QUESTÕES SOCIAIS

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Revolucionários

(Publicado em Província de São Paulo, 29 dez. 1888)

O republicano brasileiro deve ser, sobretudo, eminentemente revolucionário.

Expliquemos o paradoxo.

A noção elevada de Pátria despida da feição sentimental que a caracterizava, assume hoje as proporções de uma brilhante concepção cerebral, em que entram como elementos únicos, necessários e claramente correlativos, as concepções do tempo e do espaço.

Mais, talvez, do que filho de uma região, o homem da modernidade é filho do seu tempo.

Vinculado ao território pelas tradições e pela família, a humanidade que é a generalização desta, e a história, que é a síntese racional daquelas, vinculam-no a seu século.

Da perfeita harmonia dessas concepções resulta o homem moderno.

Compreender a Pátria, isolando qualquer desses elementos, é incompatibilizar-se com o movimento evolutivo do progresso; é partir do egoísmo infecundo e criminoso de Bismarck ao altruísmo exagerado — ao cosmopolitismo não menos infecundo de Anarcasis Cloots, declarando-se cidadão do mundo!

A marcha das sociedades traduz-se melhor pelo equilíbrio dinâmico destas duas concepções.

Devemos aos esforços comuns das gerações passadas a altitude prodigiosa de sua individualidade; preso pelas impressões do presente ao território da Pátria — o cidadão moderno, na elevação enorme em que o princípio geral da relatividade o obriga a colocar seu espírito — desde que pense no futuro — elevação a que só atingiu pela ciência — dominado pelo cosmopolitismo desta irmana-se forçosamente a seus coevos.

É uma fraternidade que se estabelece pelo cérebro e pelo coração; é um sentimento orientado pelo raciocínio, cuja existência se demonstra com a mesma frieza, tão positivamente como um princípio de mecânica e do qual a feição mais característica se chama — civilização.

É esta, de fato, a nossa Pátria no tempo.

Negá-la é negar a função mais elevada da ciência; da ciência que além de estabelecer, pelo desenvolvimento filosófico de suas teorias, a vasta solidariedade do espírito humano, sob a sua forma empiricamente útil, como arte subordinada inteiramente a esta solidariedade, às grandes exigências da vida moderna.

Pois bem, a política do século XIX chama-se democracia; de há muito a colaboração de todas as ciências e das tendências naturais de nosso temperamento, despiu-a do frágil caráter de uma opinião partidária, para revesti-la da fortaleza da lógica inquebrantável de uma dedução científica. Em sociologia, eu creio que, observando-se o sistema social, chega-se a ela tão naturalmente como Lagrange à fórmula geral da dinâmica. Assim, não é uma forma de governo que se adota, é um resultado filosófico que se é obrigado a adotar: forma-se um democrata como se faz um geômetra, pela observação e pelo estudo; e, nessa luta acirrada dos partidos, por fim o republicano não vencerá — convencerá; e tendo enfim dominado os adversários, não os enviará à guilhotina, manda-los-á para a escola. A democracia é, pois, uma teoria científica inteiramente desenvolvida, simboliza uma conquista de inteligência, que a atingiu na Sociologia depois de se ter avigorado pela observação metódica da vasta escala da fenomenalidade inferior; síntese final de todas as energias racionais (podemos assim dizer), que impulsionaram as evoluções políticas de todas as nacionalidades, e definindo — na Política — o fastígio da mentalidade humana, é hoje impossível, com abstração dela, uma compreensão exata da civilização.

Pois bem, se tudo isto se dá, se de fato ninguém deve fugir à ação de seu tempo e se a democracia é a forma de governo mais em harmonia com ele — é claro que lutarmos pela sua realização, equivale a lutarmos para que se complete o nosso título de cidadãos — porque ela é, de fato, o complemento moral da Pátria.

Essa luta, porém, é francamente reacionária.

Nem deve, nem pode deixar de ser assim.

Não podendo entregar o seu desenvolvimento à vagarosa evolução do espírito popular; descrente da política do seu país, em que a maioria dos estadistas estuda "para saber errar convenientemente": agindo, além disto, num Estado que realiza o deplorável fenômeno histórico de possuir sessenta anos de vida política e quase mil de inervação monárquica, porque, importando o trono da dinastia de Bragança, adquiriu todo o velho carrancismodas dinastias portuguesas; por outro lado, impelindo pelas tradições de sua terra — repletas de um majestoso rumor revolucionário — cheia de encantadora magia dos mais belos exemplos, desde o estoicismo heróico de Tiradentes à heróica abnegação de Nunes Machado — o republicano brasileiro deve ser forçosamente revolucionário.

Demais — digamo-lo ousadamente —, a própria orientação filosófica que o dirige, obriga-o a destruir.

Destruir — para construir.

Ora, destruir, no organismo social o tóxico lentamente infiltrado, é aplicar os antídotos violentos dos casos desesperados.

Por mais refletido que seja — ou, melhor, por isso mesmo — o republicano, desde que as suas ideias exerçam assim a função de reagentes — que lhe preparam o terreno próprio à realização dos ideais, que têm unicamente a existência subjetiva de seu espírito — é forçado a revesti-las do máximo vigor e desassombro extremo. Descansem, porém, os que se assustam com este título: Revolucionários — ele, além de exprimir uma loouvável tendência a nivelar-se a seu século, realiza o verdadeiro tipo de propagandista, não de uma opinião política, mas de uma necessidade social.

Este epíteto — ele não o adota ad libitum — aceita-o; aceita-o como corolário inevitável do conflito da ação positiva de seu espírito sobre a influência negativa do regímen antigo. Inteligente — se ao estado atual de seu país obriga-o a ser inflexivelmente enérgico — o estado atual de seu tempo obriga-o a ser calmo; é alguma coisa semelhante ao temperamento tempestuoso de Danton dentro da disciplina mental de Condorcet: e quando amanhã de larga expansão à sua vitalidade, ve-lo-ão, rígido e inexorável, despedaçar, com o mesmo golpe, o trono e a guilhotina.

Proudhon

Revolucionários

(Publicado em Província de São Paulo, 4 jan. 1889)

Em um de seus livros, Pelletan, ressuscitando — galvanizada pelo seu espírito poderoso — uma sociedade morta, apontou como origem da grande revolução o reinado de Luís XIV.

Observador admirável, armado de uma lógica vigorosa, constantemente apoiada nas verdades históricas, demonstra a sua asserção de uma maneira genial, nitidamente — golfando a grande cintilação de sua pena dentro da profunda decomposição da escandalosa corte do Grande-Rei…

De fato, não se pode fixar como início da Revolução Francesa a convocação dos Estados Gerais em 89.

Como todos os fenômenos históricos de influência geral sobre os destinos das nacionalidades, ela exprime claramente o resultado das ações de todos os povos, em todos os tempos.

Pascal, numa alegoria admirável — em que exprime brilhantemente a lei da continuidade dos esforços humanos — sintetiza a humanidade num indivíduo secular, enorme, eterno — que irrompe através dos séculos e cuja existência se prolonga pela extensão indefinida das idades.

Essa entidade abstrata, que cresce e se avoluma a todo instante — cuja vida é feita das experiências das gerações desaparecidas, traduz uma lei no seu movimento firme, retilíneo e invencível para o futuro.

Como todas as leis naturais — esta é indestrutível.

Modificar esse movimento é infringi-la. Demorá-lo de um segundo ou de um século, é suprir o trabalho que devia ser realizado, por uma acumulação proporcional de energia que afinal o realizará — brutal, enérgica e precipitadamente.

Daí as agitações da história; as revoluções — perturbações impressas no movimento tranq uilo do progresso, inteiramente subordinado a uma lei, que é como uma força constante — a Evolução.

O trono de Luís XIV — que é afinal o de Luís XVI — antepôs-se-lhe afrontosamente; a evolução estacou — condensou a sua energia prodigiosa durante dois séculos e afinal, excitada pelo lirismo revolucionário dos Enciclopedistas, precipitou-se em 89…

O que o desdobramento natural dos acontecimentos devia fazer em três séculos — a revolução fez em três meses.

Abertos os Estados Gerais em 5 de maio — o presidente do terceiro Estado comete a irreverência de não querer falar de joelhos a S.M., segundo a prática tradicional.

No dia 17 de junho — rompendo com as ordens privilegiadas — o terceiro Estado assume altivamente o título de Assembléia Nacional.

No dia 20 — jura não se dispersar sem dar Constituição à França.

No dia 22 — à intimativa real de dispersar-se — calmo, altivo e indomável, Sieyès replica:

"Parece que a nação reunida não pode receber ordens."

Era uma coisa nova na História.

14 de julho — a revolução inicia a sua ação material.

Finalmente, na noite memorável de 4 de agosto, decreta os seus princípios imortais, no dizer de um escritor ilustre — a "Carta da Liberdade do Gênero Humano!…"

A revolução devia ter parado aí.

Foram demais o assassinato de um rei e o regímen sinistro do Terror.

Em breve, Paris se apresentará ao mundo sob a sua forma mais augusta e mais nobre. Proclamará a vitória mais brilhante desses combates ideais do progresso, que se tornam cada vez mais sérios à proporção que cresce a civilização e cada vez mais sangrentos à proporção que se tornam mais sérios.

Então, colocando num mesmo espaço em comum, os resultados mais elevados da atividade humana, irmanando pelas suas mais brilhantes ações as nacionalidades todas e fazendo talvez de sua Exposição a primeira manifestação real de uma grande utopia: a Federação Universal das Nações — Paris realizará o sonho deslumbrante daqueles revolucionários heróicos e bons, que o povo de Versalhes via comovido, na noite de 20 de junho, correndo as suas ruas em procura de uma sala, pois que não tinham onde prestassem o juramento sublime — de salvar o mundo!…

Proudhon

ATOS E PALAVRAS

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(Província de S. Paulo, 10 jan. 1889)

Como preâmbulo a esta seção — definamo-nos.


