A PROVA
 
ao leitor
 

O pudor não affronto;
Por isso em tom solemne,
Previno-te, leitor, que este meu conto
E’ do genero dos de Lafontaine;
Portanto, amigo, se corar receias,
Passa adiante, não leias:
Mas se, apezar do que te expuz sem pejo,
Os olhos deste escripto não desvias,
Sabe que eu só desejo,
Não que tu córes, mas que tu sorrias.

Embora perto dos quarenta, ainda
Era Antonietta esvelta, fresca e linda,
Formosura esquecida sobre a terra.
Tinha dois olhos rutilos, capazes
De pôr o mundo inteiro em pé de guerra,
E n’um momento promover as pazes
Co’um rapido volver, languido e quente.

Ella esposára prematuramente,
Menina ainda, o Andrade, um bom sujeito,

Que, sendo rico, moço e intelligente,
Tinha um defeito só... mas que defeito!...
Elle estava inhibido
De ser um bom marido
Se não lá uma vez por outra, quando
Natureza inclemente
Condescendia um pouco... O miserando
Era, pois, um marido intermittente.

Dessa desgraça, induzo,
Provinha o viço, a juvenilidade
Que conservava Antonietta Andrade!
Era mulher sem uso,
Ou, pelo menos, muito pouco usada.

Tinha enorme desgosto
Em que a sorte mesquinha a houvesse posto
A essa meia ração de amor, coitada;
Era, porém, senhora muito honrada,
E capaz não seria
De procurar um dia
A outra meia ração fóra de casa.

De ter uma criança,
Sonho de toda a gente que se casa,
Ella perdera a debil esperança,
E, por isso, adoptara
Uma orphã. Educou-a como filha.
Não lhe deu, como esmola,
A protecção que humilha,

Mas o amor que consola,
E Deus só nos depara
No coração de nossas mãis.

A moça
Nada tinha de ensossa:
Era bella e prendada,
Tocava bem piano,
Arranhava francez e italiano.
Não lhe faltava nada,
Nem mesmo de luzidos pretendentes,
Pressurosos e ardentes,
Variado magote,
Naturalmente farejando um dote.

Surgiu, dentre elles, um rapaz sisudo
Que agradou muito, quer á rapariga,
Quer á mãi adoptiva. — Esta, comtudo,
Sendo, como era, desvelada amiga
Da moça, receiou que elle tivesse
Defeito igual ao do incompleto Andrade,
E da ração de amor á esposa désse
Apenas a metade.

Entretanto, o namoro caminhava
A passos largos para o casamento.
Tratos inuteis ao bestunto dava,
De momento em momento.
Antonietta, procurando meios
De afastar para sempre os seus receios.

Um dia a rapariga,
Depois dos mil rodeios
Que em casos taes são coisa muita antiga,
A avisou de que o moço
No proximo domingo a pediria.

Antonietta ficou logo fria,
E, cheia de alvoroço,
Saiu de carro logo após o almoço.

Era uma quinta-feira.
Tinho chovido muito a noite inteira.
Continuava a chover. Neblina densa
Cobria os morros da cidade immensa.
Pelas ruas desertas,
De agua e lama cobertas,
Andava o carro rapido, ligeiro,
Affrontando o aguaceiro.

Da moça o pretendente
Morava só, — e quando, de repente,
Viu na sua saleta
Entrar Antonietta,
Ficou tão surprehendido
Que até...

(Permittirás, leitor querido,
Que uma linha de pontos
Suppra alguns versos que, depois de promptos,
Resolvi supprimir. As reticencias
Fizeram-se para estas emergencias).

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Antonietta, que ali fôra tremendo,
Voltou calma e tranquila,
A si mesma dizendo:
— Agora sim, póde elle vir pedil-a!
Meu coração já nada mais receia;
De toda a inquietação se acha liberto!
Ella não ha de ter, já sei, ao certo,
Meia ração, porém ração e meia!