(De um Diário da Revolta) 8 de fevereiro de 1894
...Determinação inesperada destacou-me para erigir urna fortificação ligeira ao lado do edifício das Docas Nacionais.
Ainda bem. Deixei, afinal, aquele tristonho morro da Saúde, que há dois meses retalho, e mino, e terrapleno, rasgando-lhe em degraus as encostas, taludando-o e artilhando-o, numa azáfama guerreira de que sou o primeiro a me surpreender. Lucro com a mudança. É uma variante ao menos. Livra-me do quadro demasiado visto daquele recanto comercial que a Revolta paralisou - circulado de trapiches desertos, atulhado pelo ciscalho bruto da ferragem velha da Mortona, e banhado pelas águas mortas de uma reentrância da baia, onde bóiam, apodrecendo, velhos pontões demastreados e inúteis.
Dei, por isto, para logo, rápidas ordens de partida, e os sapadores abalaram em turmas - incorretos pelotões armados de picaretas e enxadas.
Acompanhei-os; e não esqueci um adorável companheiro e mestre, Thomaz Carlyle, em cujas páginas nobremente revolucionárias me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo à força e desta engenharia malestreada...
Cheguei, em pouco, ao local indicado, encontrando novos trabalhadores. Um apontador da diretoria de obras militares, armado de ordem terminante do comandante da linha, e seguido de meia dúzia de praças, já havia percorrido as tavernas e vivendas pobres das cercanias, à cata de operários como quem busca criminosos. Avezado àquelas caçadas, não se demorara Em breve, algumas dezenas de estivadores, de varias nacionalidades - patriotas sob a sugestão irresistível dos rifles desembainhados e pranchadas iminentes - reforçaram as turmas desfalcadas.
Havia braços de sobra. Podia-se abordar a empresa da construção de mais uma Humaitá de sacos de areia, idêntica às que vêm hoje, debruando todo o litoral, desde o Flamengo à Gamboa.
A que se projetava, porém, requeria avantajadas proporções. Destinava-se a um Withworth 70, desentranhado da Armação (onde jazia desde a questão Christie) e vindo por terra, em longo rodeio, até aqui.
Pesado e desgracioso, alongando por sobre o reparo sólido, à maneira de um animal fantástico, o pescoço denegrido e áspero, ele parecia aguardar, ao lado, que lhe preparassem o estrado onde pudesse ser conteirado à vontade, rugindo, temeroso, sobre a rebeldia impenitente...
É o que sucederia, talvez, dentro de poucas horas.
Surdo boato, dos que por aí irrompem e se alastram, sem que se saiba de onde partem, lançara nas fileiras legais, comovidas, a nova de próximo embarque - toda a maruja revoltosa em terra, desencadeada em lances de desespero e ousadias.
Urgia por mãos à tarefa. Certo não desfaleceria da minha banda a defesa da Legalidade - belo eufemismo destes tempos sem leis.
Foi atacado o trabalho. Cento e tantos homens, agitantes sobre as ordens ríspidas, arcados sob os sacos cheios de areia ou arrastando-os, arrumando-os, superpostos, como grandes adobes de um muramento ciclópico, bracejavam durante o dia todo...
De sorte que ao chegar a noite, brusca e varada de chuvisqueiros intermitentes e frios, pude contemplar o meu prodígio de baluarte chinês, uma duna ensacada, erguida em poucas horas sobre a crista do cais, dominante e desafiando assaltos.
Protegidos por ela, e apagados, para maior resguardo, os lampiões de gás, da vizinhança, os carpinteiros principiaram a ajeitar os pranchões aparelhados, madeirando a plataforma.
Era a fase mais perigosa da empresa. Aquela agitação, que se realizara até ali sem ruídos, ia transmudar-se, pela ação estrepitosa dos martelos, precisamente na hora das surpresas, das repentinas visitas das torpedeiras traidoras.
Sustive-a, por isto, um momento, indeciso.
Considerei em torno...
Aquele trecho da Prainha espécie de White-Cheapel em miniatura, enredado de bitesgas tortuosas e estreitas, onde mourejava população ativa, parecia abandonado. Nem uma voz. Nem uma luz.