Não nos destinamos à imprensa.

Os artigos aqui escritos exprimirão parêntesis abertos em nosso estudo e torná-los-emos reflexos dele.

Excluímos o estilo campanudo e arrebicado. A idéia que nos orienta tem o atributo característico das grandes verdades — é simples.

Estudá-la é uma operação que requer mais que as fantasias da imaginação — a frieza do raciocínio.

Analisá-la, dia a dia, é uma coisa idêntica à análise da luz: é preciso que se tenha no estilo a contextura unida, nítida e impoluta dos cristais.

Lutar por ela, desenvolvê-la, fixá-la no seio da nossa nacionalidade é fazer todo instante, continuamente — apelo à orientação segura do pensamento.

Nessa luta ideal, pois, apaixonar-se é enfraquecer-se.


Indignar-se é tornar-se indigno.

A democracia, que é antes de tudo uma idéia altamente séria, começa a receber o ataque grotesco dos garotos assalariados.

Não podendo feri-la num combate leal, frente a frente, a plutocracia mal disfarçada declara-lhe a campanha do descrédito.

A vitória consistirá nisto — desmoralizar.

Diante da palavra de Silva Jardim põe escandalosamente a navalhada dos capangas.

Ante a postura retilínea de Quintino Bocaiúva — as contorções tristemente ridículas do senhor Patrocínio.

Em frente da Pátria — a guarda negra.

Diante de tudo isto, o republicano, o revolucionário brasileiro, não só pelo antagonismo natural da posição, mas sobretudo pela própria essência de seus princípios, deve-se conservar austero e inflexível.

Precisa destruir e tendo espírito bastante para reconhecer que a verdade é nas sociedades decadentes elemento de destruição — adota-a.

De fato, para defender-se e ofender basta-lhe isto — dizer a verdade.

Di-la-emos.

Para sermos invencíveis na posição que ocupamos basta-nos registrar os atos e palavras dos partidos que se digladiam.

Fá-lo-emos, contudo, através do nosso temperamento.

Escreveremos um depoimento libelo.

Seremos — testemunha e juiz.


(Província de S. Paulo, 11 jan. 1889)

Temos como desigual qualquer luta com nossos adversários. Sugere-nos esta afirmativa a consciência da própria força.

Não vai nela violação de modéstia.

Ante a fortaleza do pensamento, a extensão das ideias exerce função idêntica ao comprimento das alavancas ante a força material — multiplica-a.

Desiludam-se os que acreditam que somos motores da propaganda republicana; ela é que nos impulsiona para o futuro e todo o nosso trabalho — na imprensa ou na tribuna — consiste em transmitir à pátria o movimento que nos impele a fazê-la caminhar conosco.

Nosso desideratum é este — propagar, comunicar um movimento adquirido.

Não nos preocupa a idéia de o conseguirmos ou não.

Sentimo-nos fortes — e isto nos basta.

Sentimos a firmeza positiva de nossas ideias e isto nos consola; porque se amanhã, por uma disposição qualquer de circunstâncias, tiverem de cair, terão a queda aparente dos astros — assim como estes desaparecem no horizonte para surgirem em outro, em vista do próprio movimento da Terra — porque eles não caem — aquelas se obscurecem num século — para surgirem em outro — em vista do próprio movimento das sociedades — porque elas não morrem…

Os antagonistas da propaganda republicana pertencem a diversas categorias.

É uma coisa difícil classificá-los.

Vão desde o áulico de recente data — em geral ex-demagogo, ex-petroleiro — tristemente desfrutável que ainda há pouco fulminava com letras maiúsculas o trono, a tirania etc., na melopéia monótona de uns alexandrinos defeituosos — ao conservador de velha data — austero, rígido, mas teimoso, imperterritamente imóvel ante o choque das ideias — como a estátua de Glauco ante o embate das ondas…

Qualquer, porém, é extremamente fraco, o que mais ainda nos fixa a convicção de que travamos um combate desigual.

A evidência disto manifesta-se na argumentação de que usam e abusam desapiedadamente.

Sem lógica — porque os princípios que adotam, por extremamente arbitrários, não comportam conclusões positivas e racionais, apegam-se a uns velhos argumentos, gastos, moídos e remoídos pelos prelos de todos os tempos e lugares… mudam-lhes o colorido do estilo para parecerem novos.

Certos de que são extremamente fracos, fazem com eles uma espécie notável de guerra de emboscada — assim é que quase sempre os vemos surgindo de uns períodos obscuros e impenetráveis, eivados de uma adjetivação caprichosa e de uma tecnologia arbitrária.

Sempre envoltos numa frase sonora — o que atesta claramente ser ela, antes de tudo — oca.

Ora se utilizam da mesma balela — que consiste em apontar na história as repúblicas infelizes — e, afoitos, impõem à pobre inteligência uma peregrinação imensa pelos séculos afora — quando, sem abandonarem o seu tempo, encontram as grandes repúblicas da Europa e da América.

Ora, tomando ingenuamente ao pé da letra a fórmula "governo do povo pelo povo", entendem que este, atrasado como está, não se pode governar. É um triste argumento este.

Esta fórmula diz que todo cidadão pode se tornar apto para dirigir.

O governo republicano — digamo-lo sem temor — é naturalmente aristocrático — os pergaminhos dessa nobreza, porém, ascendem numa continuidade admirável, das oficinas às academias.

É o governo de todos por alguns — mas estes são fornecidos por todos.

Outros, porém, dão uma altitude especial à argumentação, encarando a idéia de uma maneira mais original e mais séria.

Assim fazendo, confessam que ensarilham as armas ante o sistema geral de seus princípios.

Vão mais longe — adotam-no inteiramente ante as duas ciências superiores — Moral e Sociologia — de onde se derivam as noções positivas do dever e do direito.

Reconhecem que possui todos os elementos de ordem e que se presta à organização geral da sociedade.

Concluem daí forçosamente — que é superior a todos. Mas combatem-no porque prevê as anomalias de sua adaptação empírica — aceitam a sua dinâmica — julgam-na inconveniente.

É sempre mau fazer-se juízo antecipado.

De mais, a sociologia é uma ciência que começa, e, portanto, incapaz de realizar a previsão no campo dos fenômenos que estuda.

Na frase de Kant — qualquer noção da realidade deve se basear na experiência. Ninguém pode afirmar as concreções anômalas do sistema republicano.

A bem disto, como se aceita a sua estática e repele-se a sua dinâmica?

Se a julgam própria ao estabelecimento da ordem, por que não a seu desenvolvimento — o progresso — que é menos difícil?

Que espécie de argumentação é esta — consistindo em atribuir uma função má a um orgão reconhecido bom, quando aquela depende unicamente deste?

A própria biologia diz que isso é um contra-senso.

(Província de S. Paulo, 12 jan. 1889)

Por nossa parte recebemos também, com sincera satisfação, o aparecimento da guarda negra.

Este fato, aparentemente assustador — indica-nos unicamente a subordinação necessária dos acontecimentos às leis necessárias.

Toda reação é oposta à ação.

Ante o batalhão sagrado do futuro, iluminado e audaz, ela devia aparecer escura e obscura.

Não compreendemos, contudo, o entusiasmo que tem despertado em alguns, nem o temor que tem infundido em outros.

Achamos igualmente exagerados os ditirambos harmoniosos e os artigos violentos, que lhe têm pairado em torno.

Temo-la por intensamente fraca, por ser enormemente ridícula.

Essa pobre gente, assim tragicomicamente postada ao lado do trono, não tem por certo a audácia indomável dos thugs nem certamente — nas veias — sinistro — o veneno embriagador do haschisch.

Um jornalista da corte apontou-a como causa provável de um conflito de raças — como o que se deu e não terminou ainda de todo nos Estados Unidos. Não cremos que isto se dê.

Como tudo o que é anormal, isto não é geral.

Demais, a raça negra, em sua essência nimiamente afetiva, harmoniza-se admiravelmente à latina, profundamente vinculada à nossa sociedade — constituindo-a quase; a separação que deveria preceder a esse conflito teria o caráter de uma extirpação — o que é impossível.

Três séculos de contínua exploração e subordinação forçada — não conseguiram abastardar-lhe o gênio, e, durante esse tempo, ela aliou às nossas mais gloriosas tradições o nome de seus filhos.

Não a confundamos com a guarda negra.

Esta simboliza, na tez denegrida, uma espécie tristíssima de eclipse total da moralidade e da inteligência.

Aquela tem na história, como dinamômetro à sua fortaleza, a espada impetuosa de Henrique Dias e a sua verdadeira cor irradiou na fronte iluminada de Luís Gama.

Afinal a guarda negra não deve inspirar ódio, nem medo — inspira compaixão. Deve-se ver nela a parcela mais infeliz de sua raça.

Liberta de uma exploração odiosa, pelo decreto de 13 de maio, caiu pelo mesmo decreto noutra exploração.

Saiu da exploração dos senhores para a exploração dos escravos.

E criou-se, afirmam, não para o atacar, mas para resistir; entretanto, vê-se bem, que de si mesma ela é um ataque à ordem da sociedade, pela infração flagrante da moral, revestida como está de um caráter escandaloso — o da ociosidade legalizada.

Criou-se para resistir; não sabemos a quem.

Uma vaidade natural — impede-nos de conjeturar sequer que seja uma resistência a nossos atos. Na posição em que nos achamos, não nos podem atingir os trágicos de Offenbach.

Aceitamos impávidos o combate mais brilhante e mais rude das ideias.

Obedecemos mais que aos impulsos da razão; à fórmula antiga

"querer é poder"

substituímos a fórmula profundamente elevada.

"dever é poder."

Acreditar, pois, um só instante que são nossos adversários, equivale a abdicarmos voluntariamente de nossa honra e de nosso brio.

O seu aparecimento, contudo, nos satisfaz plenamente — é a primeira manifestação da força material — é a primeira manifestação de fraqueza.

