Contos paraenses/Ao despertar

Ao despertar


Ao sr. A. R. d’O. Gomes
 

Nem tudo o que luze é ouro.

PROVERBIO POPULAR.

 

I

 

A alcova nupcial em noite de noivado.

Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em côres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas... Uma lámpada com vidros baços, côr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitação, n’uma solenne impassibilidade, que dá certo ar magestoso ao silencio do recinto.

Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n’um bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.

Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.

Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e trémula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiçosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho....

Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar pelos finos lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em cima do travesseiro macio como a flôr do algodoeiro....

E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n’um leve rictus de satisfação, de ventura.

Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n’uma pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:

— Permittes?....

E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.

II

 

O casamento realisado n’aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposições subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de não sei que espirito benefico, pazes feitas com abundantes expansões apaixonadas, reconciliações ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n’um enlevo.

O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação do homem rico que vive contentíssimo da sorte.

Creara para a filha um ideal — um casamento com um bacharel. Similhante aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo, — a mulher morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico, inviavel, — deixava a filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.

Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graças de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos d’ella, — duas bólas d’onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos; — os longos cabellos d’ébano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnação; aquelle bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade; — tudo n’ella prendia-lhe o enamorado espirito em os laços d’uma paixão tão sincera quanto profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d’ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d’elle, como desejando magnetisal-o.

Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado sentiu-se, que sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia, — elle que jámais fizera versos! — uma poesia em que abundavam as palavras — seductora virgem, divinal espirito archangélico, em uma terrivel mescla d’enormes pés quebrados, com grande escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.

Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.

Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da noiva, n’esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam.

E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!

Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um ósculo. O colete, que elle enfiava n’esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era tempo de ir para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão concentrado em suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, murmurando:

— Que bella dentadura, que tens!

III

 

Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa do velho pae de Paula, durante a longa e — para elle, — enfadonha conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n’uma poltrona, com a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado na palma da mão, opiniões em nada favoraveis á sua reputação de sobriedade em assumpto de succo de uva....

— Que te parece o gajo, hein? — diziam. — Pois isso é lá cousa que se faça? Embebedar-se no dia do casamento....

— Que escandalo!

— Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.

E seguiam por esta norma os commentarios — todos reçumando idéas gordurosas e indecentes.

Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com acompanhamento de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade após a ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaça do charuto, além de forcejar por combater a força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razão do abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, quando brindára, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que não trepidava em tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....

 

Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia espicaçar-lhe as costas, — ponderou de repente o sogro, sorrindo malicioso; — que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a toilette. Era natural aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocação da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n’uma pacata amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a felicidade d’aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou moraes que d’aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse, que lhe não desse trabalho em demasia para não a fatigar: o dóte d’ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braços d’uma indolencia salutar propicia á gordura....

E entrava em demoradas considerações a respeito da bôa vida, — como sectario da vadiação, que era.

Appareceu n’esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa dos noivos.

Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho e correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos dentes de Paula.

IV

 

A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.

Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos, d’aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam esgaravatando o chão.

E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....

E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa palpitante, ameaçando extinguir-se....

Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando n’elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre suas pétalas inodoras....

Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sêda branca escancaram as cavas, n’uma expressão de abhorrecimento pela demorada immobilidade, n’uma expressão de appello aos pés que devem calçal-os.

De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfação intima. E lá dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-núa, no inconsciente despudor de um somno que foi agitado...

Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n’um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito pállido e crispando as mãos, entra a tremer todo, com as feições demudadas, os cabellos arrepiados na cabeça encandescida!

Á cabeceira do leito, sobre o elegante guéridon de jacarandá, estava uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito de massa!.....

E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente....

Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado pela emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á beira do leito, lavado em lágrymas, a murmurar n’um gemido:

— Estou roubado, estou roubado!