados, "o senhor gostaria de beber conosco?"

Duas criadas se aproximaram. Uma delas tinha uma touca de duas cores[3] na cabeça. Elas serviram o vinho, inclinaram suas cabeças, e se retiraram.

O conselheiro sentiu que um arrepio gelado corria por todo o corpo. "O que será isto? o que significa tudo isso?" disse ele, mas foi obrigado a beber com eles, pois convenceram o bom homem com seus métodos educados. E ele acabou ficando desesperado, e quando um deles disse que ele estava embriagado, ele no mínimo não duvidou mais da palavra do homem, -- pediu-lhes apenas para pegar um droschky[4],e então eles pensaram que ele estava falando russo. Nunca antes ele estivera em companhia tão rude e tão vulgar. "Poder-se-ia acreditar que o país estava voltando ao paganismo," ele observou. Este é o pior momento da minha vida.”

Só então ele se lembrou que poderia passar por debaixo da mesa, e ir rastejando até a porta. Ele tentou fazer isso, mas antes que ele chegasse na entrada, os outros perceberam o que ele pretendia, e o prenderam pelos pés, quando, para felicidade dele, as galochas foram retiradas, e com elas todo o encantamento. O conselheiro via agora, muito claramente, um lampião, e uma grande construção que ficava atrás dele, tudo parecia familiar e maravilhoso. Ele estava na Rua Oriental, com a aparência que tinha agora, estava deitado com as pernas voltadas para a varanda, e de frente para ele estava um vigia dormindo sentado.

"Será possível que eu estive deitado aqui, o tempo todo, sonhando no meio da rua? disse o conselheiro. "Sim, esta é a Rua Oriental, como ela está lindamente iluminada e parece tão alegre! É praticamente incompreensível que um copo de ponche tivesse mexido comigo desse jeito."

Dois minutos depois ele pegou um coche, o qual iria levá-lo até o Porto Cristiano. Ele pensou em todo o horror e ansiedade que tinha passado, e se sentiu grato do fundo do coração pela realidade e pelo conforto dos tempos modernos, que, com todos os seus enganos, eram muito melhores do que aqueles que ele viveu em suas últimas lembranças.

As aventuras do vigia editar

"Bem, eu declaro, que ali está um par de galochas," disse o vigia. "Com certeza, eles pertencem ao tenente que mora no andar de cima. Elas estavam bem perto da porta da casa dele." O bom homem teria feito questão de tocar a campainha, e as teria entregue, pois um lampião ainda estava queimando, mas ele não queria incomodar as outras pessoas da casa, portanto, deixou que eles dormissem. "Isto deve manter os pés muito quentes," disse ele, "elas são feitas de couro macio e de boa qualidade." Então ele as vestiu, e elas couberam certinho em seus pés. "Ora," disse ele, "como são engraçadas as coisas neste mundo! Aqui vemos aquele homem que pode se deitar em sua cama quentinha, mas não está fazendo isso. Lá vai ele andando para cima e para baixo dentro do quarto. Ele deve ser um homem feliz. Ele não tem nem esposa, nem filhos, e ele sai acompanhado todas as noites. Oh, como gostaria de ser ele, então eu seria um homem feliz.”

Assim que ele enunciou este desejo, as galochas que ele tinha colocado começaram a fazer efeito, e o vigia imediatamente se tornou o tenente. Lá ficou ele em seu quarto, segurando um pequeno pedaço de papel cor de rosa entre os dedos, no qual havia um poema, -- um poema escrito pelo próprio tenente. Quem nunca teve, pelo menos uma vez em sua vida, um momento de inspiração poética? Os versos seguintes estavam escritos sobre o papel cor de rosa:—

“Oh se eu fosse rico!

“Oh se eu fosse rico! Quantas vezes, nos tempos da minha bela juventude,
Quando as alegrias de jovem afugentavam as preocupações,
Sonhava com riquezas e com a conquista de poder,
Usando a espada, a pluma e um uniforme!
As riquezas e as honras vinham para mim;
No entanto a pobreza era minha maior riqueza:
Ah, me ajudai e tende piedade de mim!

“Uma vez, nos dias de minha juventude, que eram alegres e livres,
Uma jovem me amou; e seus doces beijos,
Ricos em ternura, amor e pureza,
Me ensinaram muito, ó que infortúnio! sobre a felicidade terrestre.
Pobre garota! Ela só pensava na alegria juvenil;
Ela não amava a riqueza, apenas os contos de fada e a mim.
Ficai sabendo: ah, e tende piedade de mim!

“Oh se eu fosse rico! e para isso volto a rezar:
Aquela menina é agora uma mulher, livre e bela,
Como bons e belos são os anjos.
Oh, se eu fosse rico na poesia dos que amam,
Para contar meu conto de fadas, conceito mais puro de amor!
Mas não; devo ficar em silêncio — porque sou pobre.
Ah, tende piedade de mim?

“Oh se eu fosse rico na verdade e na paz,
Não precisaria ficar lamentando a pobreza.
A ti dedico as linhas desta dor;
Porventura, conseguirás entender este conto triste?
Uma folha onde relato os meus pesares —
Uma história sombria, de uma noite mais sombria do destino.
Ah, abençoai-me e tende piedade de mim!”

“É assim mesmo, as pessoas escrevem poemas quando estão apaixonadas, mas uma pessoa sábia jamais irá imprimí-las. Um tenente apaixonado e pobre. Este é um triângulo, ou, falando de modo mais apropriado, metade do dado da sorte de uma felicidade incompleta." O tenente sentia isso de modo muito profundo, e, portanto, apoiou sua cabeça contra a estrutura da janela, e suspirou profundamente. "O pobre vigia da rua," disse ele, é muito mais feliz que eu. Ele não sabe o que eu chamo de pobreza. Ele tem um lar, uma esposa e filhos, que choram a sua tristeza e se regozijam com a sua felicdade. Oh, como eu seria muito mais feliz se eu pudesse trocar a minha situação pela dele, e passar a vida com suas humildes expectativas e esperanças" Sim, de fato, ele é mais feliz do que eu.”

