Contos em verso/Contos brasileiros/A escrava

A ESCRAVA
 

Eu nasci lá na fazenda
De uma negra e do feitor.
Vim pequena para a côrte,
Trazida por meu senhor,
E eu era em casa guardada
Como joia de valor.

Minha pobre mãe — coitada!
Deixei-a ficar na roça;
Tinha saudades da filha,
Mas, com medo de uma coça,
As lagrimas escondia
Na solitaria palhoça.

Foi na palhoça que um dia
Meu pae irritado entrou,
E lhe bateu com o chicote...
Que ella dormisse julgou,
Desgraçada mãe, que mesmo
Depois de morta apanhou!


Eu não fui creada a esmo,
Comquanto fosse uma escrava;
Muitas vezes sinhásinha
Junto de si me assentava,
E me ensinava leitura
E a rabiscar me ensinava.

Era, porém, na costura
Que eu mostrava mais primor;
Vestidos fazia a ponto
De muita gente suppôr
Que eram obra da madama
Lá da rua do Ouvidor.

Não havia outra mucama
Com tão raros predicados!
Como eu engommava as rendas,
As prégas e os apanhados,
Do ferro levando o bico
Aos refolhos dos babados!

Era o meu senhor tão rico,
Tinha tantas relações,
Que não perdia um só baile,
Nem outras quaesquer funcções,
E todas ás quartas-feiras
Dava em casa reuniões.

Eram muito pagodeiras
Quer sinhá, quer sinhásinha:
De um baile mal descançavam,

Outro convite lá vinha!
E quem é que as enfeitava?
A boa da mulatinha!

Que trabalho isso custava!
Porém que satisfação
Quando, depois de vestil-as,
Dava a ultima de mão,
Co’os alfinetes na bocca,
Ajoelhada no chão!

E, como se fosse pouca
Massada a minha massada,
Pelas duas pagodeiras
Eu esperava acordada,
Porque tinha que despil-as
A’s tantas da madrugada.

Depois, na alcova, tranquillas,
Eu e sinhásinha, a sós,
Deitadas, por ordem sua,
No leito della ambas nós,
Ella, baixinho, com medo
De que lhe ouvissem a voz,

Me revelava em segredo
Quem no baile a requestára,
Qual fôra o seu preferido
E quantas vezes dansára;
E naquellas frioleiras
Levava até manhã clara.


N’um baile nas Laranjeiras,
Um moço que a namorou,
Depois de valsar com ella
Tão embeiçado ficou,
Que a pediu em casamento
Logo depois que valsou.

Tudo se fez num momento,
Pois não era um peralvilho
O moço: tinha futuro,
De outro ricaço era filho.
Que alegria, que festança!
Durante um mez que sarilho!...

Teve a noiva uma lembrança
Toda caridade e amor:
Minha carta de alforria
Pediu ao pae, meu senhor;
Mas elle não quiz passal-a,
E disse de máu humor:

— Desejas alforrial-a?
Mostras não ser sua amiga!
No dia em que essa mulata
A liberdade consiga,
Dá logo em mulher á tôa!
Não percas a rapariga! —

Hoje ainda me magôa
Tão injusta opinião;
A virgindade no corpo

Eu tinha e no coração;
Nem a mais leve maldade
Me perturbava a razão.

Alcançando a liberdade,
Eu não daria em devassa,
Pois era trabalhadeira,
Nada tinha de madraça.
E ficar ali mettida
Foi toda a minha desgraça.

Que já estava arrependida
Do casamento, uma vez
Me confessou sinhásinha,
Não era passado um mez...
Passados dous, que tristeza!
Que prantos, passados tres!

Fiquei devéras sorpresa
Ao seu primeiro gemido,
Pois achava aquelle moço
Um excellente marido,
Delicado, attencioso,
Sempre muito bem vestido!

Logo elle viu, pezaroso,
Que ella não lhe tinha amor...
Durára aquelle capricho
O que durára uma flor
Que a noíva um dia lhe dera...
Triste, ephemero penhor!


