Correspondência ativa de Euclides da Cunha em 1894

Rio, 7 de janeiro de 1894 editar

D. Túlia

Fui a S. Paulo e trouxe a Saninha e o filhinho. Estão em Palmeiras. À srª, como mãe de minha mulher, entendo dever fazer esta participação. Faço-a por escrito porque não a posso fazer a viva voz, impossibilitado como estou de entrar numa casa em que se me fez a mais dolorosa injustiça e aonde se ouviu complacentemente as calúnias lançadas por um beleguim sobre um rapaz honesto. Estou bem certo que o meu velho amigo o gal. Solon considerar-me-á sempre como mereço; mais conhecedor desta vida e mais experimentado, ele aquilatará melhor acerca destas coisas. Não veja nestas linhas o mínimo traço de rancor; escrevo-as perfeitamente sereno; a minha consciência ― tão agitada às vezes, está neste momento perfeitamente lúcida. Depois da triste desilusão que sofri, só tenho uma ambição; afastar-me, perder-me na obscuridade a mais profunda e fazer todo o possível para que os que tanto me magoam esqueçam-me, como eu os esqueço. Quando se terminar a agitação da nossa terra eu realizarei ainda melhor este objetivo, procurando um recanto qualquer dos nossos sertões. É uma coisa deliberada, visto como convenci-me afinal que a dignidade e toda a sensibilidade mesmo dos que vivem constantemente ocupados da própria honra, são, na nossa sociedade, coisas perigosas, que levam ao martírio.

Os meus amigos, que felizmente sabem o que valho, sabem quanto tenho sofrido.

Terminando estas linhas, acredito que a sra. justificará a minha ausência enquanto persistir sobre mim o juízo ofensivamente dúbio que fez de mim e ao qual absolutamente repilo.

Eu compreendo que me odeiem, mas eu não compreendo que tentem aviltar-me. Mais uma vez devo dizer que me resta a consolação de acreditar que o venerando amigo, cujo nome dei ao ente que mais estimo, cujo nome pois eu desejaria por isso mesmo ver bastante elevado, que o meu sogro em suma me fará mais justiça.

E se tal não se der, então é porque vai muito adiantada já a surda e traiçoeira conspiração que pressinto em torno de mim, restando-me permanecer num silêncio altivo e sobranceiro.

Terminando, devo pedir à sra. um último grande favor: que o meu nome não seja mais pronunciado na sua sala; desejo ser inteiramente esquecido.

Desculpai-me a extensão desta explicação.

Seu genro respeitador

Euclides da Cunha

Rio, 18 de fevereiro de 1894 editar

Sr. Redator

Em carta ontem publicada, dirigida ao redator d’O Tempo, o sr. João Cordeiro manifestou sentimentos de tal natureza, que, caso passem em silêncio, provocarão um grande e doloroso espanto no futuro, definindo pela pior maneira a feição atual da sociedade brasileira.

É muitíssimo justo que se deem a um amigo parabéns pelo malogro de um atentado covarde como aquele que, segundo se afirma, foi ideado à redação de O Tempo. É porém, profundamente condenável aliar-se à justíssima condenação de um crime uma represália talvez ainda mais criminosa. Assim é que o sr. João Cordeiro sugeriu o alvitre singular e bárbaro de lançar-se mão das mesmas armas criminosas e reduzir a retalho as prisões onde estão os rebeldes, etc…, caso não se possa conseguir o fuzilamento dos dinamitistas.

Confesso, sr. Redator, que uma tal proposição, ousadamente atirada à publicidade, num país nobilitado pela forma republicana, deve cair de pronto sob a revolta imediata dos caracteres, que na fase dolorosa que atravessamos tenham ainda o heroísmo da honestidade.

E necessário ainda que este protesto parta justamente dos arraiais daqueles que, pelo fato mesmo de lutarem sob a égide da lei, se consideram bastante fortes, para não descerem a selvatiquezas de tal ordem. E o que faço, desafiando embora a casuística singular que por aí impera, mercê da qual é fácil estabelecer-se a suspeição em torno das individualidades mais puras, tornando-as passíveis dos piores juízos.

Este protesto não exprime a quebra de solidariedade com os companheiros ao lado dos quais tenho estado; exprime simultaneamente um dever e um direito.

De fato, quem quer que tenha uma compreensão mais ou menos lúcida do seu tempo, deve procurar evitar a revivescência do barbarismo antigo; quem quer que seja medianamente altivo, pode afastar a camaradagem deprimente de quem almeja o morticínio sem os perigos do combate.

Euclides da Cunha, Engenheiro militar.

