Contos em verso/Contos brasileiros/O copo
Era uma noite de São João. João Canto,
Que era um João prazenteiro,
Não olhava a dinheiro:
Todos os annos festejava o santo,
Que andou pelo deserto,
O corpo mal coberto,
A comer gafanhotos, e, ao que julgo,
Foi santo melancolico, e, no emtanto,
Passa aos olhos do vulgo
Pelo mais brincalhão do calendario.
Naquella noite, em casa do João Canto,
Que era um velho e zeloso funccionario,
As gárrulas visitas
Entravam aos rebanhos:
Moços e velhos, homens e mulheres,
Muitos rapazes, muitas senhoritas,
E creanças de todos os tamanhos.
— Estás tu como queres!
Dizia dona Andreza, a esposa amada
Do João, contrariada
Por ver a casa assim, cheia de estranhos;
Porém a filha do casal, Ritinha,
Que dezesete primaveras tinha,
Passava o anno inteiro desejosa
De que chegasse a noite venturosa
Do vinte e tres de junho.
Nas approximações da festa havia
Em casa muito faina
Do brasileiro cunho;
Tanto davam ás mãos, como ás idéas,
Afim de preparar a comesaina
Com que o bandulho aquella gente enchia.
Eram doces de vinte variedades,
Pudins, bolos, compotas e geléas,
Pitéos de forno em grandes quantidades
E não menos modesta
Era a abundancia de bebida: havia
Cervejas, vinhos e licores finos:
Anisette, Cacáo, Benedictinos!
Mas a maior despeza dessa festa
Era a que o João fazia
Enchendo um grande quarto de bichinhas,
Bombas, pistolas, buscapés, rodinhas,
E o mais que tem creado o interessante
Engenho pyrotechnico. Centenas
Havia de balões, que a cada instante,
Magestosos, inchados, atrevidos,
Subiam do ar ás regiões serenas,
De altivolos foguetes perseguidos,
Entre assobios e horridos rugidos,
E ao som do « Viva São João! » gritado
Pela voz chrystallina
Da multidão alegre e pequenina.
E n’um espaço adrede preparado
Em frente á casa, ardia,
Uma fogueira immensa, crepitante,
Emquanto no alto céo se desfazia
O seu pennacho rubro e chammejante.
Dona Andreza, insensivel á poesia
Dos costumes que herdámos do passado,
Suspirando, dizia:
— Quanto dinheiro, santo Deus, queimado! —
A formosa Ritinha
Dois namorados tinha,
Alberto e Alfredo, ambos autorizados
A pedil-a ao João Canto em casamento.
Tendo dois namorados,
Era o seu pensamento
Que é coisa assaz prudente
Em tudo nesta vida
Ter um sobrecellente,
Prevenindo-se a gente
Contra qualquer partida;
Mas o caso é que andava a dois carrinhos;
Como, entretanto, um coração não póde,
Tratando-se de amor, os seus carinhos
Dividir egualmente
E fazer com que tudo se accommode,
A donzella imprudente
Gostava mais do Alfredo que do Alberto.
O Alfredo era, de certo,
O mais digno de ser por ella amado;
Era um rapaz muito morigerado,
Caracter de ouro, coração aberto,
Estimado por toda a gente séria,
E, pela sua educação, munido
Contra o negro fantasma da miseria;
Ao passo que o Alberto era um perdido:
Ignorante, vadio, sem futuro,
Que quasi aos trinta aos trambolhões chegára
Sem na vida achar furo:
Mas... tinha boa cara,
E boas roupas, e era petulante,
E o Alfredo um modesto, um hesitante,
Que de tudo e por tudo tinha medo.
Naquella festa de S. João, o Alfredo,
De ciumes ralado,
Por ver o seu rival considerado,
As penas da sua alma soffredora
N’um canto do quintal esconder fôra,
Que, apezar da fogueira, estava escuro,
— Quando viu a Ritinha,
Pé ante pé, sósinha,
Vir de casa, chegar junto de um muro,
Sobre o rebordo deste
Pôr um objecto que na mão trazia,
E voltar para dentro. O moço investe
Contra o muro. Quer ver! E’ curioso,
E um augmento prevê á sua magoa!...
Risca um phosphoro. Um copo! Um copo d’agua
Dentro do qual fluctúa
Alguma coisa branca... E’ clara de ovo...
Ritinha espera uma abusão do povo —
Que aquelle copo de destino a instrua.
O magoado galan percebe tudo,
E despeja do copo o conteúdo;
Volta á casa, e, do João no gabinete,
Acha penna e papel, traça um bilhete,
Dobra-o bem dobradinho, e num momento
Vae deital-o no copo que ao relento
Ha de a noite passar.
Não ha quem pinte
Da moça o espanto na manhã seguinte,
Quando o seu copo d’agua achou vasio,
Sem esquife, sem cama, sem navio,
Mas co’ um bilhete — oh, céos! caso estupendo! —
Que ella tremendo abriu, e leu tremendo:
«Mulher, por quem de lagrimas, mofino,
O travesseiro confidente ensopo,
Não busques prescrutar o teu destino,
Em clara de ovo dentro deste copo!
Serás feliz, recompensando o affecto
Que te consagra o Alfredo, que te adora
E quer que o tecto seu seja o teu tecto
E ter em ti, meu bem, dona e senhora!»
No São João seguinte a casa tinha
Ainda mais animação e brilho,
Pois baptisava-se o primeiro filho
Do Alfredo e da Ritinha.