(Província de S. Paulo, 15 jan. 1889)

O Sr. D. Pedro de Alcântara ali a um grande espírito um grande coração, afirmam convictos os tiribulários de seu reinado. Façamos um esforço — admitamos isto.

Empiricamente, esta hipótese é a mais valiosa que possuímos, a fim de atingirmos a demonstração da tese que advogamos.

Ampliada pelo estudo, robustecida pelo vigor de seu temperamento exuberante de meridional, a sua inteligência percorreu por certo, inteira, a curva desmesurada com a qual Vico simboliza o curso da evolução humana.

A ciência foi, sem dúvida, a Ariadne salvadora que o orientou, nessa romagem olímpica através do tumulto das gerações desaparecidas; para isto, subordinou, certamente, seu espírito à disciplina inviolável, fazendo-o ascender, metódica e brilhantemente, da simplicidade admirável dos princípios gerais da matemática à espantosa complicação dos fenômenos sociais.

Inclinado à astronomia — grande astrônomo, segundo propalam — deve possuir no pensamento brilho e amplitude para seguir a órbita imensa e iluminada dos mundos…

Erudito e profundo — tem por vezes deixado esta nossa terra retrógrada e inculta, para seguir, ansioso, a deslumbrante miragem da civilização, que lhe acena do alto das capitais da Europa; e lá, ombreando-se aos diretores do espírito contemporâneo, asseveram, os brilhos de sua coroa têm-se obscurecido ante a cintilação de sua fronte…

Democrata, sonhador e cavalheiro — abraçou como a um companheiro de armas ao heróico atleta da liberdade — ao velho mais moço do mundo — que, ao morrer, nos legou, a nós sonhadores também, o seu grande ideal, na grandiosa harmonia de seus alexandrinos imortais.

Ainda há pouco, uma república sul-americana manifestou desejos de galardoá-lo com uma dádiva riquíssima e S.M. — correto e delicado — pediu que lhe mandassem antes, dentro dos livros de seus escritores, a sua alma profundamente artística e elevada de nacionalidade inteligente e civilizada.

Ante este fato — entoaram-lhe as loas habituais; o velho turíbulo oficial fervorosamente agitado — encheu o ambiente moral da pátria — com as suas emanações puríssimas e purificadoras, e mais uma vez ante as multidões, S.M. apareceu tendo na fronte em vez de uma coroa — um nimbo imaculado e casto.

Pois bem — justamente porque S.M. é um homem de espírito —, justifica-se a posição dos únicos homens de espírito desta terra.

Justamente porque o Imperador é bom — devem aumentar-se os esforços dos que entendem como uma coisa demonstrada — que o Império é mau.

Como homem de espírito — compreende que os fenômenos sociais são fenômenos naturais de uma ordem mais elevada, mais especial e mais complicada e que, assim como não se violam aqueles, não se violam estes; pode certamente descortinar — no campo da sociologia descritiva — através da desarmonia secular das raças e das sociedades, a marcha retilínea e imutável das leis naturais da civilização. Sabe que há uma lógica diretora dos acontecimentos — lógica que nos faz ver nos períodos aparentemente os mais sombrios da história, as épocas mais brilhantes da humanidade — que nos faz descortinar através do despotismo da Idade Média, o renascimento prodigioso das crenças e das ideias, que, em breve, irromperiam na modernidade, envoltas no fulgor das teses admiráveis de Lutero… Tem consciência de que as ideias são funções que definem um certo estado de organização social; sabe e acreditamos que a própria fisiologia lhe ensinou isto, que, se elas se incompatibilizam com os órgãos produtores, extinguem-se por si mesmas, pela reação natural dos meios em que aparecem — mas que se definem positivamente o estado destes, para destruí-los — será preciso destruí-los, o que é naturalmente impossível. Ninguém destrói uma sociedade; ninguém a faz parar sem abalos; seria absurdo este idêntico ao de quem pretendesse supor a imobilização instantânea da Terra, sem que esta explodisse e se volatizasse num segundo… Os próprios cortesãos, pois, fazem com que vejamos S.M. como um elevado espírito inteiramente absorvido na observação dos acontecimentos atuais, procurando talvez descortinar-lhe a feição filosófica e civilizadora e vendo se o seu desenvolvimento se harmoniza com as leis do que Spencer chama — História Natural das Sociedades.

Podemos, pois, agir desassombradamente — sem temer que se anteponham à fortaleza de nossas ideias os ferros dos janízaros.

O adversário mais interessado em nossa derrota conhece a fragilidade, a nulidade desses meios e, além de espírito, tem coração bastante, para impedir que, por meio deles, se dilacere inutilmente o grande seio da pátria.

Baseando-nos, pois, na hipótese de ser o senhor D. Pedro um grande espírito e um grande coração, concluímos logicamente que ser hoje revolucionário — é ser oportunista! Esta posição não exprime somente a coerência necessária entre os nossos atos e nossas ideias — patenteia também de nossa parte um grande interesse pela ordem posterior da sociedade.

Porque sabemos que a República se fará hoje ou amanhã, fatalmente como um corolário de nosso desenvolvimento; hoje, calma, científica, pela lógica, pela convicção: amanhã…

…Amanhã será preciso quebrar a espada do senhor Conde d'Eu.

(Província de S. Paulo, 16 jan. 1889)

Referindo-se ultimamente a certos preceitos de higiene moral, nos quais baseava as suas convicções, um democrata ilustre estabeleceu o diagnóstico de uma moléstia assustadora, misteriosa, horrível e de há muito localizada profundamente no organismo da pátria.

A sua denominação não é nova; há 300 anos, Descartes, a fim de definir claramente uma separação desnecessária entre a atividade e a atividade propriamente animal — sobre ela apresentou uma teoria paradoxal — que não conseguiu se avolumar, destruída por Flourens e Montaigne.

Não pretendemos regenerá-la, damos-lhe uma orientação; o que Descartes enunciava como coexistente com a essência íntima das coisas — apresentamos como uma coisa anormal; o que ele aplicava aos animais, aplicamos ao homem; ele fez daquilo um fato positivo e natural — nós temo-lo como uma moléstia — um deplorável estado patológico.

Ante ela toda a ação da terapêutica se nulifica, os melhores experimentadores recuam impotentes; no entanto, faz mais vítimas que o cólera e atrofia mais do que a sífilis.

Transmitindo-se pelo contato, assume o caráter generalizado de uma epidemia medonha; por uma espécie assustadora de endosmose infiltra-se, não em nosso organismo, em nossa alma — à proporção que ela esvazia-se de todos os princípios elevados e fortificantes da virtude, com a qual se incompatibiliza.

Aniquila a um tempo o cérebro e o coração.

Para alimentá-la, voraz e inexorável — faz-se necessário o sacrifício espantoso das ideias, das mais sagradas ilusões, dos sonhos os mais brilhantes e elevados, violam-se os preceitos austeros da virtude e afogam-se as expansões indomáveis do brio; quando, afinal, nada disto mais existe, ela completa o seu curso sinistro, o indivíduo fica materialmente completo — a vida, porém, traduz-se apenas na vibração mecânica dos nervos e resta uma coisa mais triste e mais dolorosa que a decomposição do organismo, a decomposição do caráter!

Atingido por ela, tendo-a, sinistra, localizada na alma, o paciente, em geral, manifesta-se feliz; tem a cômoda despreocupação dos que não podem pensar, dos que não sabem sentir; adquire ante as reações constantes e contínuas da vida, a impassibilidade feliz dos eunucos; enfrenta imperturbável o perigo de todas as posições; na tribuna — assume a postura teatral de Mirabeau, ruge como Danton, finge pensar como Condorcet e imita a tranq uilidade soberana e nobre de Vergniaud; na imprensa, reveste-se à vontade das lantejoulas do estilo, dá aos períodos as ondulações caprichosas e suaves das serpentes, caracteriza-se de Rochefort e exprime-se violentamente, sabe ser irônico como Alphonse Karr e procura tranq uilamente imitar o brilhantismo de Girardin; em todos os ramos da atividade aparece revestido de um vigor aparente, feliz, brilhante, ruidoso…

No entanto, está morto.

Toda a sua ação, reflexa — é inconsciente; a sua voz, existe na existência de outras vozes — é um eco; os seus atos, longe de exprimirem uma função de sua vontade, indicam a existência de outros atos; não raciocina, não fala, recita; não vive — move-se, agita-se fervorosamente, enquanto as células cerebrais conservam-se friamente imóveis e o coração oscila-lhe no peito, mecanicamente, com a insensibilidade material de um pêndulo. Esta epidemia existe, está entre nós — vimo-la ontem, ostensivamente, ao entrarmos na sala das sessões da Assembléia Provincial. Sentimos os seus germes destruidores no ambiente onde pairava, grandiosa e violenta, a vibração da palavra brilhante do Dr. Campos Sales. Vimos, claramente, agitarem-se em frente às suas vítimas, revestidos dos movimentos bruscos e inconscientes dos cadáveres impulsionados pela galvanoplástica.

Pairava-lhes em torno, a expansão invencível e brilhante das ideias mais generosas de nosso tempo e enquanto os corações revelavam-se comovidos, apaixonada e altiva a lógica do Dr. Prudente de Morais — rígida e inteiriça como o seu caráter — levava de vencida os velhos expedientes que tantas vezes antolham-se às discussões sérias; toda aquela gente obedecia a um mecanismo oculto — impassível, aniquilada — morta.

Esta sombria moléstia tem um nome — automatismo.

(Província de S. Paulo, 18 jan. 1889)

A anarquia…

Arrebatados na corrente prodigiosa das novas ideias, e dos novos ideais, na vertigem de uma queda iminente, os advogados da grande causa perdida que se nos antepõem apegam-se a esta palavra com uma sofreguidão de náufragos; ela constitui a posição de equilíbrio dos movimentos desordenados das suas ideias, e quando — na imprensa ou na tribuna — a inteligência extingue-se-lhes afogada no próprio vazio dos períodos, numa tristíssima pobreza de argumentos sérios — é ela que consegue levantá-los ao nível da discussão.