Neste instante, o vigia voltou a ser vigia, depois de ter vivido como tenente, com as galochas da felicidade, e ficou menos satisfeito do que esperava, pois preferia sua condição anterior, e desejou ser de novo um vigia. "Esse foi um sonho ruim," disse ele, "mas muito estranho. Me pareceu como se eu fosse o tenente lá de cima, mas eu não era feliz. Sentia falta de minha esposa e dos meus filhos, que estão sempre alegres, e me sufocam com seus beijos." Ele voltou a sentar e balançou a cabeça, mas não conseguia tirar os sonhos da cabeça, e ainda tinha as galochas nos pés. Uma estrela cadente reluzente atravessava os céus naquele instante.

"Ela foi embora!" disse ele. "No entanto, restam muitas ainda, eu gostaria de examinar estes objetos mais de perto, especialmente a lua, pois ela não conseguiria escapar de nossas mãos. O estudante, para quem minha esposa lava roupas, diz que quando a gente morre, nós ficamos viajando de uma estrela para outra. Se isso fosse verdade, isso seria muito maravilhoso, mas não acho que isso seja possível. Gostaria de poder dar um pulo até lá em cima agora, enquanto meu corpo ficaria deitado aqui nos degraus desta escada.”

Há certas coisas no mundo que devemos anunciar com muito cuidado, principalmente, quando aquele que fala estão com os seus pés dentro das galochas da felicidade. Vamos saber agora o que aconteceu com o vigia.

Quase todo mundo está familiarizado com o grande poder do vapor, e provamos isso com a velocidade com que conseguimos viajar, tanto sobre trilhos como num barco atravessando os mares. Mas esta velocidade é como os movimentos da preguiça, ou como a lenta caminhada de um caracol, quando comparados com a rapidez que a luz viaja, a luz viaja dezenove milhões mais veloz que o cavalo de corrida mais rápido, e a eletricidade é ainda mais veloz. A morte é um choque elétrico que recebemos em nossos corações, e nas asas da eletricidade as almas libertas voam para a eternidade muito rapidamente, a luz do sol viaja até a nossa terra noventa e cinco milhões de milhas[5] em oito minutos e alguns segundos, mas nas asas da eletricidade a mente requer somente um segundo para realizar a mesma distância. O espaço entre os corpos celestiais é, para o pensamento, não muito maior que a distância que nós temos de percorrer da casa de um amigo até uma outra na mesma cidade, no entanto, este choque elétrico nos obriga a usar nossos corpos aqui embaixo, a menos que, assim como o vigia, tenhamos as galochas da felicidade.

Em questão de pouquíssimos segundos o vigia viajou mais de duzentas milhas até a lua, que é formada por uma material mais leve que o da nossa terra, e pode se dizer que seja tão macio como a neve que acabou de cair aqui agora. Ele esteve numa dessas faixas circulares de montanhas que podemos ver representadas num grande mapa da lua do Dr. Madler. O interior tinha o aspecto de um imenso buraco, com o formato de uma tigela, com uma profundidade aproximada de meia milha a partir da borda. Dentro deste buraco havia uma grande cidade, podemos ter alguma ideia de sua aparência jogando a clara de um ovo dentro de um copo de água. Os materiais de que ela era feita parecia tão macio, e formavam torres nebulosas e terraços com formatos de velas de navios totalmente transparentes, e que flutuavam no ar diáfano. A nossa terra pairava sobre a sua cabeça como uma grande bola vermelha escura.

Na verdade, ele descobriu alguns seres, que certamente poderiam ser chamados de homens, mas que eram muito diferentes de nós mesmos. Uma imaginação mais fantástica que a de Herschel deve ter descoberto isto. Se eles tivessem sido agrupados, e pintados, poderia se dizer: "Que folhagem maravilhosa!" Eles tinham também uma linguagem própria. Ninguém poderia esperar que o espírito do vigia pudesse entendê-la, e no entanto, ele a entendia, pois as nossas almas possuem capacidades muito superiores as que estamos inclinados a acreditar. Não revelamos algumas vezes em nossos sonhos um fantástico talento dramático? Cada um dos nossos conhecidos aparece então diante de nós em seu próprio personagem, e usando a própria voz, ninguém conseguiria imitá-los em suas horas de vigília.

Como nos lembramos com tanta clareza de pessoas que não vemos há tantos anos, elas aparecem de repente para os olhos da mente com todas as particularidades, como realidades vivas. Na verdade, esta memória da alma é uma coisa assustadora, todo pecado, todo pensamento escabroso pode ser trazido de volta, e podemos querer saber como é que conseguiremos dar conta "de toda palavra ociosa" que possa ter sido sussurrada no coração ou pronunciada com os lábios. O espírito do vigia, portanto, entendia muito bem a linguagem dos habitantes da lua[6]. Eles estavam discutindo sobre a nossa Terra, e duvidavam que ela podia ser habitada. A atmosfera, diziam eles, era muito densa para que qualquer habitante da lua pudesse viver lá. Eles acreditavam que apenas a lua poderia ser habitada, e era realmente o corpo celeste onde os povos do velho mundo viviam. Eles também gostavam de falar sobre política.

Mas agora, nós vamos descer até a Rua Oriental, e ver o que aconteceu com o corpo do vigia. Ele estava sentado sem vida nos degraus. Alguns objetos haviam caído de suas mãos, e seus olhos estavam voltados para a Lua, na qual vagava sua alma sincera.

"Que horas são, seu vigia?" perguntou um transeunte. Mas não houve resposta do vigia.

O homem então, puxou o seu nariz suavemente, o que fez com que ele perdesse o equilíbrio. O corpo caiu para a frente, e ficou deitado no chão de comprido como se fosse morto.

Todos os seus companheiros ficaram muito assustados, porque ele parecia estar totalmente morto, eles ainda deixaram que ele permanecesse daquele jeito, depois de terem espalhado a notícia sobre o que tinha acontecido, e ao amanhecer, o corpo foi levado para o hospital. Poderíamos imaginar que não seria uma coisa engraçada se o espírito do homem voltasse para ele repentinamente, pois, provavelmente ele procuraria o corpo na Rua Oriental, não sendo possível encontrá-lo. Poderíamos imaginar o espírito perguntando à polícia, ou no endereço do escritório, ou entre as prestações que faltam para o pagamento, e então, finalmente, encontrando-o no hospital. Mas podemos ficar tranquilos com a certeza de que a alma, ao atuar sobre os nossos impulsos, é mais sábia do que nós, é o corpo que a torna estúpida.