Em frente, no mar inteiramente calmo, avultavam, mal percebidos, os navios de guerra estrangeiros, destacando-se melhor os couraçados brancos da esquadra americana. Ao fundo, um cordão de pontos luminosos - Niterói. Adivinhavam-se ainda uns perfis de ilhas, as da Conceição e Mocanguê, vagos, numa difusão de sombras; e a silhueta apagada do Tamandaré junto à última, imóvel, calada a artilharia formidável, mudo na solidão das águas... Depois, para a direita, algumas lanternas bruxoleantes, asfixiadas nas brumas: a do forte de Gragoatá, a de Santa Cruz, mais longe, e a da fortaleza da Lage, intermitindo em cintilações longínquas, chofradas pelas ventanias ríspidas da barra.
Nada mais na tela obscurecida...
O cenário quadrava bem a um episódio habitual e dramático, que embora diuturnamente reproduzido não perde o traço emocionante e bárbaro.
Atravessando em silêncio a baía, o Vulcano, a Lucy ou qualquer outro sócio de catástrofes - caldeiras surdas, fogos abafados, avançando em deslizamentos velozes - abeira-se do litoral. Não o percebem as sentinelas, vigilantes no alto dos parapeitos...
De repente, arrebenta-lhes adiante, nas águas, a explosão de uma cratera. Desencadeia-se o alarma. Correm os soldados surpreendidos. Baqueiam alguns, baleados. A maioria alinha-se nas trincheiras, carabinas estendidas sobre o plano de fogo. Deflagram na treva os fulgores das descargas. Espingardeia-se por cinco minutos, o vácuo... e reinam de novo o silencio e as sombras, enquanto o rebocador, atacante, banhado nos últimos clarões do tiroteio, se afasta como uma salamandra enorme, intangível, engolfando-se na noite.
Ora, o trabalho a iniciar-se ia atrair, sem dúvida, um desses recontros rápidos e ferozes. Era, porém, improrrogável.
Um carpinteiro arriscou a primeira pancada, medrosa, vacilando. Depois outra, mais firme - um estalo dilacerador na mudez absoluta. Sucederam-se outras; e em breve, sem cadência, sacudidos pelos punhos trêmulos, vibrando na psicose convulsiva do medo mal refreado, estrepitavam os martelos sobre as tábuas.
Tirei o relógio. Uma hora da madrugada. Ia acordar o Rio de Janeiro todo com aquele despertador estranho que desandava, de chofre, à sua cabeceira.
Alguém, porém, fê-lo parar. As marteladas chegaram, alarmantes, ao escritório do Lóide, onde aquartelava o comandante da linha, e este veio em pessoa interrompê-las.
O bravo coronel - orgulho de Piauí - chegou dentro do seu dólmã vistoso e do estado maior alarmado Traía no afogo da respiração a caminhada feita e a emoção sagrada dos perigos. Ponderou a inconveniência daquela matinada heróica àquelas horas. Proibiu-a. E voltou marcialmente, seguido do estado maior brilhante num grande estrépito de espadas novas, batendo nas calçadas.
A medida era, afinal, prudente. Evitava-se que os revoltosos viessem, por sua vez, inquirir de tal ruído, com as habituais arrancadas e sacrifícios inúteis de inofensivos operários.
Suspensa a tarefa, estes se amontoaram por perto, abrigados pelo beiral saído de velho armazém acaçapado, mudos, tiritando sobre a calçada resvaladia e úmida.
E o silêncio desceu de novo, deixando distinguir-se, ao longo, o crepitar do tiroteio escasso duma sortida qualquer, insignificante, como tantas outras que se fazem todos os dias, pela tendência destruidora apenas, avultando, somadas, na crônica sombria da Revolta...
Atravessando, como dardos, à noite, os feixes de luz do refletor elétrico do morro da Glória destacavam-se no espaço, divergente e longos, fazendo surgir no giro amplíssimo - de súbito aclarados e logo desaparecendo - além, os navios de guerra numa passividade traidora; mais à frente Niterói, adormecida; a Armação, sinistra e deserta; e todas as angras, todas as angusturas, todas as ilhas, uma por uma, repontando e extinguindo-se, no volver da paisagem móvel e fantástica; distendo, a súbitas, num coruscar repentino de areias claras, a fita de uma praia remota; resvalando, logo depois, devagar, pelos pendores dos cerros; estirando-se, por fim, em distenção máxima, ate Magé, ao fundo da baía. E dali voltando, lentos, perquirindo, na marcha fulgurante, um por um todos os pontos fortificados; demorando-se um instante sobre a ilha das Cobras, e mostrando uma visão de Acrópole, meio derruída, naquela ponta de granito arremessada fora das ondas; deixando-a, e pondo uma nesga de luar errante sobre o convés revolto da Guanabara; deslizando dali para o costado arrombado da Trajano; e passando a outros pontos, banhando-os um a um no fulgor tranqüilo e forte - feito um olhar olímpico da Lei, insistente e fixo, sobre os combatentes...