Diante das ideias que tonificam vigorosamente o organismo da pátria, e que se traduzem no movimento ascensional, deslocam-na assustadora e imensa, provocando a discórdia no seio das instituições, opondo tropeços à administração do governo, estabelecendo o antagonismo dos interesses, destruindo o crédito, exaurindo as fontes de trabalho, obscurecendo as noções elevadas da justiça e perturbando lamentavelmente a serenidade da consciência pública. Em falta de inteligência, expandem amplamente a imaginação — pintam-na inteiramente estendida por toda a vastidão do país, destruindo a coesão que deve presidir os esforços das classes laboriosas, empanando o brilho imaculado das leis, ameaçando o presente pela dispersão violenta de todos os elementos de ordem; levando ainda além a sua missão maldita; insinuando-se no seio das academias — ameaçando o futuro…

E atribuem-na aos republicanos.

Quanta injustiça, porém, em tudo isto. Nós podíamos perfeitamente levantar esta palavra que se nos atira como um argumento inquebrável; podíamos revestir-nos do título de anarquistas, como revestimo-nos altivamente do qualificativo nobilíssimo de revolucionários — bastava-nos para isto um apelo à lógica invencível do pensador mais original do nosso século — Proudhon — e, embora paradoxal a teoria que ele sustenta, abroquelados nela, seríamos invencíveis ante a força liliputiana dos que nos atacam.

Não o queremos, porém — reconhecemos também que a anarquia, justamente pelo fato de se aproximar da liberdade absoluta — não pode existir porque não deve existir; a própria orientação filosófica que possuímos impõe-nos a todo instante a subordinação racional às leis; ante o estado atual da civilização, reconhecemos que o mais livre não é o mais assomado e sim o mais inteligente; a consciência do homem moderno forma-se pela subordinação constante de sua inteligência às leis positivas da ciência e atualmente revolta-se contra o que está racionalmente estabelecido; indica, antes de tudo — ignorância.

Na posição em que nos achamos nivelados, pela altitude de nossas ideias, à civilização do nosso tempo, inteiramente subordinado às leis que regulam o desenvolvimento natural da sociedade, somos por certo revolucionários, porque a força que transmitimos ao sistema social, em conflito com a sua deplorável fraqueza — produz naturalmente a perturbação, o desequilíbrio.

Isto, porém, justamente porque exprime uma revolta contra o estado atual das coisas, patenteia uma elevada e digna subordinação aos princípios que racionalmente regulam a organização e desenvolvimento de nossa pátria.

A anarquia não parte de nosso lado; deriva-se da nossa ação, é certo — mas justamente por isso, como reação, nos é oposta; ela é que nos ataca — nas ruas, no parlamento e na imprensa — com a brutalidade dos capangas, como as injúrias inconscientes dos pseudo-representantes da pátria e com a descortesia escandalosa dos jornalistas sem critério.

A anarquia não penetrou nas academias, insinuando-se no ânimo da mocidade; desde a matemática à sociologia, toda a ciência opõe-se-lhe vitoriosamente, cada página dos livros é-lhe uma barreira insuperável, podem nelas existir talvez revolucionários, altivos e audazes, temperamentos que se expandem violentamente, altivamente e dignamente, e falamos por experiência própria — mas quando isto se dá, quando se manifesta esse desequilíbrio lamentável entre as paixões e as ideias, por sobre o delírio espantoso de nossa alma, se alevantam serenos e imaculados os grandes ideais que a iluminam, como se alevantam tranq uilos e grandes os brilhos das constelações sobre o delírio pavoroso das tempestades…

(Província de S. Paulo, 23 jan. 1889)

Sem cedermos de nossas convicções, antes subordinados a elas, inteiramente, afirmamos, com os nossos adversários, que o partido republicano não existe. De fato, não restringimos as nossas ideias a um tão estreito círculo de ação; entre as forças que nos alentam — por escusado temos demonstrar — que não entram as que efêmeras e frágeis se adaptam, contudo, melhor à existência de uma parcialidade política.

A nossa evolução mental precedeu necessariamente a um elevadíssimo desenvolvimento emocional e por isso as nossas próprias paixões têm um caráter mais geral e mais nobre.

Não constituímos uma agremiação de indivíduos, que impele violentamente uma opinião para esmagar um trono — afastamo-nos deste pelo impulso de uma idéia. Certos, profundamente convictos, de que o regímen atual é em sua essência estacionário, para destruí-lo, para livrarmo-nos dele, basta-nos uma coisa simplíssima — fazer caminhar a pátria!…

Somos alguma coisa mais que um partido, embora relativamente pouco numerosos, aumentados pela extensão dos princípios e pela sua generalidade, podemos afirmar — sem que se veja nisso um exagero de frase — que constituímos a molécula integrante de uma nova sociedade…

A propaganda republicana teoricamente tem, antes de tudo, o caráter doutrinário de um apostolado; cingida do sistema geral de seus princípios, tem para impeli-la a força que se deriva da inteira adaptação destes às necessidades atuais; empiricamente, longe de exprimir a atividade de uma facção partidária, é o reflexo, no mundo político, de um movimento social ou, antes, de uma transformação; como tudo na natureza, as nacionalidades se transformam e ela representa o estado intermediário, de transição — entre uma decomposição e uma recomposição.

De fato, obedecendo à própria lei da concorrência vital, que preside ao desenvolvimento universal da vida, há, sob os brilhos da constelação do Cruzeiro — uma sociedade que se decompõe, à proporção que em seu próprio seio, mais robusta e maior, uma outra se desenvolve.

Como os indivíduos e numa escala maior — as nacionalidades obedecem fatalmente às exigências sempre crescentes da vida, e, nesse combate eterno e prodigioso, em que têm de apelar para todos os ramos da atividade, concorrendo violentamente com os que, por demasiado fracos, se inabilitam à realização de seus elevados destinos, abdicam forçosamente da própria existência.

À nossa nacionalidade — confessamos pesarosamente — nunca foi necessário o apelo à própria energia para viver, enquanto ao resto das nações, o futuro constituía um problema imenso, ante o qual tornava-se-lhes indispensável, constantemente, enrijar a própria organização, na rudeza disciplinadora dos trabalhos industriais, a que precedem forçosamente os esforços da inteligência; protegida pela natureza, bastava-lhe — para viver — adotar a forma primitiva da atividade humana. Além disto, barbarizada e egoísta, assumiu ante o movimento geral da civilização uma posição singular, divorciando-se da humanidade por meio de um escândalo — a escravidão; perdendo assim o movimento progressista do conjunto, desprotegida ante o maquiavelismo de uma velha política, automatizada, sem energia própria, movendo-se sem progredir, circularmente, ao impulso das tradições — em torno de uma dinastia — pela própria natureza desse movimento, adquiriu como única força a repulsão aos elevados princípios que tendiam a impulsioná-lo retilineamente para o futuro. Durante todo este século cresceu, não pelo íntimo desenvolvimento de sua organização — mas por superposição de camadas, como os corpos inorgânicos, sem que atestasse nisso um acréscimo de vida — e hoje, assoberbada pela própria grandeza de um destino que não pôde realizar, terá de refundir-se à luz vivificante dos novos ideais e reviver unicamente no que tiver de bom em uma outra mais robusta e digna.

A sua sorte acha-se de todo aliada à da monarquia e quando, amanhã, partido o último dente da medonha engrenagem política, que há tempo tempo realiza a inglória tarefa do esmagamento completo das grandes ideias — aquela cair — o advento da República não indicará a vitória de um partido — exprimirá o renascimento de uma sociedade.

(Província de S. Paulo, 24 jan. 1889)

Decididamente, fazemos mal em levar a sério a reação contra os acontecimentos atuais.

Nessa jornada ideal para o futuro — cadenciada ao ritmo febril de nossos corações — chegamos a crer que não fica bem — a nós, moços — esse tom dogmático e austero, ante a hilariante degringolade do velho regímen.

Por que razão, ante os velhos La Palisse dessa nossa política, homens que na proximidade do túmulo tão bem sabem rir e desfrutar a vida — havemos de enterrar nas rugas prematuras da fronte as encantadoras fantasias da mocidade?

Não, decididamente não nos serve a compostura rígida e impenetrável; a frase meditada e severa; a sinceridade na emissão grandiosa das ideias e a espontânea e desassombrada franqueza — para combater essa gente.

Ante ela, não vale realmente a pena a gravidade sistemática que adotamos e que envelhece a nossa mocidade. É preciso que a compartilhemos também um pouco da salutar alacridade que anima; que demos ao estilo a flexibilidade interessante dos acrobatas e dos cortesãos; que façamos espírito sobre as ruínas da pátria; que estabeleçamos larga importação de calembourgs, dentro dos romances franceses e lancemos também ao trapézio ideal da fantasia, como um clown destemido, o pensamento tão precocemente levado aos retiros tristonhos da meditação…

Ante o estado atual das coisas, para que ridicularizarmos as próprias paixões; para que criarmos impiedosamente o descrédito das próprias mágoas?…

Ainda há pouco, ao sabermos do malogro da conferência que pretendia realizar um médico ilustre — o qual tem a imensa infelicidade de ser republicano — , sentimo-nos assoberbados pela violência da maior indignação e expandimo-la amplamente sobre muitas folhas de papel, através das mais severas considerações e do contínuo estrepitar de uns adjetivos virulentos, fulminantes. Foi um trabalho perdido. Raciocinando com mais espírito, vimos nesse acontecimento um fato naturalíssimo.

É exato que a nossa Constituição estabelece plena liberdade de pensamento, mas ela, que nos foi imposta pela insignificante espada de um pequeno Bonaparte, bem pode ser violada pelo cacete, talvez mais forte, de qualquer capanga. Longe vai o tempo em que — aterrorizados pelas visagens truanescas dos corifeus governamentais, pensávamos na expansão violentíssima das grandes almas revolucionárias e heróicas. Chegamos a sentir necessidade de um Danton — tempestuoso e nobre — capaz de transmitir ao povo, através da fortaleza de sua palavra, todo o vigor de seu temperamento: evocamos mentalmente os vultos lendários quase das grandes revoluções; mas hoje, melhor orientados, temo-los por desnecessários.