Como já dissemos, o corpo do vigia tinha sido levado para o hospital, e ali ele foi colocado num quarto para ser lavado. Naturalmente, a primeira coisa a ser feita aqui seria a retiradas das galochas, e então a alma seria obrigada a retornar instantaneamente, e ela tomaria o caminho direto até o corpo imediatamente, e em alguns segundos a vida do homem retornaria para ele. Ele declarou, quando ele se recuperou totalmente, que esta tinha sido a noite mais assustadora de sua vida, nem por uma centena de libras ele voltaria a experimentar tais sentimentos novamente. Todavia, tudo já havia acabado.

No mesmo dia ele recebeu alta, mas as galochas permaneceram no hospital.

O momento mais importante -- uma viagem por demais singular editar

Todo habitante de Copenhagen sabe como é a entrada do Hospital Frederico[7], mas, como muito provavelmente, a maioria dos que lêem esta história podem não residir em Copenhagen, faremos uma pequena descrição dele.

O hospital fica separado da rua por uma grade de ferro, onde as barras de ferro estão tão longe separadas uma da outra, que dizem, que alguns pacientes muito elegantes se espremem através delas, e vão fazer algumas visitas até a cidade. A parte mais difícil do corpo a ser atravessada era a cabeça, e neste caso, como frequentemente acontece por toda parte, aqueles que tem cabeças pequenas são os mais felizes. Isto servirá como introdução suficiente para a nossa história. Um dos jovens voluntários, de quem, falando fisicamente, poder-se-ia dizer que tinha uma cabeça grande, estava de vigia naquela noite no hospital. A chuva caía torrenciamente, todavia, apesar destes dois obstáculos, ele sentiu vontade de sair apenas por um quarto de hora, não valeria a pena, pensou ele, tornar o porteiro seu confidente, já que ele poderia passar facilmente pelas grades de ferro.

Ali estavam as galochas, que o vigia havia esquecido. Jamais teria ocorrido a ele que se tratava das galochas da felicidade. Elas seriam muito úteis para ele com este tempo chuvoso, então ele as colocou. E agora o problema era se ele conseguiria se espremer através das grades, ele certamente nunca havia tentado, então ele ficou parado diante delas. "Gostaria tanto que a minha cabeça conseguisse passar," disse ele, e instantaneamente, embora a galocha fosse espessa e muito grande para ele, ele a atravessou com a maior facilidade. As galochas atenderam muito bem ao seu propósito, mas o seu corpo tinha que acompanhar, e isto parecia impossível. "Sou muito gordo," disse ele, "achei que a minha cabeça fosse mais difícil passar, mas não conseguirei atravessar o meu corpo, isso é certeza.”

Então, ele tentou recuar a cabeça novamente, mas sem sucesso, ele conseguia mover o pescoço com relativa facilidade, mas era só isso. O seu primeiro sentimento foi o de raiva, depois o seu bom humor desapareceu completamente. As galochas da fortuna o haviam colocado nesta difícil situação, e infelizmente, jamais lhe ocorreu de desejar a própria libertação. Ao invés de desejar, ele ficava se contorcendo, e não conseguia sair do lugar. A chuva caía, e não havia nenhum ser vivo na rua. A campainha para chamar o porteiro estava longe do seu alcance, e no entanto, ele precisava se libertar! Ele ficou pensando que talvez teria de ficar ali até a manhã seguinte, e então alguém traria um ferreiro para cerrarem as barras de ferro, e isso seria uma tarefa que levaria tempo.

Todas as crianças do ensino básico estariam indo para a escola naquele momento, e todos os marinheiros que moravam naquele bairro da cidade estariam ali para assistí-lo de pé no pelourinho. E que multidão não estaria ali. "Rá," ele exclamou, "o sangue está subindo na minha cabeça, acho que vou enlouqucer. Ou melhor, acho que já estou louco, oh, como eu gostaria de sair daqui, assim todas sensações poderiam passar." Isso era exatamente o que ele deveria ter feito desde o princípio. No exato momento em que ele expressou esse pensamento a sua cabeça se libertou. Ele recuou um pouco, totalmente aturdido com o susto que as galochas da felicidade haviam causado nele. Mas não devemos supor que tudo tenha terminado, não, de jeito nenhum, o pior ainda estava por acontecer.

A noite passou, e o dia seguinte inteirinho, mas ninguém perguntou pelas galochas. À noite, uma apresentação poética seria realizada no teatro amador de uma rua distante. A casa estava lotada, na plateia, estava o jovem voluntário do hospital, que parecia ter esquecido completamente as aventuras da noite anterior. Ele estava usando as galochas, ninguém havia procurado por elas, e como as ruas estavam muito sujas, elas estavam sendo de grande utilidade para ele. Um novo poema, intitulado "Os Óculo da Minha Avó", estava sendo recitado. Ele descrevia os óculos como possuidores de poderes maravilhosos, se alguém os usasse numa grande assembleia, as pessoas pareceriam como se fossem cartas de baralho, e os acontecimentos futuros dos anos vindouros poderiam ser facilmente previstos para eles.

Uma ideia lhe ocorreu que ele gostaria muito de possuir tais óculos, pois, se usados corretamente, talvez eles pudessem capacitá-lo a entender o coração das pessoas, o que, segundo ele, seria mais interessante do que saber o que iria acontecer no ano seguinte, pois os eventos futuros com certeza seriam revelados, mas nunca os corações das pessoas. "Posso imaginar o que eu veria em todos os assentos de damas e cavalheiros da primeira fila, se eu pudesse ver dentro do coração deles, aquela senhora, fico imaginando, teria uma loja com artigos de moda, como os meus olhos poderiam vagar por aquela coleção!, com tantas damas aqui, com certeza encontraria uma grande loja de chapéus para senhoras.

Há uma outra que talvez esteja vazia, e que estaria precisando de uma limpeza. Pode haver alguma com bons estoques de artigos finíssimos. "Ah, sim," ele suspirou, "conheço uma, onde tudo é de primeira, mas uma criada já se encontra ali, e esse é o único problema. Ouso dizer que já ouvi de muitos estas palavras: "Entre, por favor." Eu simplesmente gostaria de entrar nos corações como se fosse um minúsculo pensamento." Essa foi a palavra de ordem para as galochas. O voluntário se encolheu todo e começou a viagem mais extraordinária pelos corações dos espectadores da primeira fila.

