VAGABUNDO
 

O Mathias, coitado,
Vive sabe Deus como, que é casado
E duzentos mil mensaes apenas ganha,
Pois lhe ha sido tamanha
A ingratidão dos fados deshumanos,
Que elle ainda hoje tem o parco vencimento
De quando começou, ha muitos annos,
N’uma repartição...

Caminho lento
Percorre o funccionario
Que se mostre á mesura refractario,
E, mettido comsigo
De toda a gente não se faça amigo,
Nem serviços allegue
E da sorte ao capricho apathico se entregue.
Era assim o Mathias,
E, passavam-se dias
Semanas, mezes, annos, sem que o mundo
Lhe ouvisse a menor queixa.

De Catumby no fundo,
N’uma viela que a montanha fecha,
Reside o pobretão em companhia

Da cara esposa que, fazendo balas,
Do casal as despezas auxilia,
Porque, se assim não fôra, ambos de certo
Se veriam em talas.

Seria aquella casa um lindo céo aberto
Se tivesse o casal um filho, um filho ao menos,
Sim, porque, não ha duvida, os pequenos
Espancam a tristeza
E tornam supportavel a pobreza
No lar mais esquecido dos favores
Da eterna deusa cega e fugitiva
Que anda sobre uma roda e que nos faz, senhores,
Andar a todos n’uma roda vida.

No entanto, em casa havia
Um velho cão que, a bem dizer, suppria
De uma criança, a falta.

Era um grande peralta
Que, se a porta da rua achava aberta,
Ia logo se embora,
E eram dias e dias pela certa,
Que ficava lá fóra,
E coisas taes fazia,
Que ao regressar, trazia
Vestigios eloquentes
De haver lutado a dentes,
Disputando, talvez, uma gentil cadella
Qual cavalheiro antigo, a lança heroica em riste,
Disputaria a sua dama bella.

O cão dessas façanhas vinha triste,
Cauda e orelhas cahidas, receioso
De ser mal recebido (e era muito bem feito!);
Porém bastava um gesto carinhoso,
Um sorriso fagueiro,
Uma bala roubada ao taboleiro,
Para vel-o de novo alegre e satisfeito.

Ha dez annos o cão apparecera um dia
Ali; ninguem sabia
De onde viera. Tinha fome o bicho,
E, como lh’a matassem
E lhe dessem um nicho
Onde nem sol nem chuva o incommodassem
Foi-se ficando o maganão tranquillo
Naquelle doce asylo.

Deram-lhe o nome feio
De Vagabundo, e o mesmo nome, creio
(Digo-o em seu desabono)
Lhe havia dado o primitivo dono,
Porque, á primeira vez que foi assim chamado,
Correu logo apressado.

Jámais n’um cão fraldeiro
Esse nome assentou com tanta propriedade;
Vagabundo, melhor do que o melhor carteiro,
Conhecia a cidade
Do Rio de Janeiro.

Ultimamente, ha dias, quando a nossa
Municipalidade
A guerra declarou de morte aos cães vadios,
Mathias e a mulher tiveram calefrios
Por causa da patibular carroça
Que o bairro percorria
Engaiolando os cães, para matal-os.
Incessantes abalos
No piedoso casal o carro produzia.
Que querem? não havia
Dinheiro para o imposto
Que podia evitar-lhes o desgosto
De verem Vagabundo engaiolado...

Um dia
A carroça fatal passou de cães repleta,
E a mulher do Mathias inquieta,
Debalde procurou por Vagabundo:
Não estava em casa, andava a correr mundo
— Quem sabe se foi preso e vai ali? — murmura,
E, fazendo tão triste conjectura,
Viu a carroça... e Vagabundo dentro!

A mulher desespera!
Em minucias não entro,
Que é difficil pintar-vos a sincera
Dor que della se apossa
Ao ver o cão querido na carroça,
Que lembra uma carreta
No tempo da infeliz Maria Antonietta.

Mas, eis que o velho cão sahe de baixo da mesa
Agitando a sorrir a cauda teza,
Como se tudo houvera comprehendido;
Parecendo dizer: — Cá estou, não tenha medo,
Eu me havia escondido
Apenas por brinquedo.

Não era Vagabundo, o cão engaiolado,
Porém outro com elle parecido,
Que o não ser cão de raça
Tem este inconveniente
De se não distinguir de qualquer cão que passa.

A senhora ficou muito contente,
Para outro susto não soffrer, coitada,
Foi buscar onde estava bem guardada
Uma velha pulseira,

Joia numero um, do tempo de solteira,
E empenhal-a mandou no Monte do Soccorro,
Para pagar o imposto do cachorro.