A velha sociedade extingue-se naturalmente, comicamente até, e se há alguém cuja presença devesse se achar em meio dos acontecimentos atuais, esse é o grande gênio da alta comédia — Molière…

Assim, pois, sintamo-nos felizes com toda gente.

Afirmam, por aí, que somos poucos, que nos achamos sós; ainda bem, alentados pela serenidade imperturbável e boa dos fortes, assistamos ao interessante espetáculo do nosso mundo político, sós e bem altos — da eminência fulgurante do ideal…

Proudhon

DA CORTE

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(Província de S. Paulo, 17 maio 1889)

Longe de seguir o velho precendente dos cronistas neófitos, em contínua luta com a escassez de assuntos, tolhe-me a pena a acumulação destes. Por um fenômeno idêntico ao da treva, produzida na interferência das luzes —, os acontecimentos e os sentimentos que originam, múltiplos, antagônicos, dispersos, chocam-se, contrabatem-se, reagem, interferem, destroem-se pelo equilíbrio e eu fico sem assunto e insensível.

Neste momento — o mais grave talvez de uma profunda transformação, faz-se preciso para esquiçar a feição da nossa nacionalidade alguém de um temperamento monstruoso, através do qual irmanem-se as mais opostas manifestações da afetividade e que sendo a um tempo Juvenal e Dante, possa ter no estilo a expressão dúbia e medonha do choro hilariante, da risada dolorosa de Grinplain!…

De fato — admitindo que os cérebros dos pensadores tenham na reflexão maravilhosa dos acontecimentos a pureza imaculada dos cristais e que assim as ideias sejam as imagens virtuais dos fatos, é bem de ver que tudo o que se passa em torno de nós deve refletir-lhes na alma um misto incompreensível e estranho de alegrias, tristezas e dolorosa ironia.

Colocado no seio da sociedade atual — à mercê das forças que a agitam, expansões egoísticas de milhares de interesses irradiando a todas as direções — o nosso espírito — não poderá fixar uma direção retilínea e agitando-se, morrendo-se, oscilará indeterminadamente, indeciso, da esperança à desilusão — a todo o instante feliz, triste a todo o instante.

Unicamente uma disciplina mental esmagadora, inexorável — tal que pelo aniquilamento inteiro das paixões, nos facultasse a abdicação da própria individualidade, poderia dar à nossa pátria um Guizot que relacionasse os fatos e um Plutarco que definisse os homens… Quanto a nós — apaixonados —, inermes ante o assalto das emoções, em comunicação direta com a perturbação geral, harmonizados à desarmonia, batidos pela inconstância dos homens e dos fatos — meditaremos através de uma vertigem — e o mesmo fluxo de sangue, irrompendo-se do coração, nos levará ao cérebro, a um tempo, a mais consoladora esperança e o mais sombrio desalento…

Para os que sabem que em nossa terra não há política, mas sim um partidarismo infrene — pois que aquela é a aplicação de conhecimentos que os nossos pseudopolíticos não têm, nem podem ter, e este redunda afinal, numa tristíssima conspiração contra os caracteres — as linhas que deixamos escritas não exprimirão um pessimismo doentio, estimulado pela preocupação de fazer estilo.

Quanto aos que, dotados de uma feliz ingenuidade — supõe-nos orientados por poderosas compleições intelectuais, sadias, robustas, revigoradas na atmosfera luminosa dos livros — esses — cuja miopia extrema confunde o Sr. João Alfredo e Gladstone, justificar-nos-ão em face dos últimos acontecimentos.

Os últimos acontecimentos… eu poderia perfeitamente, encarando a sua feição boa e honesta, iluminar a minha frase com um reflexo inda que enfraquecido da grande e brilhantíssima expansão de generosidade da alma nobilíssima do povo ante os martírios de Campinas… Volto-me, porém, à sua feição triste e má; imponho-me à pena de procurá-la nas estreitezas do nosso mundo político, pequeno demais para as paixões que contém e que, violentas, insensatas, refluindo numa concentração contínua de forças — umas sobre as outras —, aquecidas pelo egoísmo de todos, produzem a decomposição do caráter, como o acúmulo de temperaturas a dissociação do diamante. Pois bem, é ante o espetáculo da nossa política que me assaltam as mais opostas emoções.

Expulso do Senado, impossibilitado de entrar na Câmara — fechada por um capricho da oposição —, este pequeno grupo de indivíduos, inconscientes da própria posição, agarrados às pastas como avaros às bolsas e sobre cada um dos quais, solene e inflexível pesa a condenação das consciências honestas — patenteia-nos um quadro indefinível, incute-nos um sentimento incompreensível, idêntico ao que nos assoberba ao vermos, envolta na cintilação dos versos de Milton — uma agonia de demônios!…

Realmente o que presenciamos nada mais é que uma tristíssima agonia de alguns homens que, sem espírito e estudo bastante para engrandecerem a vida, harmonizando-a à grandiosa existência da pátria, extinguem-se, lentamente, pela asfixia da própria alma dentro do próprio egoísmo…

Desaparecendo amanhã do curso da existência nacional — essa gente não cairá, dissolver-se-á, a queda supõe anteriormente uma posição elevada: — caindo, no parlamento inglês, do alto de um grande ideal, Gladstone, lembra-nos no mundo moral a queda resplandecente de uma estrela.

Quase sempre — cair não é descer.

Essa gente não cairá.

À última hora um espírito eminente — denunciou à pátria os horrores de uma conspiração.

Parecia que o aniversário da ação mais elevada e humana de nosso povo — a exemplo das solenidades antigas — sagrar-se-ia no sangue de milhares de vítimas. A coisa, ao que parece, far-se-ia com todos os atrativos de um verdadeiro festival; citavam-se já, à luz meridiana, os nomes dos felizes destinados às aras do sacrifício; havia um programa preestabelecido com todos os elementos de um drama de sensação; as reclames irradiavam a toda parte, levados por entidades patibulares, eminentemente próprias a fazer-nos desmaiar de pavor; segundo corre — a exemplo dos ensang uentados dramalhões de D'Ennery devia ser o elemento principal das situações proféticas — o punhal!

Apontavam-se mesmo, na Rua do Ouvidor, os corifeus da nova Saint-Barthélémy — prestes a estender a sua sombra sob o nosso sol americano — talvez por um capricho de neto de Carlos IX…

Como a lei natural do atavismo se exemplifica da história?!…

O que ia se dar se um recrudescimento de covardia não paralisasse à última hora o braço dos covardes — seria como uma invasão de bárbaros no século XIX.

Assim — iam esfacelar a pátria, matar, exterminar, romper-nos o peito a facadas, envergonhar a humanidade e escandalizar o nosso século: serena e inviolável, ideal que constitui a essência mais do que da alma brasileira — da alma americana — a Democracia havia de pairar sobre os destroços — como um Íris feito pela refração maravilhosa dos brilhos de nossas crenças, através do nosso sangue…

Felizmente, porém, lembraram-se os Átilas e Gensericos dessa onda de alucinados — que os seus sócios da Média Idade — viris, indômitos, inexoráveis — após ruírem o maior império do mundo — e colocarem sobre o seio de Roma a rija ferradura dos seus cavalos — estacaram combalidos e respeitosos ante a velha Catedral — guardada pela força sobre-humana do ideal.

HOMENS DE HOJE

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(Província de S. Paulo, 22 jun. 1889)

Como o átomo na química ou o infinitamente pequeno na matemática, o homem, em sociologia, tem a existência subjetiva de um tipo abstrato.

Unicamente considerando-o assim, desta forma, diríamos metafísica, se não fosse esta a palavra mais condenada hoje, tornou-se possível o estabelecimento da ciência social. Aí, como o dx de Leibnitz, ele exprime uma abstração imensa; é uma construção lógica e as suas propriedades características não são as que hoje tem, mas as que terá após um aperfeiçoamento excessivamente remoto.

Atingir a esse tipo ideal, realizá-lo empiricamente, tal é o destino altamente moralizador da civilização, tal é o fim grandioso dessa belíssima utopia da filosofia moderna que aspira, pelo consórcio de todas as tradições e unificação de todas as crenças — transmudar a Terra no extenso lar da família humana.

Para nós porém, assaltados em plena mocidade por um duro ascetismo, esta época ultrapassará a existência biológica da Terra e antes que o homem qual é possa chegar ao homem qual deve ser, é natural que depois das condições essenciais à vida e amparado somente pela lei diretora do equilíbrio dinâmico dos mundos, o nosso planeta, coberto das ossadas de mil gerações extintas, gravite no espaço, vazio, como um túmulo silencioso e vasto…

Estas linhas, apressadamente escritas, têm o único valor de fixarem nos mais [sic] desassombrada e digna, uma posição de combate.

Nada mais perigoso, numa época de agitação, que essa discussão objetiva que se costuma estabelecer em torno de individualidades e nada também mais estéril.

Para nós, os indivíduos terão a estrutura ideal das fórmulas: traduzem manifestações da sociedade e discuti-los, mais do que inquirir se são ou não bons, consiste em ver se patenteiam-se ou não — lógicos.

Por outro lado, como uma atenuante ao cepticismo referido acima, resta o entusiasmo que nos domina sentindo, em torno, na pátria — a parte mais próxima da humanidade — os que ainda crêem, ainda sabem sentir e generalizando a vida têm robustez para alevantar a herança grandiosa do passado e impeli-la engrandecida para o futuro.