O primeiro coração que ele entrou foi o de uma senhora, mas ele achava que tinha entrado em um dos compartimentos de uma instituição ortopédica, onde moldes de plástico de membros deformados estavam pendurados nas paredes, com uma única diferença, que os moldes na instituição eram formados quando os pacientes entravam, porém, aqui os moldes eram criados e preservados depois que as pessoas iam embora. Estes eram moldes das deformidades físicas e mentais das amigas das senhoras, cuidadosamente preservados. Rapidamente ele entrou num outro coração, que tinha o aspecto de uma igreja, espaçosa e sagrada, com a pomba branca da inocência se debatendo sobre o altar. Ele teria caído de joelhos diante de um local tão sagrado, mas foi levado para um outro coração, embora ouvisse, os sons de um órgão que tocava, e sentindo que ele havia se tornado um outro homem, um pouco melhor.

O próximo coração era também um santuário, onde ele se sentia indigno de entrar, e ali havia um sótão mediano, onde estava uma mãe doente, mas o calor do sol entrava pela janela, rosas maravilhosas desabrochavam numa pequena caixa de madeira no telhado, dois pássaros azuis cantavam as alegrias infantis, e a mãe doente pedia em preces a bênção para a sua filha. Em seguida, ele entrou agachado com suas mãos e os joelhos, num açougue superlotado, havia carne, nada além de carne, onde quer que ele fosse, este era o coração de um homem rico e respeitável, cujo nome com certeza consta no coração de muitas pessoas.

Então, ele entrou no coração da esposa deste homem, era uma casa de pombos velha e caindo aos pedaços, o retrato do marido era usado como catavento, ele tinha comunicação com todas as portas, que abriam e fechavam sempre que a opinião do marido se modificava. O próximo coração era uma sala repleta de espelhos, tais como podem ser vistas no Castelo de Rosenberg.[8] Mas estes espelhos aumentavam num grau surpreendente, no centro do assoalho estava sentado, como o Grande Lama, a pessoa insignificante do proprietário, atônito com a contemplação de seus próprios recursos. Em sua próxima visita, ele imaginou ter penetrado numa estreita caixa de agulhas, cheia de agulhas pontudas: "Oh," pensou ele, "este deve ser o coração de uma velha criada," mas não era esse o caso, ela pertencia a um jovem oficial, que tinha sido promovido inúmeras vezes, e que dizem ter sido um homem com intelecto e sensibilidade.

O pobre voluntário saiu do último coração da fileira totalmente confuso. Ele não conseguia concatenar seus pensamentos, e imaginou que suas tolas fantasias o tivessem levado para muito longe. "Deus do céu!" ele suspirou, "eu devo ter tendência para o amolecimento do cérebro, e aqui está um calor tão excessivo que o sangue começou a subir na minha cabeça." E então, subitamente, ele se lembrou do estranho evento da noite anterior, quando a sua cabeça tinha ficado presa entre as grades de ferro na frente do hospital. "Esta era a causa daquilo tudo!" exclamou ele, "Preciso fazer alguma coisa ainda. Um banho russo seria uma coisa muito boa para começar. Oh, como eu gostaria de estar deitado num dos compartimentos mais altos.”

Seu pedido foi atendido, lá estava ele no compartimento mais alto de um banho a vapor, ainda com suas roupas da noite, vestindo suas botas e galochas, e os vapores quentes caindo do teto sobre o seu rosto. "Oh!", exclamou ele, saltando e correndo para um banho de mergulho. O atendente fê-lo parar com um grito alto, quando ele viu um homem vestindo todas as suas roupas. No entanto, o voluntário teve presença de espírito o bastante para sussurrar: "Isto é uma aposta," mas a primeira coisa que ele fez, quando entrou no seu próprio quarto, foi colocar uma grande bolsa de água quente no pescoço, e outra nas costas, para que o seu acesso de loucura pudesse passar. Na manhã seguinte, suas costas estavam doloridas, e era tudo o que ele tinha conseguido com as galochas da felicidade.

A transformação do escrivão editar

O vigia, que naturalmente, não nos esquecemos dele, lembrou-se, depois de algum tempo, da galochas que ele tinha encontrado e levado até o hospital, então decidiu buscá-las. Porém, nem o tenente, nem qualquer pessoa na rua poderia reconhecê-las como se fossem próprias, então, ele as entregou para a polícia. "Elas se parecem exatamente como minhas próprias galochas," disse um dos escrivães, examinando os artigos que desconhecia, pois elas estavam ao lado das suas. "Seria necessário mais que o olho de um sapateiro para diferenciar um par do outro.”

“Senhor escrivão, disse um funcionário entrando com alguns documentos. O escrivão se virou e falou com o homem, mas depois que terminou, ele se voltou para olhar as galochas novamente, e nesse instante ele sentiu uma dúvida muito grande se era o par da direita ou o da esquerda que pertencia a ele. "Aquelas que estiverem molhadas devem ser as minhas," pensou ele, "mas ele pensou errado, era exatamento o contrário. As galochas da felicidade eram o par molhado, e, além do mais, porque um escrivão de polícia não deveria se enganar algumas vezes? Então ele as colocou, enfiou os documentos dentro do bolso, colocou alguns manuscritos debaixo do braço, os quais ele precisava levar consigo, para tomar decisões em casa, "Uma caminhada até o Monte Frederico me fará bem:" então para lá se dirigiu.

Não poderia existir jovem mais tranquilo e mais sossegado do que este escrivão. Não vamos ficar com ciúmes dele neste pequeno passeio, e isso era exatamente o que ele precisava fazer depois de ficar sentado tanto tempo. A princípio, ele andava como um simples autômato, sem pensar nem desejar nada, de modo que as galochas não tinham a chance de mostrar seus poderes mágicos. Na avenida, ele encontrou um conhecido, um de nossos jovens poetas, que disse para ele que pretendia iniciar no dia seguinte um passeio de verão. "Você tem mesmo certeza de viajar tão cedo?" perguntou o escrivão. "Que homem livre e feliz você é. Você poderá ir para onde quiser, enquanto nós ficaremos atados sob nossos pés."

"Mas você estará preso ao pé de fruta-pão," respondeu o poeta. Você não precisa ficar preocupado com o dia de amanhã, e você ficar velho, haverá uma pensão para tua tranquilidade.”

