Contos em verso/Contos cariocas/Por um fio
E’s casado tambem?... tua esposa é ciumenta
E tem — para empregar uma expressão usada —
Cabellinho na venta?
Pois vou dar-te um conselho e não te peço nada:
Evita entrar no bonde. Acaso necessitas
De ir á Copacabana? à Fabrica das Chitas?
A’ Villa-Guarany?
A’ Muda da Fijuca? ao Rocha? a Catumby?
Toma um carro de praça! E, se não tens dinheiro
Que affronte a proverbial ganancia do cocheiro,
Enche-te de valor e vae pedes calcantes.
Assim se andava d’antes
Por toda esta cidade,
E havia mais saude e mais actividade.
Mas, se evitar não pódes
O bonde, e um negro fado exige que tu rodes
Dentro desse vehiculo
Que um pobre diabo expõe a parecer ridiculo,
Nunca o banco da frente escolhas! Eu te digo
O caso excepcional que se passou commigo...
Ah! ia-me esquecendo: eu abro uma excepção
Para o electrico... oh, sim! porque essa conducção
Dispensa o burro... O burro!... Ainda o sangue me ferve!
Ainda não estou em mim!... — Mas vamos ao que serve:
Eu sou casado e nunca atraiçoei Biloca
(Minha mulher assim se chama): não provoca
Os meus desejos nem mesmo a Venus de Milo!
Se eu a visse passar, ficaria tranquillo,
Não lhe offereceria o braço! Que mulheres
Me fariam fugir aos conjugaes deveres?
Um dia, ali, na Lapa,
Eu fiz como José: deixei ficar a capa!
Por sigual, que a perdi... Que boa capa aquella!...
Vi, tres dias depois, o Putiphar com ella,
E assentava-lhe bem! — Mas imaginem que hontem
(Esta desgraça a toda a humanidade contem!),
Como houvesse luar e a noite convidasse,
Quiz um bonde tomar que longe me levasse
Das vendas, dos cafés, dos chopps e dos kiosques,
Para a brisa aspirar balsamica dos bosques.
Fui á Gavea. Um passeio esplendido, bem sabem;
Mas, se passeios ha que nunca mais acabem,
Esse é um delles. A’ volta, adormeci no bonde.
Acordei de repente, e, para saber onde
Me achava, olhei ao longe e vi o mar, e logo
Pensei commigo: — Bom! já estou em Botafogo. —
Adormeci de novo, e quatro sacalões
Fizeram-me acordar... no largo dos Leões!
Sim, senhor, foi bem boa:
O que me parecera o mar, era a lagôa
De Rodrigo de Freitas!
O marido que eu sou — um marido ás direitas —
Na alcova conjugal entrou ás onze e meia!
Agora vejam lá qual foi a minha ceia:
Minha mulher, de pé, as faces incendidas,
Nos olhos o signal das lagrimas vertidas,
Quer saber de onde e como aquellas horas venho,
E me accusa, a gritar, de culpas que não tenho!
— Onde esteve o senhor mettido até esta hora? —
— Biloca, ouve, meu bem: a causa da demora... —
— Não diga, que não creio! — O’ Biloquinha,
Não grites, para não despertar os pequenos! —
Emfim, passo por alto os longos pormenores
Do conflicto, — eu vestido, ella em trajes menores;
Eu calmo, ella furiosa, e, n’um ciume absurdo
Um barulho a fazer de ensurdecer um surdo!
A’s’ cinco da manhã dormiamos serenos,
Biloca, eu e os pequenos.
Mulher que por ciumenta o marido não poupa,
Tem o habito máo de examinar-lhe a roupa,
Esperando encontrar um corpo de delicto
Que o confunda, que o ponha attonito, contricto.
— Biloca despertou-me aos berros! Tinha achado
Um cabello agarrado
A’ gola do meu frac! Era um cabello louro,
Um cabello gentil, mixto de seda e ouro.
Parecia, por Deus, cabello de senhora
Que viesse de fóra,
Ingleza ou allemã! — era um fio comprido:
Tinha seguramente um metro bem medido!
Um minuto depois de reflectir profunda
E socegadamente (O céo que me confunda
Se a verdade não digo!) achei que o tal cabello
— Não cabello, mas pello —
Da cabeça não foi de uma mulher bonita,
Mas da cauda de um burro!
E Biloca inda grita!
Dá-lhe o mundo rasão... e vão lá convencel-o
Que é pello e não cabello!
Toda a minha ventura eu trago por um fio!
Biloca diz que vae para casa do tio
(Já não tem pae nem mãe) e quer judicialmente
Separar-se de mim!... Ai, o banco da frente!...
Mais uma vez repito o meu conselho: evita
Andar de bonde, e quando acaso, por desdita,
Não puderes fazer outra coisa, não vás
Para o banco da frente e sim para o de traz.
Notas
editar- ↑ Se o leitor algum merecimento encontrar neste conto, não será, certamente, pelo assumpto, que nada vale. Entretanto, accusaram-me de o haver furtado. Escrevi esses versos a pedido do distincto actor Mattos, aproveitando o facto contado por elle como succedido a um amigo. E’ possivel que exista outro conto, monologo ou coisa que o valha, com o mesmo assumpto, mas nunca o vi nem o ouvi. — A. A.