Esses, que surgem dentro de nós, elevados e resplandecentes, como pontos determinantes na trajetória ideal da nossa civilização, emprestar-nos-ão alento para que não percamos a postura retilínea dos fortes…

Por mais violento que seja o embate de nossas próprias paixões, amparar-nos-á a crença robusta de que há em suas almas vigorosas um asilo inviolável a este sonho, a esta miragem, a isto que para muita gente não passa de uma palavra — a Pátria…

Não há exagero nessas últimas linhas; não existissem eles e por uma vez devíamos repelir a esperança na regeneração desta velha sociedade colonial — prolongada por um triste fenômeno histórico ao seio do século XIX.

O repto audacioso lançado em pleno parlamento, pelo Primeiro-Ministro do Império, afrontaria impune ao grande ideal da política americana, destinado um dia, talvez próximo, a fazer da América inteira uma só pátria.

Com um amplo e vigoroso gesto, num assomo de demagogia palaciana, S. Exa. traçou ante a representação nacional a linha estratégica de uma árdua campanha. Nesse gesto circular e enorme, que durante um segundo pairou sobre toda a Câmara, inscreveu o trono imperial, e em sua fisionomia vimos transudar a mais soberana alegria, a mais rígida confiança na própria força.

Por entre o enorme sussurro e explosão de aplausos, que saudaram a profissão de fé do padre João Manoel, a sua palavra penetrou alígera e heróica como um dardo, transmitindo à debilidade da instituição monárquica o tônico enérgico de um grande talento. Em suma, da maneira mais franca, foi talvez. S. Exa. o primeiro a dar manifestação empírica a uma luta que de há muito agita o espírito nacional. Compreendemos então que atingiríamos uma fase decisiva na história.

Compreender isto, porém, equivale a robustecer-nos.

Todo aprumo, a gesticulação teatral, a esplêndida hardiesse do Sr. Presidente do Conselho, fazem-nos acreditar que confia muito na tão falada engrenagem política, cujos dentes realizam a odiosa tarefa do esmagamento de caracteres, das salas das secretarias de Estado ao fundo das casernas; ainda mais, certificam-nos de que assiste-lhe amplo, o direito, ante uma questão social extremamente complicada, de dar a palavra ao sinistro legislador — Comblain…

Ao mesmo tempo, porém, anima-os a certeza — de que as condições atuais, o advento de adversários ante os quais S. Exa. aniile-se totalmente, traduz sobretudo um fato naturalíssimo.

Representantes naturais da sociedade trazem no espírito a resultante de todas as energias sociais; são os homens de hoje sínteses das maiores aspirações de uma época. Para que desde já possamos esboçar-lhes os agigantados perfis é suficiente isto: encarar a feição mais elevada dos acontecimentos.

Estabelecido este preâmbulo, consideremos o presente.

(Província de S. Paulo, 28 jun. 1889)


O Sr. Cesário de Alvim despediu-se do Oitavo Distrito de Minas; unicamente como eleitor deseja e deve entrar no pleito eleitoral. É isto, em resumo, o que o ilustre democrata acaba de exprimir pela imprensa.

Tratássemos de um velho liberal, cuja energia se extinguisse na deplorável inconsistência de uma política partidária — desiludido e vencido, e acharíamos natural mesmo este rebaixamento de posto que, como o de Epaminondas — eleva.

A desilusão, esta espécie de derrota infligida às ideias e ao sentimento, é, em política, inevitável corolário da estéril agitação dos que, sem altitude para fugirem à dispnéia asfixiante do egoísmo pretendem, no estreito círculo de uma individualidade mal-educada, inscrever os interesses gerais.

Advém-lhes a velhice como os cabelos brancos. Paralisa-lhe a cerebração da mesma forma pela qual a lenta atrofia do organismo dificulta-lhes a circulação do sangue. Divorciados do movimento geral, em toda a sua atividade como que predomina, constante, um esforço material, abdicando das próprias convicções todas as vezes que a musculatura combalida ameaça-lhes a integridade da existência. Dizem-se desiludidos — estão gastos.

Em política não há desilusões por uma razão simplíssima: a política não ilude. Definindo-se sobretudo como — um espírito colocado em função da sociedade, o homem político, pela expansão natural das ideias vincula-se profundamente às forças crescentes que a animam. As diferenciações sucessivas dos fatos, que definem o curso da civilização e são a condição essencial do progresso, reagem continuamente sobre si, alentam-no e revigoram-no. Bate-se por um ideal, convicto muitas vezes de que a sua realização está além da vida objetiva; certo porém de que constituir-lhe-á a existência imortal da história; e velho, muito embora, paira-lhe na fronte encanecida a tranq uila irradiação de suas crenças, como a fulguração das lavas na eminência enregelada de um vulcão andino. Estes não se desiludem.

Em nossa pátria, onde o partidarismo impera, é vulgar a aparição de políticos desiludidos, mumificados em vida, e acurvados ao peso de antigas crenças, derrocadas.

O Senador Francisco Otaviano, uma grande alma de poeta que orientada de outra forma deixaria em nossa história um traço imperecível, define a política como uma "messalina histérica de cujos braços sai-se corrompido, etc."

Os que aplaudem esta frase monstruosa apedrejar-nos-iam se alcunhássemos a química de volúvel cortesã, ou de misteriosa hetaíra a matemática. Entretanto o absurdo é perfeitamente idêntico; a política emana duma ciência tão positiva como qualquer uma destas e como qualquer uma repele objetivações que a desvirtuem.

Em suma, iludir-se em política, é errar.

Para os que chegam à convicção dos próprios erros e numa implícita declaração de incompetência dizem-se desiludidos, abandonar uma posição de comando exprime um ato além de natural, altamente benéfico. Com o eminente representante de Minas isto, porém, não se dá.

Ainda quando a sua mentalidade não se constituísse inteira à luz dos princípios mais sãos, bastava a grande solidariedade que o alia à maioria de sua província, para determinar-lhe a mais perigosa estacada na próxima luta.

Profundamente identificado às elevadas aspirações dessa terra lendária, aonde repousam as mais brilhantes tradições da pátria, cabe-lhe o grande dever de operar no seio da representação nacional a transfusão da esplêndida virilidade que a anima e impulsiona.

Por mais rápida que fosse a sua passagem aos princípios republicanos, foi limpidamente lógica: definiu do modo mais digno a atitude atual da evolução política em Minas.

Perfeitamente coerente, os seus atos de hoje irmanam-se aos de ontem e a sua posição, longe de ser um repúdio ao passado, traduz uma expansão do próprio liberalismo.

Os ronceiros paquidermes políticos, que materializam por aí a coerência na estabilidade das rochas, acham que esta transformação foi muito rápida, extremamente rápida…

Pela nossa parte, achamos naturalíssimo que, tendo entregue todo o seu talento a um partido — como um diamante às mãos do lapidário —, visse-se afinal surgir brilhante e rígido, entre os fulgores da democracia.

Na fase atual das coisas, em que os partidos monárquicos, conflagrando-se, aniilam-se pela dispersão; em que, por uma erradíssima sugestão do ministério, o velho imperador, que traduz ao estado mórbido o próprio estado da instituição monárquica, vai ser arremessado a Minas, como uma sonda — bem é que o Sr. Cesário Alvim, constituindo-se o centro de atração das grandes aspirações de sua província, que são as da pátria, robusteça-as, unificando-as. E acreditamos que não poderá se eximir a isto: opondo-se pela primeira vez a um seu desejo francamente expresso, Minas impor-lhe-á breve o sacrifício de ser grande…


DA PENUMBRA

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"O Estado de S. Paulo", 15 mar. 1892

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É um título bizarro, convenham, mas precioso.

Por estes tempos maus de agitações infrenes, cômoda é a feição contemplativa dos que se recolhem à meia-luz da obscuridade e vêem de longe o préstito diabólico das paixões.

Os brados das mazorcas, as visagens, truanescas dos conspiradores à la minute, que doidamente se agitará nos liames da própria insânia, tudo o que vibra e urge, aí embaixo, no rez-de-chaussée da política e do bom-senso, chega-lhe aos ouvidos

Como o rumor das asas de um inseto…

segundo o belo endecassílabo de não sei que poeta.

E de fato; como fixar a orientação de um princípio nesse espantoso caos que por aí tumultua assustador, de ideias que não têm vigor e de homens que não têm ideias?

Já fomos oposicionistas; já realizamos diuturnamente a tarefa inglória de Sísifo, tentando sobrepor à imensa mole monárquica o ideal republicano. Nesses bons tempos, porém, era purificadora a incandescência da luta, retemperava-se em seu fervor o aço inquebrável das convicções, e como éramos uma minoria e vivíamos isolados como as águias, criávamos em torno essa maioria subjetiva de ideias, que se deriva das páginas dos livros…

Mas, hoje? Que faz toda essa gente que por aí reage contra não sei o que e perdendo a pouco e pouco a postura magnífica dos valentes, descamba para os lugares-comuns de um gongorismo retumbante ou agita doidamente os guizos da troça, numa alegria incompreensível de bugios satisfeitos?

Li algures, não sei em que escandalosa crônica de Paris, que Luís Veuillot — o formidável ultramontano — quando sentia-se combalir nas violentas discussões que sustentava, ao invés de revigorar-se pela meditação, dirigia-se complacentemente aos mercados da grande cidade.

Aí, sob um pretexto qualquer, levantava uma questão com as pouco parlamentares mercadoras.

A consequência era fatal e assustadora.

Sob a forma a mais pitoresca estrugiam em torno do velho panfletário as mais arrepiadoras injúrias.

Calmo e feliz — Luís Veuillot, então, abria a carteira e a lápis anotava o desenfreado vocabulário das megeras furiosas.

Pobre do adversário que estivesse nessa ocasião a braços com o inexorável obscurantista…

No outro dia — intactas — as mais grotescas hipérboles do rude argot parisiense caíam-lhe, bravias, redondamente, em cima — como argumentos únicos e supremos e esmagadores…

Não sei que singular associação esta que tão inoportunamente projetam no curso das considerações que fazia a desairosa silhouette do grande amigo de Pio IX.