"Ah, sim, mas você ficou com o melhor," disse o escrivão, "deve ser tão delicioso ficar sentado e escrever poesias. O mundo inteiro torna-se agradável para você, e depois, você é dono de si mesmo. Você deveria experimentar uma vez e ficar ouvindo todas essas coisas triviais que acontecem dentro de uma corte de justiça." O poeta balançou a cabeça, e o escrivão também fez o mesmo, cada um ficou com a própria opinião, e depois partiram. "Os poetas são pessoas estranhas," pensou o escrivão, "eu gostaria de experimentar o que é ter uma veia poética, e me tornar um poeta. Tenho certeza que não criaria versos tão tristes como eles se parecem. Hoje está um dia esplêndido de primavera para um poeta, o ar está extraordinariamente claro, as nuvens estão tão lindas, e a relva verde tem um cheiro tão suave. Há muitos anos que não me sinto deste jeito como agora.”

Foi por aí que percebemos que ele havia se tornado um poeta. Para a maioria dos poetas o que ele disse seria considerado um fato comum, ou como os alemães costumam dizer "uma coisa insípida." Seria uma fantasia tola considerar os poetas como sendo diferentes das outras pessoas. Há muitos que podem ser considerados mais poetas por natureza do que aqueles que se professam como tais. A diferença é que, a memória intelectual do poeta é melhor, e toma posse de uma ideia ou sentimento, até que consiga corporificá-lo, de maneira clara e transparente em palavras, o que os outros não conseguem fazer. Mas as transição de um personagem da vida cotidiana para outra mais talentosa por natureza é uma grande transição, e desse modo o escrivão teve ciência dessa transformação depois de um certo tempo. "Que perfume delicioso," disse ele, "faz-me lembrar das violetas na cada da minha tia Lora."

Ah, isso foi quando eu era um garotinho. Meu Deus, quanto tempo já se passou desde aqueles dias! Ela era uma boa e velha senhora! Ela morava alí atrás da Bolsa de Valores. Ela sempre conservava um raminho ou alguns botões dentro da água, por mais rigoroso que fosse o inverno. Eu poderia sentir o cheiro de violetas, mesmo quando eu estava colocando algumas moedas aquecidas contra as vidraças congeladas para fazer buraquinhos na neve para ficar espiando, e a mais bela paisagem era aquela que eu espiava. Lá longe no rio ficavam os navios, presos pelo gelo, e abandonados pela tripulação, um corvo barulhento era a única criatura viva a bordo. Mas, quando as brisas da primavera chegavam, tudo se transformava em vida. Por entre gritos e saudações os navios eram pichados e equipados, e então podiam navegar para terras distantes.”

"Eu fico aqui, e sempre ficarei, sentado no meu lugar na delegacia de polícia, e deixando que outros tirem seus passaportes para terras distantes. Sim, este é o meu destino," e suspirava profundamente. De repente, ele fez uma pausa. "Deus do céu, o que estará acontecendo comigo? Nunca me senti antes como me sinto agora, deve ser o ar de primavera. Ele é irresistível, mas é muito delicioso.”

Ele sentiu que em seus bolsos havia alguns papéis. "Eles me servirão para pensar em alguma coisa," disse ele. Lançando os olhos na primeira página de um deles, ele leu: "Senhora Sigbirth, uma Tragédia original, em Cinco Atos. O que será isto? -- escrito com a minha própria letra também! Será que eu escrevi esta tragédia?" Ele leu novamente, "História sobre um Passeio, ou, o Dia de Jejum. Um teatro de variedades. Mas, afinal de contas, como é que tudo isso veio parar aqui? Alguém deve tê-los colocado em meu bolso. E aqui está uma carta!" Ela pertencia ao gerente de um teatro, as peças foram recusadas, nem todas eram apresentáveis de certo modo.

"Hum, hum!" disse ele, sentando-se num banco, seus pensamentos se expandiam como elástico, e seu coração estava melancolicamente magoado. Involuntariamente, ele pegou uma das flores que estava próxima, era uma margarida pequena e delicada. E tudo que os botânicos precisavam de muitos discursos, podia-se explicar num segundo com esta pequena flor. Ela falava da glória do seu nascimento, contava sobre os esforços da luz do sol, que fazia com que suas folhas delicadas se expandissem, proporcionando a ela um perfume tão doce. As lutas da vida que despertam sensações no peito tem sua origem nas flores minúsculas. O ar e a luz são os preferidos das flores, mas a luz é a mais favorecida, porque a flor se volta em direção à luz, e somente quando a luz vai embora é que ela dobra as suas folhas, e dorme sob os abraços do ar.”

"É a luz que me enfeita," diz a flor.

"Mas o ar te proporciona o fôlego da vida," sussurrou o poeta.

Bem perto dele estava um garoto, espirrando água com uma vareta em uma poça pantanosa. As gotas dágua jorravam por entre os galhos verdes, e o escrivão pensou nos milhões de pequenos animálculos que eram jogados para o ar dentro de cada gota dágua, à uma altura que seria a mesma para elas como seria se fôssemos arremessados para além das nuvens. A medida que o escrivão pensava nessas coisas, e teve consciência da grande transformação de seus próprios sentimentos, ele sorriu, e disse para si mesmo, "Devo estar dormindo e sonhando, e caso esteja, como é maravilhoso que um sonho seja tão natural e real, e ao mesmo tempo termos consciência de que ele é apenas um sonho.

Espero que consiga me lembrar de tudo quando acordar amanhã. Minhas sensações parecem inexplicáveis. Tenho uma clara percepção de tudo, como se estivesse bem acordado. Tenho certeza de que se me lembrar de tudo isto amanhã, isso vai parecer extremamente ridículo e absurdo. Acho que isso já aconteceu comigo antes. As coisas inteligentes e maravilhosas que dizemos ou ouvimos nos sonhos, é como o ouro que tiramos debaixo da terra, ele é rico e lindo quando o possuímos, mas quando visto sob a luz da verdade, ele é como as pedras e as folhas murchas.”