Admirável quadro. Curvei-me sobre a canhoneira recém-construída. Contemplei-a e dei largas a fantasia caprichosa...
Imaginei-me, então, obscuríssimo comparsa numa dessas tragédias da antigüidade clássica, de um realismo estupendo, com os seus palcos desmedidos, sem telão e sem coberturas, com os seus bastidores de verdadeiras montanhas em que se despenhavam os heróis de Esquilo, ou o proscênio de um braço de mar, onde uma platéia de cem mil espectadores pudesse contemplar, singrantes, as frotas dos fenícios.
A ilusão é completa.
Vai para quatro meses que não fazemos outra coisa senão representar um drama da nossa história, de desenlace imprevisto e peripécias que dia a dia se complicam, neste raro cenário que nos rodeia.
A civilização, espectadora incorruptível, observa-nos, dentro de camarotes cautelosamente blindados: a França, na Arethuse veloz; a Inglaterra, entre as amuradas da Beagle veleira, cujos passeios diários fora da barra dão tanto que pensar; e a Alemanha, e os Estados Unidos, e o próprio Portugal sobre o convés pequeno da Mindello...
Aplaudem-nos?
É duvidoso. Representamos desastradamente. Baralhamos os papéis da peça que deriva num jogar de antíteses Infelizes, entre senadores armados até aos dentes, brigando como soldados, e militares platônicos bradando pela paz - diante de uma legalidade que vence pela suspensão das leis e uma constituição que estrangulam abraços demasiados apertados dos que a adoram.
Daí as antinomias que aparecem. Neste enredo de Eurípedes, há um contra-regra - Sardou. Os heróis desmandam-se em bufonerias trágicas. Morrem, alguns, com um cômico terrível nesta epopéia pelo avesso. Sublimam-se e acalcanham-se. Se há por aí Aquiles, não é difícil descobrir-lhes no frêmito da voz imperativa a casquinada hilar de Trimalcião.
E a Esfinge...
Mas interrompi este desfiar de conjecturas.
Aproximavam-se dois vultos. Nada tinham de alarmantes, porque a guarda, velando à entrada da rua, lhes permitira a passagem. Vinham à paisana. Chegaram até à borda da plataforma, onde uma lanterna clareava o estrado num raio de dois metros; e pararam.
Aproximei-me, saudando-os.
Um (reformado do Paraguai que a República retirou de um cartório de tabelião para o fazer senador e general), com aprumo varonil a despeito da idade, correspondeu-me britanicamente, corretíssimo e firme. O outro, murchou-lhe a mão num cumprimento frio...
À meia penumbra da claridade em bruxoleios, lobriguei um rosto imóvel, rígido e embaciado, de bronze: o olhar sem brilho e fixo, coando serenidade tremenda, e a boca ligeiramente refegada num rictus indefinível - um busto de duende em relevo na imprimidura da noite, e diluindo-se no escuro feito a visão de um pesadelo.
Reconheci-o e emudeci, respeitando-lhe o incógnito.
Vi-o logo depois abeirar-se da trincheira; e debruçar-se sobre o plano de fogo, e ali ficar meio minuto, pensativo, a vista cravada entre a afumadura das brumas, na outra banda da baía.
- Estão tranqüilos... murmurou.
Fez um gesto breve, despedindo-se, e seguiu acompanhado do companheiro desempenado e vivo, desaparecendo ambos a breve trecho - duas silhuetas agitando-se um momento, ao longe, ao brilho escasso de um lampião distante e embebendo-se depois, inteiramente, na noite...
Curvei-me, então, de novo, sobre a canhoneira recém-construída e reatei o meu sonhar acordado no ponto em que o interrompera:
...e a Esfinge, quebrando a imobilidade da pedra, veste um paletó burguês e vem - desconfiadamente confiante - rondar os lutadores...