Não pretendo estabelecer um símile tão perigoso e logo no início de uma secção. Há uma grande distância da contemplação concreta de um fato à verdade que dele se deriva pela meditação indutiva e eu sou essencialmente contemplativo…

José D'Ávila

"O Estado de S. Paulo", 17 mar. 1892

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Sejamos otimistas. É um dever isto para os que envelheceram a mocidade trilhando as ásperas devezas, a abrupta e alcantilada estrada da propaganda democrática. Não vejamos, como os cronistas elegantes da oposição, um fantasma de Napoleão III no Sr. Floriano Peixoto, para fugir ao qual precisamos dum espantoso Sedan de esperanças e antigos ideais…

Quando mesmo, por uma espantosa aberração mental, unicamente admitida numa hipótese ousada, o velho marechal se deslumbrasse a tal ponto pelas magias do poder — nem tudo estaria perdido: restariam inexoráveis e heróicos contra a déspota, os mesmos princípios que o sustentam.

Acostumados a uma espécie singular de revoluções feitas de flores e hinos triunfais, adoráveis revoluções que se desfazem em passeatas e discursos e aonde só há uma coisa assustadora — prurido tribunício dos Desmoulins indígenas — ou os ferventes ditirambos com que se rimam depois os perigos problemáticos da jornada, acostumados a isto, o nosso sentimentalismo doentio e burguês agita-se lamentavelmente ante os atos vigorosos e inexoráveis, que traduzem sempre a marcha desassombrada de uma idéia.

E tudo isto é natural e irremediável.

Supõem por acaso, os nossos intransigentes adversários, que a marcha do sistema social faz-se como a translação dos sistemas invariáveis da mecânica, sob o impulso de leis determinadas e positivas?…

Têm a feliz ingenuidade de acreditar que sejam os artigos da Constituição — leis necessárias e fatais, quando a sociologia, apenas esboçada, não pode realizar a previsão no campo dos fenômenos que estuda?

Não acreditam certamente: antes sabem que a elucidação desse problema vai constituir a mais dura tarefa do futuro.

Demais, a história, a comparação histórica, não nos aponta o fato de um povo que não tenha — em sua organização definitiva — pago um doloroso tributo de sangue e demoradas agitações.

Foram precisos doze anos, doze anos malditos de privações e lutas, aos Estados Unidos para, amparados de um lado pela grande alma de Washington e de outro pelo gênio de Hamilton, formarem a Constituição à qual devem um século de prosperidades.

Ainda assim — à luz de um código fundamental, cujos artigos, lentamente — um a um — foram calcados sobre as necessidades que surgiram — para realizarem mais tarde, através dos horrores da secessão, a reforma abolicionista, foi preciso que ao espírito brilhante de Lincoln se aliasse o brilho da espada de Ulysses Grant.

As sociedades, como os indivíduos da vasta série animal, obedecem a uma grandiosa seleção, para o estudo da qual já se fez preciso que apareça um Darwin ou um Haeckel.

As duas leis fundamentais da adaptação e da hereditariedade atuam sobre elas numa escala maior, mais difícil de perceber-se e o progresso, resultante inevitável das ações simultâneas desses dois fatores, nem sempre, em princípio — se manifesta de modo a satisfazer a mórbida afetividade de quem quer que seja.

Presos, vinculados ainda pela hereditariedade ao passado regímen, toda essa agitação que por aí vai, toda essa luta entre o que éramos ontem e somos hoje — é a luta pela adaptação aos novos princípios, princípios que atingiremos lenta mas fatalmente…

Sejamos otimistas, pois.

Tudo o que por aí tumultua num aparente caos de agitações e revoltas é o reflexo de uma vasta diferenciação, através da qual se opera, majestosa, a seleção do caráter nacional.

A idéia republicana segue sua própria trajetória — fatal e indestrutível como a das estrelas — e bem é que lhe demarque o caminho percorrido a triste ruinaria das coisas e dos homens que não valem nada.

Dávila


"O Estado de S. Paulo", 19 mar. 1892

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Acabo de ler uma página iluminada de Spencer, em que o eminente evolucionista — como bom filósofo crente na perfectibilidade humana — vaticina uma idade de ouro, durante a qual por um mais dilatado domínio das forças naturais se satisfaçam mais facilmente as necessidades imperiosas da existência e menos assoberbada de trabalhos, tenha afinal a humanidade tempo de aformosear a vida, pela contemplação do belo na natureza e na arte.


O ilustre mestre deixou-se arrebatar demais, pelas tendências profundamente humanas de seu grande espírito.


O stuggle for life, a fórmula majestosa da nossa elevação constante, terá a mesma feição autoritária e fatal, embora atuando entre os deslumbramentos da mais alta civilização.

O grande domínio do homem sobre as forças naturais, a que ele se refere, é ilusório, ante o princípio geral da relatividade.

As forças ou leis descobertas criaram fatalmente a necessidade de outras e a humanidade — se tornando cada vez mais forte, para uma luta cada vez maior — realizará através dos séculos a dolorosa lenda de Ahasverus, subjugada às leis que a impulsionam, com o mesmo fatalismo das que fixam no espaço a órbita dilatada do insignificante planeta que a conduz…

Não descansará. Aproximar-se-á da época sonhada pelos filósofos como as assíntotas do ramo desmesurado das hipérboles — indefinidamente — sem nunca atingi-la.

Decorem-na embora os sábios — os incruentos batalhadores que vão através das inúmeras modalidades da existência geral, em busca da verdade — com a cintilação imperecível das leis descobertas ou com as dádivas preciosas da indústria — cada uma destas conquistas é um estimulante enérgico para outras mais ousadas e difíceis.

O mito de uma época ideal toda de paz e descanso afasta-se à proporção que adquirimos meios de atingi-lo e a moderna civilização européia por exemplo — dista tanto dele quanto a barbaria medieval.

O que se dá — assim de um modo geral, no vasto conjunto humano — evidencia-se ainda mais limpidamente, pela consideração especial de cada sociedade.

Cada uma conquista realizada tem, inevitáveis como corolários, outras, relativamente iguais e realmente mais difíceis.

Pelo que nos diz respeito ascendemos rapidamente, vertiginosamente mesmo, pela reforma social da abolição e pela transformação política da República, a toda a deslumbrante grandeza da civilização atual.

Não é para espantar, pois, a ninguém, que o Governo, por mais sólida que seja a sua vontade e correta a sua postura ante o dever — lute para debelar a crise que nos assaltou e que é no entanto tão natural como fenômeno fisiológico da vertigem, nos que atingem rapidamente as grandes altitudes.

Seria realmente adorável, mas ilógico, que a República feita num quarto de hora de audácia — fizesse de pronto a grande felicidade da pátria e não tivéssemos agora, ameaçadores e constantes partidos da sombra, os brados desses que não foram vistos ontem entre os clarões da batalha.

Todo esse acréscimo de fadigas e trabalhos, que requerem a pertinácia estóica dos crentes e dos fortes, há de entretanto ceder, embora não se extingam com ele os que impõem à República a grandeza dos seus próprios destinos.

Ainda bem que o Governo tem a impassibilidade magnífica de Glauco, ante o referver das ondas estrepitosas de ódios e velhas ambições malogradas, que vão lhe estourar aos pés.

Elas passaram afinal — inofensíveis e estéreis e os tristes cavaleiros andantes da discórdia, que se agitam por aí a braços com os moinhos de vento da tresloucada fantasia, choraram afinal sobre a niilidade dos dias sacrificados a uma agitação infecunda.

Dávila


DIA A DIA

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"O Estado de S. Paulo", 29 de março de 1892

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A propósito da brutalidade de um iconoclasta qualquer, que num ímpeto de revolta insconsciente quebrou a imagem do Cristo no júri da Capital Federal, alarmou-se certa parte da imprensa e, de um fato relativamente insignificante — e de todo subordinado à polícia. No caso atual porém, desta violação vulgar do bom-senso, retamente a uma doutrina que estabelece o amor como o princípio de todas as ações e define todo o progresso humano — como um vasto desdobramento da ordem.

Não é a primeira vez que se generalizam tão tristemente fatos que à luz do critério mais rudimentar não têm a mínima importância. No caso atual, porém, além desta violação vulgar do bom-senso, há uma afronta à justiça. É quase um atentado atribuir-se ao positivismo tão tristes desmandos. Falamos desapaixonadamente; embora em nosso tirocínio acadêmico nos subordinássemos ao método filosófico do eminente instituidor da Síntese subjetiva, o mais admirável livro do século XIX, e o veneremos como o maior dos mestres; embora reconheçamos na doutrina positiva sólidos elementos para constituir-se a religião do futuro e estejamos certos de que, na grande crise moderna, ela representará papel idêntico ao do Cristianismo na anarquia medieval — não pertencemos à minoria ilustre dos que, com uma abnegação notável, seguem todos os preceitos do novo dogma, através da metafísica dissolvente do nosso meio.

As ligeiras noções, porém, que temos dele, bastam para certificarmo-nos de que a sua ação só pode fazer sentir nas consciências em cuja estrutura entrem como elementos os mais nobres princípios.

Baseada no mais amplo conhecimento do mundo e do homem, consorciando indissoluvelmente a religião e a ciência, nobilitando e amplificando admiravelmente a vida individual pelas generosas expansões do altruísmo, a nova doutrina está talvez destinada, no futuro, após uma maior e mais geral ascensão de todos os espíritos, a simbolizar a maior conquista da consciência humana.

Para atingir, porém, esse desideratum, os seus propagandistas seguem num sentido diametralmente oposto àquele que geralmente se acredita. Não exploram as paixões dos inconscientes, nem assalariam os braços dos sicários, antes, se eximem à luta e quando abandonam os retiros da meditação e do estudo, têm nos atos a serenidade magnífica dos justos e dos crentes.