"Ah", suspirou ele melancolicamente, enquanto olhava para os pássaros que cantavam alegremente, ou pulavam de galho em galho, "eles são muito melhores que eu. Voar é um arte poderosa. Feliz é aquele que nasce com asas. Sim, se eu pudesse me transformar em alguma coisa eu seria uma cotovia. No mesmo instante, a cauda do seu casaco e as mangas cresceram juntos formando asas, suas roupas se transformaram em penas, e suas galochas em garras. Ele sentiu o que estava acontecendo, e riu consigo mesmo. "Bem, é evidente que devo estar sonhando, porém, eu nunca tive um sonho tão maluco como este." E então, ele voou até os galhos verdes e cantou, porém, não havia poesia em sua canção, porque a sua natureza poética o havia deixado.

As galochas, como todas as pessoas que desejam realizar completamente um sonho, podiam atender somente um pedido de cada vez. Ele desejava ser poeta, e ele se tornou poeta. Depois, ele quis ser um passarinho, e com esta transformação ele perdeu as características da anterior. "Bem," pensou ele, "isto é encantador, de dia eu fico sentado na delegacia de polícia, no meio daqueles entediantes documentos legais, e a noite posso sonhar que sou uma cotovia, e voar pelos jardins de Fredericksburg. Realmente, uma comédia completa poderia ser escrita sobre esse tema." Então, ele voou sobre a relva, virava a cabeça para todos os lados, e batia com o bico sobre as camadas flexíveis de grama, que, proporcionalmente ao seu tamanho, parecia para ele tão longa como as folhas de palmeiras do norte da África.

Num certo momento, tudo ficou escuro ao seu redor. Parecia que algo imenso havia sido lançado em cima dele. Um jovem marinheiro havia lançado seu enorme boné sobre o passarinho, e uma mão veio por baixo e pegou o escrivão pelas costas e asas de maneira tão rude que ele chiou, e depois começou a gritar fazendo alarme, "Seu patife insolente, eu sou o escrivão da delegacia de polícia!" mas isso soava para o jovem como se fossem "tuit, tuit", então ele bateu no bico do passarinho, e foi embora com ele. Na avenida ele encontrou dois estudantes, que pareciam pertencer à melhor classe da sociedade, mas cujas habilidades inferiores colocava-os na classe mais baixa da escola. Este garotos compraram o pássaro por oito pences, e assim o escrivão voltou para Copenhagen.

"Ainda bem que eu estou sonhando", pensou ele, "caso contrário eu poderia ficar realmente zangado. Primeiro eu era um poeta, e agora sou uma cotovia. Deve ter sido a natureza poética que me transformou nesta pequena criatura. É uma história infeliz, eu sei, principalmente agora que caí nas mãos destes garotos. Já fico imaginando qual será o final dela." Os garotos o levaram até um lugar muito elegante, onde uma senhora robusta e com boa aparência os recebeu, mas ela não ficou nada satisfeira ao descobrir que eles haviam trazido uma cotovia -- um "pássaro de campo" comum, como ela costumava chamá-lo. Todavia, ela permitiu por um dia que eles colocassem o pássaro numa gaiola vazia, que ficava perto da janela. "Talvez a Polly vá ficar contente com ele," disse ela, rindo para um papagaio enorme e cinzento, que orgulhosamente ficava balançando em cima de um anel dentro de uma belíssima gaiola de bronze. "É o aniversário do Polly," ela acrescentou com um sorriso forçado, "e o pequeno pássaro de campo veio para lhe dar os parabéns.”

Polly não respondeu uma única palavra, ele continuou a balançar orgulhosamente para lá e para cá, mas um lindo canário, que havia sido trazido de sua terra natal quente e perfumada, no verão passado, começou a cantar tão alto quanto podia.

"Seu pássaro barulhento!" disse a senhora, lançando um lenço branco sobre a gaiola.

"Tuit, tuit," suspirava ele, "que tempestade de neve assustadora!" e depois voltou a ficar em silêncio.

O escrivão, ou como a senhora o chamava o pássaro de campo, foi colocado numa pequena gaiola perto do canário, e não muito longe do papagaio. A única fala humana que Polly sabia pronunciar, e que ele algumas vezes tagarelava de maneira muito engraçada, era "Agora, sejamos homens." Tudo além disso eram gritos, tão ininteligíveis quanto o trinado do pássaro canário, com exceção do escrivão, que sendo agora um pássaro, poderia entender seus companheiros também.

“Voei para debaixo das palmeiras verdes, e entre as amendoeiras florescentes," cantava o canário. "Voei com meus irmãos e irmãs por cima de lindas flores, e atravessei o mar claro e brilante, que refletia a folhagem ondulante em suas profundezas cintilantes, e eu vi muitos papagaios alegres, que sabiam contar histórias longas e deliciosas.”

“Eles eram pássaros selvagens," respondeu o papagaio, "e totalmente mal educados. Agora, sejamos homens. Porque você não ri? Se a senhora e seus visitantes podem rir quando falo isto, com certeza você também pode. É uma falha muito grande não saber apreciar o que é engraçado. Agora, sejamos homens.”

"Você se lembra," disse o canário, "das lindas donzelas que costumavam dançar nas tendas que eram espalhadas sob as árvores florescentes? Você se lembra das frutas deliciosas e do suco refrescante feito com ervas selvagens?"

"Oh, sim," disse o papagaio, "mas aqui eu estou muito melhor. Sou bem alimentado, e tratado com educação. Eu sei que tenho uma cabeça boa, e o que mais posso querer? Sejamos homens agora. Você tem alma de poeta. Eu tenho conhecimento profundo e inteligência. Você tem criatividade, mas não tem juízo. Você eleva as suas notas altas naturalmente tão fortes, que você fica totalmente coberto por elas. Elas nunca me foram tão úteis. Oh, não, eu custei para eles algo mais do que você. Com meu bico, eu preservo a tranquilidade aqui, e espalho o bom humor para todos os lados. Ora, sejamos homens.”

"Oh, minha pátria quente e florida," cantava o pássaro canário, "Cantarei tuas árvores verdes escuras e teus rios tranquilos, onde os galhos flexíveis beijam as água claras e pacíficas. Cantarei a alegria dos meus irmãos e irmãs, que com suas plumagens brilhantes voam entre as folhas escuras das plantas que crescem livres ao lado das nascentes.”

"Pare com essas canções sombrias," disse o papagaio, "cante algo que nos faça rir, o riso é o símbolo da mais elevada ordem de intelecto. Um cão ou um cavalo sabem sorrir? Não, só podem chorar, mas somente ao homem foi dado o poder do sorriso. "Rá rá rá," riu Polly, "e repetia seu refrão espirituoso: "Ora, sejamos homens.”