Eu era bella! se o era!
Mais bella que sinhásinha!
Aquelles olhos travessos,
Aquelles olhos que eu tinha,
Neste misero destroço
Já ninguem mais advinha.

Un dia notei que o moço
Os meus encantos notou...
Não podem fazer idéa
Dos olhos que me deitou!
E desde aquelle momento
De outro modo não me olhou...

Confesso que um sentimento
Estranho, novo, suspeito,
Aquelles olhos malditos
Gerou-me dentro do peito,
E eu evitar-lhe, mesquinha,
Não pude o tremendo effeito.

Uma noite sinhásinha
Foi ao theatro; elle não,
Que, fingindo uma enxaqueca,
Se valeu da occasião...
Tinha a sua voz maviosa
Prodigios de seducção!

— Minha mulata formosa,
Nós somos ambos escravos...
Deus nos fez um para o outro:

Do amor sugamos os favos!
São desforras os meus beijos,
E os teus beijos desaggravos!

Saciaram-se os seus desejos:
Fui vencida, elle venceu;
E, algum tempo depois disto,
Quem gravida appareceu,
Em vez de ser sinhásinha,
Fui — que escandalo! — fui eu!

Tudo, por desgraça minha,
Se descobriu. Fui surrada,
Nua do umbigo p’ra cima,
A um grosso tronco amarrada,
Eu tive a mimosa pelle
Barbaramente lanhada!

Meu seductor... que fez elle?...
Fugiu.... a esposa deixou...
Porém, passado algum tempo
Ella mesma o procurou;
Como fôra desdenhada,
Pela vez primeira amou.

Quanto a mim, desventurada,
Fui presa n’um velho quarto,
Padecendo mil tormentos
Até que tive o meu parto.
Meu Deus! eu quiz, mas não pude
Matar meu filho, — mandar-t’o!


Meu senhor, coração rude,
Homem que nunca chorou,
A criança para a roda
Dos engeitados mandou!
Que criminosa o seu crime
Tão caro como eu pagou?

Tres dias depois, eu vi-me
Dentro de um carro atirada,
Como negra vagabunda
Por um soldado levada
Ao trem de ferro e á fazenda
Onde outra vez fui surrada!

Justos céos! que vida horrenda!
Era já outro o feitor;
Meu pae já não existia,
Mas existia o terror;
Não era menos malvado
O seu digno successor.

Deus me havia reservado
De minha mãe o destino;
Como enojada fugisse
Aos beijos de um assassino,
Teve os beijos do vergalho
Meu triste corpo franzino.

Envelheci no trabalho,
Fui tarefeira exemplar;
Mas já não pego na agulha

Nem no ferro de engommar;
Já não visto uma senhora;
Já não sei nem soletrar!

Da fazenda para fóra
Fui posta ao primeiro raio
Altivo, ardente, brilhante
Do sol de Treze de Maio,
E vim, trazendo sómente
Molambos no meu balaio.

Foi devéras inclemente
Essa viagem que eu fiz,
Velha, andrajosa, faminta,
Por desertos e alcantis,
Até chegar á cidade
Do meu amor infeliz.

Aurea lei da liberdade,
Bemdigo a piedade tua;
Mas é triste, muito triste
Ver-me doente e semi-nua,
Pelos moleques vaiada,
Pedindo esmolas na rua!

Sinhásinha inda é casada;
Ha poucos dias a vi
Pelo braço do marido,
E logo os reconheci.
Como estão bem conservados,
E eu... eu como envelheci...


Já têm dois filhos formados...
O meu... que fim levaria?
Talvez na rua me encontre
E tambem de mim se ria;
Talvez até que se offenda
Se lhe disserem um dia

Que eu, nascida na fazenda,
De uma negra e do feitor,
Sou sua mãe dolorosa,
E elle a flôr, a pobre flôr,
A pobre flôr melindrosa
Nascida do meu amor.