Rio, 20 de fevereiro de 1894 editar

Sr. Redator

A fim de reduzir corolários ilogicamente deduzidos da minha carta anterior, peço mais uma vez lugar nas colunas do vosso jornal, afirmando-vos que não renovarei este apelo ao vosso cavalheirismo, porque não devo malbaratear em polêmicas que se tornem pessoais o tempo que devo empregar trabalhando pelo meu pais. Afeito a proceder retilineamente, não temo os perigos das posições definidas, e afirmo mesmo que, por maiores que sejam aqueles, estas são sempre as mais cômodas.

As consequências que aprouve à redação d’O Tempo tirar das minhas palavras são tão profundamente irritantes e falsas, que exigem uma réplica imediata. Não sei que modalidades deva assumir a minha linguagem para fazer compreender aos que comigo lutam pela mesma causa com sentimentos diversos, que também condeno inexoravelmente a turbamulta perigosa que irrompe atualmente de todas as sociedades, planeando o mais condenável ataque a todo o capital humano, e tentando macular, cobrir com uma fumarada de incêndio o vasto deslumbramento do nosso século. Por isso mesmo que os condeno, é que entendo que eles devem cair esmagados pela reação de todas as classes; mas por isso mesmo que odeio os seus meios de ação repilo-os, entendendo que a reação pode perfeitamente, com maior intensidade, definir a serenidade vingadora das leis.

É necessário que tenhamos a postura corretíssima dos fortes! Não é invadindo prisões que se castigam criminosos. Nada mais falível e relativo do que esta justiça humana condecorada pela metafísica com o qualificativo de absoluta. Há nos sentimentos que ambos tributamos à República uma diferença enorme: V. x. tem por ela um amor tempestuoso e cheio de delírios de amante, eu tenho por ela os cuidados e a afeição serena de um filho.

Persisto, pois, na deliberação fortemente tomada de o não considerar como um companheiro de lutas.

O futuro dirá quem melhor cumpriu o seu dever.

Euclides da Cunha, primeiro tenente.

Campanha, 6 de junho de 1894 editar

Ilustre amigo general Solon

Saúdo-vos, desejando felicidades assim como a toda a família. Havia resolvido não escrever-vos tão cedo; motivos imperiosos entre os quais sobressaía o fato de não vos haver escrito durante a quadra dolorosa da vossa prisão, impediam-me que assim procedesse. As últimas notícias, porém, que acerca de vossa pessoa temos ultimamente parecem indicar que não terminaram os vossos dissabores. Assim é que hoje temos a vossa transferência para o 7º Distrito Militar, em Mato Grosso. Uma tal transferência, após a repreensão em ordem do dia do ajudante-geral, patenteia-me de sobra que o velho republicano a quem tanto deve a República, persiste na posição dificílima de não ser compreendido pelos que governam este país.

Permiti que vos fale, com a sinceridade de que sempre usei: eu não creio que aceiteis tal transferência!

Talvez não vos agrade esta maneira de exprimir-me — eu escrevo, porém, esta carta considerando a fronte imaculada de meu filhinho que tem o vosso nome e é vosso neto — e para o qual almejo entre os maiores bens do futuro a suprema felicidade de poder sentir-se ufano ante a vossa memória veneranda. Não aceiteis esta transferência de última hora.

Vosso lar honestíssimo é mais vasto, é muito mais amplo do que esse Mato Grosso que atualmente ninguém quer — e que tem desde os tempos monárquicos a função lamentável de prestar-se a todos os exílios disfarçados e hipócritas. A situação do nosso país é grave; eu sou dos que entendem que nós devemos todos formar ao lado do governo atual — isto porém não nos pode obrigar a fugirmos das imposições nobilitadoras da honra. Ninguém poderá ver no vosso ato sintomas de oposição.

Afastai-vos unicamente porque sois digno de maior consideração. Sereis assim franco com o governo que não quer ser franco convosco.

O general Fay dizia que a disciplina militar só é absoluta quando o soldado dá as costas para os seus concidadãos e a frente para o inimigo. Vós, meu venerando e heroico companheiro — fitais frente a frente os vossos concidadãos.

Se não pedistes tal transferência — não a aceiteis. Há uma coisa que para a nossa família e para a nossa Pátria vale mais que a vossa espada de general, é o vosso caráter de homem. Eu não vos posso aconselhar; — quando tivesse outros requisitos, sou muito moço ainda para tal — peço-vos porém que sondeis a vossa consciência de homem altivo e honesto; examinai o vosso passado de brilhante soldado da República, avaliai pelos dissabores que tendes tido toda a imensa brutalidade da injustiça humana; — se assim fizerdes estou certo que o velho republicano — que em troca de todas as contrariedades tem dado todas as energias à República, achará que tem razão quem lhe escreve, alentado pela afeição mais sincera e mais alta consideração.


Aceitai um abraço do genro e mais do que isso amº, sincero

Euclides Rodrigues da Cunha