Contos em verso/Contos cariocas/Mortos e vivos

MORTOS E VIVOS
 

Fernando Veiga era casado, e amava
Sinceramente a sua esposa, um anjo
Que Deus, ao que parece, cobiçava,
Porque um dia a levou. Que triste dia!
Inda agora ao lembral-o me confranjo,
E trinta annos passaram-se! — Maria
— Ella assim se chamava —
Morreu com dezenove primaveras;
Era bondosa, meiga,
E formosa devéras.

O meu Fernando Veiga
Tinha vinte e seis annos. Quiz a sorte
Interrompesse a morte
Tanta ventura ao cabo de dez mezes,
Maria quantas vezes,
Co’uma expressão gaiata,
Dizia: — Amor não mata;
Si matasse, eu morria...
Entretanto, Maria
Morreu de amor, isto é, morreu de parto.

O viuvo, no quarto,
Junto ao cadaver, pois não houve meio
De arrancal-o dali, me parecia
Estranho a tudo, tive até receio
De que a razão perdido houvesse, e creio
Que elle a perdera, embora
Mais tarde a recobrasse. Desvairado
Tinha o olhar, e sorria
De um modo tão estranho, que ainda agora
Só de lembral-o fico horripilado!

Porém, no atroz momento
Do funebre sahimento,
Fez explosão a dor daquelle moço!
Que lagrimas! que gritos! que alvoroço!
Ao caixão abraçado,
Que o tirassem dali não consentia,
Vociferando, em lagrimas banhado,
O doce nome da gentil Maria.

Perto do cemiterio
Fernando foi morar, porque sentia
Allivio e refrigerio
Ao visitar a sepultura fria
Onde o seu bem jazia.

Durante o mez primeiro
Que se seguiu á sua desventura,
Lacrimoso lá ia
Duas vezes por dia,

E muitas vezes era noite escura,
Quando um guarda, ou um coveiro
Ia buscal-o junto á sepultura,
Por serem horas de fechar-se a porta.

No mez seguinte visitava a morta
Apenas uma vez por dia, e, em breve,
Uma vez por semana,
Pois não ha dor que o tempo não a leve,
E ninguem torce a natureza humana.

Ao pé da sepultura de Maria
Uma cova vasia
Esperava o defunto.
— Que boa cova para mim! pensava
Fernando Veiga. Ficaria junto
Da esposa morta a quem eu tanto amava!

Porém um dia a cova achou tomada,
E, na terra, de vespera socada,
Uma corôa em que elle viu, curioso,
Esta banalidade:
«Ao meu querido esposo,
Tributo de saudade.»

Na semana seguinte o meu Fernando
Viu, debulhada em lagrimas, orando,
Ajoelhada junto áquella cova,
Uma senhora ainda muito nova,
Trajando espesso, rigoroso luto,
E pensou: — Deve ser a do Tributo.


Com o véo que ella trazia
Ninguem ver poderia
Si era feia ou formosa;
Mas era esvelta, airosa;
Tinha o luto elegante;
E na alvura dos marmores, tristonha,
Destacava-se negra, mas risonha
A sua silhoeta interessante.

— Maldito véo de crepe!
Fernando murmurava...
Mas que ninguem o increpe:
O tempo é uma barrella, — tudo lava.

Segundo encontro. Desta vez a viuva,
Como o dia estivesse muito quente,
Tirára o véo e descalçára a luva.
Que visão sorprehendente!
Fernando achou que ella se parecia
Com a sua Maria...
Illusão dos sentidos: a defunta
Era de um typo muito differente.

Tendo feito ao coveiro uma pergunta,
Soube Fernando Veiga que a viuva,
Houvesse sol ou chuva,
Todos os dias ia ao cemiterio,
E elle, que só aos sabbados lá ia,
Dali por diante — vejam que improperio!
Quotidianamente apparecia.


Quando á terceira vez lá se encontraram,
Os dois viuvos se cumprimentaram,
E á quarta vez falaram-se. Foi ella
Quem primeiro falou, porque queria
Que lhe indicasse o moço onde comprára
A pedra que cobria
A cova de Maria,
Pedra cuja bellesa lhe agradára.
— Encommendei-a a um marmorista sério,
Que mora mesmo em frente ao cemiterio,
Si vossa exc’lencia quer, eu vou... eu vejo...
— Perdão, senhor; apenas eu desejo
Que me apresente ao homem. — Nesse dia
Sahiu co’a viuva o viuvo de Maria,
Sem que os dois mortos vissem nem soubessem.

Como naufragos que, passado houvessem
Pelos mesmos perigos
Sobre a amplidão das aguas,
E ficassem amigos,
Elles, passando pelas mesmas magoas,
Os seus doridos corações juntaram.

Confidencias trocaram;
Todos os episodios
Da vida de ambos foram revelados,
Vida de namorados,
Vida toda de amores e sem odios.

Tambem ella tivera
Ephemera ventura, eternas penas

Viveu casada um anno, um anno apenas;
Morreu-lhe o esposo em plena primavera.

Depois, pensaram ambos no mysterio
Que os reuniu naquelle cemiterio,
Elle ainda tão moço, ella tão bella.
— Dir-se-ia até, Fernando obtemperava,
Que a mulher delle e que o marido della
Eram a força que os approximava...
Sim, porque a morte os vivos approxima!

O caso é que Fernando foi amado,
E’ o morto? Poz-se-lhe uma pedra em cima,
Do mesmo preço, egual á de Maria...

O resto? Eil-o aqui vae sem circumloquios:
Cessaram os colloquios
Na paz do cemiterio:
Procuraram logar menos funereo.

Uniram-se na egreja os namorados,
E depois de casados,
Só dos queridos mortos se lembravam
Quando um com o outro acaso disputavam,
Pois são favas contadas: quem se casa
Com viuvos ou viuvas, sempre em casa
Tem, pelos cantos ou por traz das portas,
As virtudes dos mortos ou das mortas.

Os dois defuntos nunca mais, coitados,
Foram pelos esposos visitados...

No dia de finados
Mandavam enfeitar as sepulturas,
Mas lá não iam...

Estas aventuras
Faziam muito effeito num theatro.

Hoje estão reunidos,
Mulheres e maridos,
Num jazigo perpetuo todos quatro.