VII
O erudito moralista que assina Alceste na Gazette de Paris, dedicou a Fradique Mendes uma Crônica em que resume assim o seu espírito e a sua ação:—«Pensador verdadeiramente pessoal e forte, Fradique Mendes não deixa uma obra. Por indiferença, por indolência, este homem foi o dissipador duma enorme riqueza intelectual. Do bloco de ouro em que poderia ter talhado um monumento imperecível—tirou ele durante anos curtas lascas, migalhas, que espalhou às mãos cheias, conversando, pelos salões e pelos clubes de Paris. Todo esse pó de ouro se perdeu no pó comum. E sobre a sepultura de Fradique, como sobre a do grego desconhecido de que canta a Antologia, se poderia escrever:—«Aqui jaz o ruído do vento que passou derramando perfume, calor e sementes em vão...»
Toda esta crônica vem lançada com a usual superficialidade e inconsideração dos Franceses. Nada menos refletido que as designações de indolência, indiferença, que voltam repetidamente, nessa página bem ornada e sonora, como para marcar com precisão a natureza de Fradique. Ele foi, ao contrário, um homem todo de paixão, de ação, de tenaz labor. E escassamente pode ser acusado de indolência, de indiferença, quem, como ele, fez duas campanhas, apostolou uma religião, trilhou os cinco continentes, absorveu tantas civilizações, percorreu todo o saber do seu tempo.
O cronista da Gazette de Paris acerta, porém, singularmente, afirmando que desse duro obreiro não resta uma obra. Impressas e dadas ao Mundo só dele conhecemos, com efeito, as poesias das LAPIDÁRIAS, publicadas na Revolução de Setembro, —e esse curioso poemeto em latim bárbaro, Laus Veneris Tenebrosae, que apareceu na Revue de Poésie et d’Art, fundada em fins de 69 em Paris por um grupo de poetas simbolistas. Fradique, porém, deixou manuscritos. Muitas vezes, na Rua de Varennes, os entrevi eu dentro dum cofre espanhol do século XIV, de ferro lavrado, que Fradique denominava a vala comum. Todos esses papéis (e a plena disposição deles) foram legados por Fradique àquela Libuska, de quem ele largamente fala nas suas cartas a Madame de Jouarre, e que se nos torna tão familiar e real «com os seus veludos brancos de Veneziana e os seus largos olhos de Juno».
Esta senhora, que se chamava Varia Lobrinska, era da velha família russa dos Príncipes de Palidoff. Em 1874 seu marido, Paulo Lobrinski, diplomata silencioso e vago, que pertencera ao regimento das Guardas Imperiais, e escrevia capitaine com t, e (capiténe) morrera em Paris, por fins de Outono, ainda moço, de uma lânguida e longa anemia. Imediatamente Madame Lobrinska, com solene mágoa, cercada de aias e de crepes, recolheu às suas vastas propriedades russas perto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Na Primavera, porém, voltou com as flores dos castanheiros,—e desde então habitava Paris em luxuosa e risonha viuvez. Um dia, em casa de Madame de Jouarre, encontrou Fradique que, enlevado então no culto das Literaturas eslavas, se ocupava com paixão do mais antigo e nobre dos seus poemas, o Julgamento de Libuska, casualmente encontrado em 1818 nos arquivos do castelo de Zelene-Hora. Madame Lobrinska era parenta dos senhores de Zelene-Hora, condes de Coloredo— e possuía justamente uma reprodução das duas folhas de pergaminho que contêm a velha epopeia bárbara.
Ambos leram esse texto heroico—até que o doce instante veio em que, como os dois amorosos de Dante, «não leram mais no dia todo». Fradique dera a Madame Lobrinska o nome de Libuska, a rainha que no Julgamento aparece «vestida de branco e resplandecente de sapiência». Ela chamava a Fradique Lúcifer. O poeta das LAPIDÁRIAS morreu em Novembro:—e dias depois Madame Lobrinska recolhia de novo à melancolia das suas terras, junto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Os seus amigos sorriram, murmuraram com simpatia que Madame Lobrinska fugira, para chorar entre os seus mujiques a sua segunda viuvez—até que reflorescessem os lilases. Mas desta vez Libuska não voltou, nem com as flores dos castanheiros.