"Ora, seu pequeno pássaro cinzento dinamarquês," disse o canário, "você também se tornou prisioneiro. Certamente está frio em suas florestas, mas a liberdade ainda existe lá. Fuja! eles esqueceram de fechar a gaiola, e a janela está aberta no alto. Voe, voe!”

Instintivamente, o escrivão obedeceu, e saiu da gaiola, nesse mesmo instante a porta meio-aberta que levava para o quarto contíguo rangeu os seus gonzos, e, furtivamente, com seus olhos verdes e flamejantes, o gato entrou de repente e caçou a cotovia ao redor do quarto. O pássaro canário voava em sua gaiola, e o papagaio batia suas asas e gritava: "Sejamos homens," o pobre escrivão, vivendo o terror mais letal, voou pela janela, por cima das casas, e pelas ruas, até que finalmente foi obrigado a procurar um lugar para descansar. Uma casa de frente para ele tinha um aspecto agradável. Uma janela estava aberta, ele voou para dentro, e pousou em cima da mesa. Era a sua própria casa. "Sejamos homens agora," disse ele, imitando involuntariamente o papagaio, e no mesmo instante ele se tornou escrivão novamente, com uma única particularidade, ele estava sentado em cima da mesa. "Deus me ajude!" disse ele, "Como é que eu cheguei até aqui e caí no sono desta maneira? Foi um sonho perturbador esse que eu tive. Tudo parecia o maior absurdo.”

A melhor coisa que as galochas fizeram editar

Bem cedo, na manhã seguinte, enquanto o escrivão ainda estava na cama, o seu vizinho, um jovem estudante de teologia, que morava no mesmo andar, bateu em sua porta, e depois entrou. "Será que você poderia me emprestar as suas galochas," disse ele, "o jardim está muito úmido, mas o sol está forte e brilhante. Gostaria de sair lá fora para fumar o meu cachimbo." Ele vestiu as galochas, e logo estava no jardim, onde havia um pé de ameixa e um pé de maçã, contudo, na cidade, mesmo um jardim pequeno como este tem lá suas vantagens.

O estudante andou para cima e para baixo do caminho, eram exatamente seis da manhã, e ele podia ouvir o som da buzina do correio nas ruas. "Oh, viajar, viajar!" exclamou ele, "não há maior felicidade no mundo: é o cúmulo da minha ambição. Este sentimento inquietante permaneceria em silêncio, se eu pudesse fazer uma viagem para bem longe deste país. Gostaria de poder viajar para a Suíça, conhecer a Itália, e," -- ainda bem que as galochas começaram a fazer efeito imediatamente para ele, caso contrário ele poderia ter sido levado para muito longe de onde ele morava e também de nós. Num segundo, ele estava na Suíça, completamente amontoado junto com oito outras pessoas dentro de uma diligência.

Sua cabeça doía, suas costas estavam duras, e o sangue havia parado de circular, de modo que os seus pés estavam inchados e apertados dentro das botas. Ele oscilava entre os estados de sonolência e o de vigília. Em seu bolso do lado direito ele tinha uma carta de crédito, em seu bolso do lado esquerdo estava o seu passaporte, e algumas moedas de ouro tinham sido costuradas numa pequena bolsa de couro que ele levava no bolso da frente.

Sempre que cochilava, ele sonhava que tinha perdido um ou outro de seus pertences, então ele acordava assustado, e os primeiros movimentos de sua mão formaram um triângulo do bolso do lado direito até o seu peito, e do seu peito até o seu bolso do lado esquerdo, para sentir que tudo estava seguro. Guarda-chuvas, bengalas, e chapéus dançavam dentro de uma rede à sua frente, e quase obstruíam a visão da paisagem, que era realmente majestosa, e enquanto a admirava, suas lembranças recordaram as palavras de um poeta pelo menos, que havia cantado na Suíça, e cujos poemas ainda não tinham sido impressos:—

"Que maravilha para os meus olhos curiosos "Os belos picos do Monte Branco se erguem suavemente, "É tão gostoso respirar o ar da montanha, -- Se você tiver poupado ouro o bastante.”

A paisagem ao seu redor era majestosa, escura e sombria. As florestas de pinheiro pareciam como colônias de musgo sobre as rochas elevadas, cujas cúpulas se perdiam dentro das nuvens de névoa. No momento, havia começado a nevar, e o vento soprava forte e gelado, "Ah," ele suspirou, "se eu pudesse estar do outro lado dos Alpes agora, lá seria verão, e eu poderia conseguir dinheiro com minhas cartas de crédito. A ansiedade que sinto no momento impede de me divertir na Suíça. Oh, como eu gostaria de estar do outro lado dos Alpes.”

E então, num segundo, ele estava distante no centro da Itália, entre Florença e Roma, onde o lago Trasímeno[9] reluzia sob os raios de sol ao anoitecer como folha de ouro derretido entre as montanhas azuis escuras. Ali, na região onde Aníbal derrotou Flamínio, as videiras entrelaçavam-se umas às outras com o abraço amigável de seus tentáculos de gavinhas verdes, enquanto que, do lado do caminho, adoráveis crianças semi-nuas observavam encantadas uma vara de porcos negros como o carvão, sob as inflorescências do louro perfumado. Caso fôssemos capazes de descrever esta cena pitoresca e os nossos leitores diriam: "Como a Itália é maravilhosa!”

Mas, nem o estudante, ou qualquer um de seus companheiros de viagem tinham a menor tendência para pensar deste jeito. Moscas venenosas e pernilongos entravam dentro do coche aos milhares. Em vão, eles os expulsavam com ramos de murta, as moscas os picavam implacavelmente. Não havia uma só pessoa no coche cujo rosto não estivesse inchado ou desfigurado pelas picadas. Os pobres cavalos tinham um aspecto assustador, as moscas brincavam em suas costas aos enxames, e elas somente davam trégua quando o cocheiro descia e expulsava aquelas criaturinhas.

