Contos em verso/Contos cariocas/Os dentes do Braz

OS DENTES DO BRAZ
 

O Braz era bonito, mas — coitado! —
Tinha máos dentes; quando a bocca abria,
Todo o encanto perdia:
Por isso era calado,
E não ria: sorria.

Mas que namorador!... tinha a mania
De acompanhar senhoras; quando via
Passar alguma sem marido ao lado,
Sendo bella, ficava enthusiasmado,
E os passos lhe seguia.

Mais de uma dama, tendo reparado
Que tão bello rapaz a perseguia,
Não se mostrava esquiva ao namorado;
Mas quando descobria
Naquella bocca um singular teclado
Em que sómente — pobre desdentado! —
Sustenidos havia,
Toda a illusão se lhe desvanecia.


Muita gente dizia:
— E’ pena que um rapaz tão adamado
Na bocca tenha aquella cacaria,
Quando ha dentes postiços no mercado,
E um dentista afamado
Em cada rua chama a freguezia!

O Braz bem percebia
Que aquella bocca era o seu negro fado,
Porém não se atrevia
A entregal-a ao dentista; a covardia
Era tanta, era tal, que o desgraçado
Só de pensar no boticão, tremia!

No emtanto, o Braz, um dia
Appareceu metamorphoseado,
Mostrando, quando os labios entreabria,
Dentes que um deus do Olympo invejaria!

Foi um caso engraçado
Que dos contos a Musa desafia,
E em versos máos eil-o aqui vae contado:

I

Dissimulando os dentes,
Estava o Braz silencioso á porta
De uma alfaiataria onde se corta,
Mais do que o fato, a pelle dos ausentes,
Quando passou, ligeira e saltitante,

Uma dama elegante
E desacompanhada.
— Oh, que linda mulher! que anjo! que fada! —
Murmura o Braz comsigo, — com que graça
O vestido arregaça
E pega no sombrinha!
Vou atraz della, porque está sósinha! —

II

Ocioso é dizer-vos
Que a scena representa
A rua do Ouvidor (fere-me os nervos
Dar-lhe outro nome: nenhum mais lhe assenta.)
A dama vae ao largo da Carioca,
Seguida pelo Braz; num armarinho
Entra, e elle, de pé, fica-lhe á coca.

Ella sae afinal; toma um bondinho
Da praça Onze. Elle o bondinho toma,
Disposto a acompanhal-a ao fim do mundo.

Embora fique sem jantar nem ceia,
Pois ou bem se conquiste, ou bem se coma!
Mas — oh, felicidade! — ella dá fundo
Na praça Tiradentes.
Do bondinho se apeia
E entra na loja de um joalheiro, emquanto
O Braz fica no canto,
Suspiros a soltar intermittentes.


Sae da loja a mulher, sempre sósinha,
E, desta vez, ligeira se encaminha
Para o largo de São Francisco. Pára
Deante de uma vitrine, e então repara
Que é seguida de perto
Pelo Braz, e sorri assim de certo
Modo que o encoraja,
Pois aquelle sorriso,
Vago, estranho, indeciso,
Não é de quem reaja.

III

Elle aproxima-se, e ella, resoluta,
Como heroina habituada á luta,
Deste modo lhe fala:
— Que deseja de mim o cavalheiro? —
Elle, a sorrir, pergunta-lhe, gaiteiro:
— Dá-me licença para acompanhal-a? —
Ella responde muito amavelmente:
— Pois não! como quizer! — E incontinente
A caminho se põe. O Braz, ditoso,
Não cabendo na pelle de contente,
Vae-lhe seguindo o passo vagaroso.

A rua do Ouvidor atravessaram,
E uma esquina dobraram.


IV

À dama n’um magnifico sobrado
Entra, e após ella o Braz tambem, coitado!
Ella, do alto da escada, grita: — Suba!
E elle, com mais denodo
Que um hespanhol em Cuba,
Sobe, mas fica todo
Atrapalhado quando vê que um homem
No patamar o espera.
Um lobo, um tigre, ou qualquer outra fera
Dessas que nos atacam e nos comem,
Tamanho susto não lhe causaria;
Mas o dono da casa lhe sorria,
Dizendo: — Queira entrar... tenha a bondade...
O cavalheiro tem necessidade,
Disse minha mulher, dos meus serviços,
Essa bocca realmente
Pede uns dentes postiços...
Entre, e lhe afianço: ficará contente!

V

O Braz entrou, e, passeando a vista
Por tudo que o cercava,
Notou então que estava
Em casa de um dentista;

Mas teve que fazer o pobre diabo
Das tripas coração. Sentou-se. Ao cabo
De uma hora de tormentos
E dores excessivas,
Tinham deixado as tumidas gengivas
Os ultimos fragmentos
Dos caninos de outr’ora.
Finda a sessão, disse o dentista: — Agora
Vou fazer-lhe uma rica dentadura. —

VI

E assim foi, realmente:
Pouco tempo depois desta aventura,
Impava o Braz, — não lhe faltava um dente.