O marido de Madame Lobrinska era um Diplomata que estudava e praticava sobretudo os menus e os cotillons. A sua carreira foi portanto irremediavelmente subalterna e lenta. Durante seis anos jazeu no Rio de Janeiro, entre os arvoredos de Petrópolis, como Secretário, esperando aquela legação na Europa que o Príncipe Gortchakoff, então Chanceler Imperial, afirmava pertencer a Madame Lobrinska par droit de beauté et de sagesse. A legação na Europa, numa capital mundana, culta, sem bananeiras, nunca veio compensar aqueles exilados que sofriam das saudades da neve: —e Madame Lobrinska, no seu exílio, chegou a aprender tão completamente a nossa doce língua de Portugal, que Fradique me mostrou uma tradução da elegia de Lavoski, A Colina do Adeus, trabalhada por ela com superior pureza e relevo. Só ela pois, realmente, dentre todas as amigas de Fradique, podia apreciar como páginas vivas, onde o pensador depusera a confidência do seu pensamento, esses manuscritos que para as outras seriam apenas secas e mortas folhas de papel, cobertas de linhas incompreendidas.
Logo que comecei a colecionar as cartas dispersas de Fradique Mendes, escrevi a Madame Lobrinska, contando o meu empenho em fixar, num estudo carinhoso, as feições desse transcendente espírito—e implorando, se não alguns extratos dos seus manuscritos, ao menos algumas revelações sobre a sua natureza. A resposta de Madame Lobrinska foi uma recusa, bem determinada, bem deduzida,—mostrando que, decerto sob «os claros olhos de Juno», estava uma clara razão de Minerva. «Os papéis de Carlos Fradique (dizia em suma) tinham-lhe sido confiados, a ela que vivia longe da publicidade, e do mundo que se interessa e lucra na publicidade, com o intuito de que, para sempre, conservassem o caráter intimo e secreto em que tanto tempo Fradique os mantivera: e nestas condições, o revelar a sua natureza, seria manifestamente contrariar o recatado e altivo sentimento que ditara esse legado...» Isto vinha escrito, com uma letra grossa e redonda, numa larga folha de papel áspero, onde a um canto brilhava a ouro, sob uma coroa de ouro, esta divisa —PER TERRAM AD COELUM.
Deste modo se estabeleceu a obscuridade em torno dos manuscritos de Fradique. Que continha realmente esse cofre de ferro, que Fradique, com desconsolado orgulho, denominava a vala comum, por julgar pobres e sem brilho no Mundo os pensamentos que para lá arrojava?
Alguns amigos pensam que aí se devem encontrar, se não completas, ao menos esboçadas, ou já coordenadas nos seus materiais, as duas obras a que Fradique aludia como sendo as mais cativantes, para um pensador e um artista deste século —uma Psicologia das Religiões e uma Teoria da Vontade.
Outros (como J. Teixeira de Azevedo), julgam que nesses papéis existe um romance de realismo épico, reconstruindo uma civilização extinta, como a Salambô. E deduzem essa suposição (desamorável) duma carta a Oliveira Martins, de 1880, em que Fradique exdamava, com uma ironia misteriosa:—«Sinto-me resvalar, caro historiador, a práticas culpadas e vãs, Ai de mim, ai de mim, que me foge a pena para o mal! Que demônio malfazejo, coberto do pó das Idades, e sobraçando in-fólios arqueológicos, me veio murmurar uma destas noites, noite de duro Inverno e de erudição decorativa:—«Trabalha um romance! E no teu romance ressuscita a antiguidade asiática!?» E as suas sugestões pareceram-me doces, amigo, duma doçura letal! . . . Que dirá você, dileto Oliveira Martins, se um dia desprecavidamente no seu lar receber um tomo meu, impresso com solenidade, e começando por estas linhas:—«Era em Babilônia, no mês de Sivanu, depois da colheita do bálsamo?...» Decerto, você (daqui o sinto) deixará pender a face aterrada entre as mãos trêmulas, murmurando:—«Justos Céus! Aí vem sobre nós a descrição do templo das Sete Esferas, com todos os seus terraços! a descrição da batalha de Halub, com todas as suas armas! a descrição do banquete de Semacherib, com todas as suas iguarias!... Nem os bordados duma só túnica, nem os relevos dum só vaso nos serão perdoados! E é isto um amigo íntimo!»