Quando o sol se punha, um frio congelante enchia toda a natureza, embora não fosse de longa duração. Ele dava a sensação que experimentamos quando entramos na sala de um funeral num dia de verão, enquanto as montanhas e as nuvens exibiam aquele tom verde e singular que observamos frequentemente nas pinturas antigas, e que se parecem tão artificiosas até que nós mesmos tenhamos visto o colorido da natureza ao sul. Esse era um espetáculo glorioso, mas os estômagos dos viajantes estavam vazios, seus corpos extenuados de tanto viajar, e todos os anseios de seus corações se voltavam para um lugar de descanso ao anoitecer, porém, eles ainda não sabiam onde podiam encontrar um lugar como esse. Todos os olhares procuravam avidamente um lugar para repousar, e se esqueciam de observar as belezas da natureza.

A estrada atravessava um bosque de oliveiras, isso fez lembrar o estudante dos pés de salgueiros que ele tinha em casa. Logo ali ficava uma estalagem solitária, e ao redor dela um amontoado de pedintes e mutilados se aglomeravam, o mais atilado dentre eles, para citar as palavras de Marryat, "era como o filho mais velho da Fome, que acabava de chegar à maioridade." Os outros eram ou cegos, ou tinham as pernas estropiadas, o que os obrigava a se arrastarem sobre suas mãos e joelhos, ou tinham braços e mãos encolhidos e sem os dedos. Era, de fato, a pobreza vestida de farrapo. "Excelência, somos miseráveis!" exclamavam, estendendo seus braços disformes. A dona da estalagem recebia os viajantes com os pés descalços, cabelos desalinhados, e uma blusa suja. As portas eram amarradas com cordões, o assoalho dos quartos eram de tijolos, quebrados em muitos lugares, morcegos voavam sob o telhado, e o cheiro dentro da estalagem—

"Vamos fazer a ceia no estábulo," disse um dos viajantes, "então saberemos o que estamos respirando."

As janelas foram abertas para permitir que o ar fresco entrasse, porém, mais rápidos que o ar vinham os braços estropiados e os sons de lamentação contínuos, "Somos muito pobres, excelência". Nas paredes havia inscrições, metade delas contra a "bela Itália.”

A ceia foi servida, finalmente. Ela consistia de sopa aguada, temperada com pimenta e óleo rançoso. Esta última cortesia fazia o papel principal na salada. Ovos mofados e cristas de galo assadas eram os melhores pratos da mesa, até o vinho tinha um gosto estranho, era certamente uma mistura. À noite, todas as caixas eram colocadas contra as portas, e um dos viajantes vigiava enquanto os outros dormiam. Agora, era a vez dos estudantes vigiarem. O ar passava longe daquele quarto, o calor queimava-lhe o corpo todo. Os mosquitos zumbiam por todos os lados e picavam, enquanto que os miseráveis que haviam ficado lá fora enchiam de lamúrias os seus sonhos.

“Viajar teria sido uma boa opção," disse o estudante de teologia para si mesmo, "se nós não tivéssemos corpos, ou se o corpo pudesse descansar enquanto a alma está voando. Onde quer que eu vá, sinto uma agonia que me oprime o coração, pois no momento existe algo melhor, sim, algo melhor, e que será o melhor de todos, mas onde será que isso pode ser encontrado? De fato, eu sei em meu coração muito bem o que desejo. Quero alcançar a maior de todas as felicidades.”

Mal ele falou essas palavras e de repente já estava em casa. Compridas cortinas brancas cobriam as janelas do seu quarto, e no meio do assoalho havia um caixão negro, onde ele jazia no tranquilo sono da morte, seu desejo havia sido cumprido, seu corpo descansava e o seu espírito estava viajando.

“Nenhum homem pode dizer que é feliz até que esteja em seu túmulo," foram as palavras de Sólon. E aqui estava a prova mais recente e inegável dessa verdade. Todo corpo é uma esfinge de imortalidade. A esfinge deste sarcófago poderia revelar seu próprio mistério com as palavras que o vivente tinha escrito dois dias antes —

"Morte implacável, teu silêncio arrepiante desperta o terror Contudo, em tua hora mais negra pode haver luz Ceifeiro do jardim da Terra! da cama fria do sepulcro A alma faz a sua decolagem sobre a escada de Jacó.

Os maiores pesares do homem, frequentemente são apenas uma parte Dos pesares ocultos, escondidos aos olhos humanos, Que oprime com muito mais peso o coração solitário Do que a terra que agora se encontra em seu caixão

Duas figuras se movimentavam pela sala, ambas são nossas conhecidas. Uma era a fada chamada Preocupação, e a outra a mensageira da Felicidade. Elas estavam inclinadas sobre o falecido.

"Veja"" disse a fada Preocupação, "que felicidade as suas galochas trouxeram para as pessoas?"

"Pelo menos, elas trouxeram a felicidade eterna para aquele que descansa aqui," ela respondeu.

“Não é bem assim," disse a Preocupação, "ele foi embora de si mesmo, ele não foi chamado. Seus poderes mentais não foram fortes o bastante para diferenciar os tesouros que lhe estavam reservados para descobrir. Vou lhe prestar um favor agora." E ela tirou as galochas dos seus pés.

O sono da morte terminou, e o homem recuperado levantou-se. A fada Preocupação desapareceu, bem como suas galochas, não havia dúvida de que ela as considerava como se fossem suas próprias.


Links externos editar

Notas e referências editar

  1. Clarete: vinho tinto.
  2. Hidromel: mistura de água e mel.
  3. No tempo do rei Hans, as camareiras eram obrigadas a usarem toucas de duas cores na cabeça.
  4. Droschky: coche, carruagem leve, aberta e com quatro rodas, usada na Rússia.
  5. A luz do sol viaja cento e cinquenta milhões de quilômetros em oito minutos, que é a distância da Terra ao Sol.
  6. Selenita; habitante hipotético da lua.
  7. Hospital Real Frederico: foi o primeiro hospital da Dinamarca. Foi fundado pelo rei Frederico V e financiado pelos proventos advindos do Serviço Postal da Noruega. Os hospital funciona como uma instituição independente, com o propósito de oferecer tratamento gratuito e a cura para pacientes sem recursos.
  8. O Castelo de Rosenberg foi fundado na primeira metade do século XIII por Vítek, O Jovem, Príncipe de Prčice (cidade da Tchecoslováquia). Ele ficava situado ao sul da Boêmia, perto de Rožmberk nad Vltavou, na República Tcheca.
  9. Batalha do Lago Trasimeno: No dia 21 de Junho do ano 217 a.C., as tropas de Aníbal destruíram o exército romano de Caio Flamínio, numa emboscada, matando-o.