Ramalho Ortigão, ao contrário, inclina a crer que os papéis de Fradique contêm Memórias— porque só a Memórias se pode coerentemente impor a condição de permanecerem secretas.
Eu por mim, dum melhor e mais contínuo conhecimento de Fradique, concluo que ele não deixou um livro de Psicologia, nem uma Epopeia arqueológica (que certamente pareceria a Fradique uma culpada e vã ostentação de saber pitoresco e fácil), nem Memórias—inexplicáveis num homem todo de ideia e de abstração, que escondia a sua vida com tão altivo recato. E afirmo afoitamente que nesse cofre de ferro, perdido num velho solar russo, não existe uma obra— porque Fradique nunca foi verdadeiramente um autor.
Para o ser não lhe faltaram decerto as ideias —mas faltou-lhe a certeza de que elas, pelo seu valor definitivo, merecessem ser registadas e perpetuadas: e faltou-lhe ainda a arte paciente, ou o querer forte, para produzir aquela forma que ele concebera em abstrato como a única digna por belezas especiais e ares, de encarnar as suas ideias. Desconfiança de si como pensador cujas conclusões, renovando a filosofia e a ciência, pudessem imprimir ao espírito humano um movimento inesperado; desconfiança de si como escritor e criador duma Prosa, que só por si própria, e separada do valor do pensamento, exercesse sobre as almas a ação inefável do absolutamente belo —eis as duas influências negativas que retiveram Fradique para sempre inédito e mudo. Tudo o que da sua inteligência emanasse queria ele que, perpetuamente, ficasse atuando sobre as inteligências, pela definitiva verdade ou pela incomparável beleza. Mas a crítica inclemente e sagaz, que praticava sobre os outros, praticava-a sobre si, cada dia. com redobrada sagacidade e inclemência. O sentimento, tão vivo nele, da Realidade fazia-lhe distinguir o seu próprio espírito tal como era, na sua real potência e nos seus reais limites sem que lho mostrassem mais potente ou mais largo esses «fumos da ilusão literária» — que levam todo o homem de letras, mal corre a pena sobre o papel, a tomar por faiscantes raios de luz alguns sujos riscos de tinta. E concluindo que, nem pela ideia, nem pela forma, poderia levar as inteligências persuasão ou encanto, que definitivamente marcassem na evolução da razão ou do gosto—preferiu altivamente permanecer silencioso. Por motivos nobremente diferentes dos de Descartes, ele seguiu assim a máxima que tanto seduzia Descartes—bene vixit qui bene latuit.
Nenhum destes sentimentos ele me confessou; mas todos lhos surpreendi, transparentemente, num dos derradeiros Natais que vim passar à Rua de Varennes, onde Fradique pelas festas do ano me hospedava com imerecido esplendor. Era uma noite de grande e ruidoso Inverno: e desde o café, com os pés estendidos à alta chama dos madeiros de faia que estalavam na chaminé, conversávamos sofre a África e sobre religiões Africanas. Fradique recolhera na região do Zambeze notas muito flagrantes, muito vivas, sobre os cultos nativos— que são divinizações dos chefes mortos, tornados pela morte mulungus, Espíritos dispensadores das coisas boas e más, com residência divina nas cubatas e nas colinas onde tiveram a sua residência carnal; e, comparando os cerimoniais e os fins destes cultos selvagens da África, com os primitivos cerimoniais litúrgicos dos Árias em Septa-Sandou, Fradique concluía (como mostra numa carta desse tempo a Guerra Junqueiro) que na religião o que há de real, essencial, necessário e eterno é o Cerimonial e a Liturgia—e o que há de artificial, de suplementar, de dispensável, de transitório, é a Teologia e a Moral.
Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços de vida e de natureza africana, com que vinham iluminadas e sorrindo, seduzido:
—Fradique! por que não escreve você toda essa sua viagem à África?
Era a vez primeira que eu sugeria ao meu amigo a ideia de compor um livro. Ele ergueu a face para mim com tanto espanto, como se eu lhe propusesse marchar descalço através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia:
—Para quê?. . . Não vi nada na África, que os outros não tivessem já visto.
E como eu lhe observasse que vira talvez dum modo diferente e superior; que nem todos os dias um homem educado pela filosofia, e saturado de erudição, faz a travessia da África; e que em ciência uma só verdade necessita mil experimentadores — Fradique quase se impacientou:
—Não! Não tenho sobre a África, nem sobre coisa alguma neste Mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valesse a pena registar... Só podia apresentar uma série de impressões , de pa isagens. E então pior! Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual, ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!
Protestei, rindo, contra aquela generalização inteiriça, que tudo varria, desapiedadamente. E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé que nos aquecia, naquele velho bairro de Paris onde se erguia a Sorbona, o Instituto de França e a Escola Normal, muitos homens houvera, havia ainda, que possuíam do modo mais perfeito a «bela arte de dizer».
—Quem?—exclamou Fradique.
Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os ombros, com uma irreverência violenta que me emudeceu. E declarou logo, num resumo cortante, que nos dois melhores séculos da literatura francesa, desde o meu Bossuet até Beaumarchais, nenhum prosador para ele tinha relevo, cor, intensidade, vida. E nos modernos nenhum também o contentava. A distensão retumbante de Hugo era tão intolerável como a flacidez oleosa de Lamartine. A Michelet faltava gravidade e equilíbrio; a Renan solidez e nervo; a Taine fluidez e transparência; a Flaubert vibração e calor. O pobre Balzac, esse, era duma exuberância desordenada e barbárica. E o preciosismo dos Goncourt e do seu mundo, parecia-lhe perfeitamente indecente...
Aturdido, rindo, perguntei àquele «feroz insatisfeito» que prosa pois concebia ele, ideal e miraculosa, que merecesse ser escrita. E Fradique, emocionado (porque estas questões de forma desmanchavam a sua serenidade), balbuciou que queria em prosa «alguma coisa de cristalino, de aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por si, plasticamente, realizasse uma absoluta beleza —e que expressionalmente, como verbo, tudo pudesse traduzir, desde os mais fugidios tons de luz até os mais subtis estados de alma...»
—Enfim—exclamei—uma prosa como não pode haver!
—Não!—gritou Fradique—uma prosa como ainda não há!
Depois, ajuntou, concluindo
—E como ainda a não há, é uma inutilidade escrever. Só se podem produzir formas sem beleza: e dentro dessas mesmas só cabe metade do que se queria exprimir, porque a outra metade não é redutível ao verbo.
Tudo isto era talvez especioso e pueril, mas revelava o sentimento que mantivera mudo aquele superior espírito—possuído da sublime ambição de só produzir verdades absolutamente definitivas, por meio de formas absolutamente belas.
Por isso, e não por indolência de meridional como insinua Alceste, —Fradique passou no mundo, sem deixar outros vestígios da formidável atividade do seu ser pensante, além daqueles que por longos anos espalhou, à maneira do sábio antigo, «em conversas com que se deleitava, à tarde, sob os «plátanos do seu jardim, ou em cartas, que eram ainda conversas naturais com os amigos de que as ondas o separavam...» As suas conversas, o vento as levou—não tendo, como o velho Dr. Johnson, um Boswell, entusiasta e paciente, que o seguisse pela cidade e pelo campo, com as largas orelhas atentas, e o lápis pronto a tudo notar e tudo eternizar. Dele pois só restam as suas cartas—leves migalhas desse ouro de que fala Alceste, e onde se sente o brilho, o valor intrínseco, e a preciosidade do bloco rico a que pertenceram.