Anima-os a máxima veneração pela feição nobre do passado humano e utilizando-se do imenso capital de fatos e de ideias lentamente acumuladas, pelo trabalho secular das gerações, se dirigem para o futuro, sem que necessitem, no presente, criar as miragens com que a metafísica deslumbra inutilmente a toda a gente, ou levantar as fogueiras com que inutilmente o Catolicismo escandalizou o mundo.

O separar a Igreja e o Estado, a idéia mais genuinamente democrática da nossa Constituição, o esplêndido golpe vibrado na burguesia clerical, que tentava o monopólio criminoso de todas as crenças, — devia certamente satisfazê-lo, por isto mesmo que extinguiu a escravidão oficial do pensamento, e era o complemento necessário da liberdade política. Isto porque os anima um elevado espírito de tolerância que simultaneamente afasta das consciências o predomínio das seitas e faculta a estas o mais livre funcionamento.

De mais, do ponto de vista verdadeiramente filosófico em que estão não intentam rivalidades, tanto que reconhecem a tarefa civilizadora do Cristianismo, salvando através da imensa noite histórica — a Idade Média — os trabalhos das gerações antigas e vêem na metafísica do século XVIII o mais enérgico estimulante da Revolução Francesa.

Além disto a religião positiva — profundamente humana e justa, impõe a veneração para os partidários de todas as crenças, desde que tenham lutado em prol do destino comum e sob este ponto de vista irmana os mais desencontrados caracteres. A simples leitura do seu calendário, aonde cada homem é a síntese de uma época ou de uma sociedade, indica este fato. Entre muitos antagonismos se vêem ali Maomé, São Paulo, Danton e Condorcet — o fatalismo muçulmano, a predestinação bíblica, o delírio revolucionário e a tranquila irradiação do pensamento.

Ela paira sobre os destinos humanos e muito alto demais para exercer, embora indiretamente, qualquer influência nas regiões da sociedade, aonde se geram e de onde se levantam todas as brutalidades e todas as profanações…

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 31 de março de 1892

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Um dia pelos meandros da tortuosa política imperial sentiu-se ressoar — magnífica e augusta — a voz de alguém entoando uma sinistra oração fúnebre "sobre os esquifes que passavam", em direção às trágicas necrópoles da honra e do civismo.

E nessa sociedade, dizem-me os homens desse tempo, que vivia sob o fatalismo bíblico da divina providência; aonde esta mística abstração dos crentes adquirira uma realidade quase objetiva, guardando a tranq uilidade do colosso americano, cuja imensa paz era uma imensa anquilose; na velha sociedade monárquica, que tivera até então, pela própria inconsistência, a propriedade fatal de esterilizar todos os esforços, todos os impulsos dos heróis em prol dos grandes princípios que fazem a honra das nações — começou-se afinal a compreender toda a dolorosa tristeza dessas derrotas morais, em que tudo é perdido, ficando unicamente como um irrisão ou um castigo — a vida.

E fora a palavra vitoriosa de um crente, de um batedor de novos ideais, que, galvanizando-a, lhe estimulara a curiosidade ao menos de presenciar a queda dos homens que eram os mais altos fatores da sua prosperidade.

Recordando o fato, longe está de nós a intenção ou a tarefa de apontarmos idênticos esquifes em demanda das mesmas necrópoles.

Por uma fatalidade, que é a da lei desconhecida e cruel que impõe, no desdobramento da existência social, a véspera tristíssima das crises aos dias de civilização e de glórias — hoje, eles passam por aí em maior número talvez, mais lamentáveis.

Dantes ainda havia uma certa solenidade nesses grandes desastres, e tivemos políticos que se fizeram memoráveis a partir do dia em que rolaram das eminências do poder. Essas grandes quedas abriram largos parêntesis na existência geral e eram largamente comentadas.

Hoje, são uma coisa comum em que ninguém repara. Habituamo-nos a esta singular desdita e não se procura sequer saber qual a sinistra morgue, de onde partem tantos féretros anônimos.

Após o contragolpe de 23 de novembro, a reação triunfante da honra nacional, iniciou-se a trágica degringolade dos que pela traição à fé republicana tiveram logicamente sobre as cabeças o gume da justiça revolucionária.

De um mesmo embate a reação atirara por terra os criminosos e os cúmplices do crime. Alguns dias tentaram a majestade da queda; a maioria porém esvaiu-se silenciosamente na multidão, abroquelada na própria niilidade.

Esses, porém, não entristecem tanto; vitimou-os o próprio erro, a falsa compreensão das ideias que supunham possuir, e resta-lhes ainda a absolvição dos que definem o homem, como um enigma, um conjunto de qualidades disparatadas que vão da suprema fraqueza ao heroísmo romântico.

Às vezes as sociedades, como os planetas, têm os seus pólos antagônicos, e para que um se inunde de luz faz-se indispensável ao outro a imersão na sombra: os homens de 3 de novembro subordinaram-se à fatalidade da própria posição, antagônica à dos que, num esforço épico e formidável, almejavam todo o brilho do ideal republicano.

O que porém entristece e bate e assombra e aniquila a toda a genteé esta coisa incompreensível, a queda dos que nunca subiram, dos que por uma lamentável depressão mental — numa espécie de suicídio psicológico — matam as próprias ideias e nessa perigosa posição de oposicionista — que pode ser brilhante e digna e altamente simpática — se esterilizam inutilmente.

No entanto, era necessário até que do lado oposto ao governo partisse, alevantada e fulgurante, a voz de alguém que soubesse pensar.

Os próprios diretores da política atual têm bastante espírito para não acreditarem que estejamos no melhor dos mundos: — a história das sociedades está cheia dos erros inerentes ao próprio desenvolvimento que surgem ao impulso do próprio engrandecimento, como no fenômeno das interferências luminosas, as raias escuras, do conflito das luzes.

Animada de um poderoso espírito de crítica e de análise, uma oposição robusta pode atingir a perfeição de governar indireta mas eficazmente.

Infelizmente, isto não se dá. Chamam oposição à aglomeração fortuita de alguns indivíduos animados de despeitos comuns.

Não existe uma arregimentação estabelecida à luz de um princípio — tendendo a um objetivo determinado, porém a ação dispersiva de um bárbaro egoísmo a satisfazer.

E nessa luta, em que não existe o apelo constante às consciências, mas a constante exploração da própria vaidade, esgotam-se por aí alguns homens, inutilmente, inconscientes de que a oposição é uma grande escola para o talento e para o caráter.

Não se fixam por uma expansão do pensamento ao meio em que atuam, não o observam, não o estudam; todo o esforço mental que descolam não vai além da observação concreta do que aparece, e enquanto a sociedade se agita por um maior acréscimo de vida, por um acúmulo de novas e indestrutíveis forças, condensada na solidez dos princípios, e através do vasto renascimento da vida nacional, surgem, irradiando para os mais altos destinos, todas as atividades; enquanto tudo isto se dá cada qual compreende que a vida atual, adaptação ao meio republicano, impõe a tarefa duríssima e nobre da elevação constante da existência pessoal; enquanto se opera assim o fato de uma imensa regeneração — eles se extinguem.

É doloroso.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 1o. de abril de 1892

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Ainda bem.

Perdem-se distantes, muito ao longe, com o acompanhamento obrigado de uma surdina lacrimalmente hilariante, de ópera cômica, os últimos passos de conspiradores.

Não houve desastre algum a lamentar.

Os bravos revolucionários obedeceram mais uma vez às tradições singulares da nossa demagogia incruenta.

Mais uma vez se patenteou uma notável abnegação, um raríssimo empenho pela integridade da vida.

A inócua burguesia, sentindo exsolvida a sombra do terror, rejubila-se feliz, pelo comentário alegre da jornada.

Engrenam-se outra vez os dentes; ligeiramente deslocados, da máquina social, que segue, inalterável, a indefinida marcha, através da queda e levantamento simultâneo dos homens e das ideias.

Ainda bem, para nós.

Nada pior para o revolucionário do que isto — desmoralizar a revolta.

Ele pode enfrentar a bala; por mais violenta que esta seja, não penetra o aço maravilhoso de um caráter e não se fuzilam as armas; ele pode afogar dentro da cintilação de uma idéia os brilhos das baionetas e até na queda, como Baudin, rolando, do alto da barricada desmantelada, morto — no seio da multidão, e redivivo — na história, na própria queda ele é uma força capaz de ao mesmo tempo se fazer temer e admirar, enquanto puder se eximir à única potência que extingue, inexoravelmente, como o raio, numa fração de segundo — o ridículo.

Nós temos, por índole, uma grande simpatia pelos heróicos rebelados, que vivem dentro de uma vertigem e procuram pela movimentação vigorosa do meio imprimir-lhe a febre da revolta.

Chegamos à República pelas asperezas da propaganda revolucionária. E nestes bons tempos, embora repelíssemos o espetáculo das reações ensang uentadas e compreendêssemos, fitando a grande revolução, como o representante de seus mais nobres destinos o espírito generoso e altíssimo de Vergniaud, preferíamos a trágica hediondez de Marat à feição desfrutável de Anarchasis Clootz; o que fazia chorar, ao que fazia rir a toda gente…

De fato, para os que intentam a conquista da opinião geral, tarefa dificílima e ousada, deve existir a cavaleiro de todas as outras uma preocupação — serem tomados a sério.

Os que assim procedem são precipitados sempre, embora exagerem a ação destruidora — e numa grande perversão do sentimento e do espírito, como os desvairados do Terror, realizem a síntese estranha de formarem com as palavras liberdade; igualdade e fraternidade, os lados do inumano triângulo das guilhotinas…

Tristes, porém, dos revolucionários cujas ações, metrificadas, se subordinem à ligeira toada das partituras alegres.

No entanto o nosso meio atual favorece-os extraordinariamente.

Dantes ainda havia, reagindo pela própria passividade aos que assim lutavam, a pesada sociedade monárquica, sem vida e inerte, crescendo por superposições de camadas, como as pedras. Hoje, iniciamos o apelo à próxima vitalidade e tornamo-nos mais acessíveis e impressionáveis às ideias.

A instabilidade natural em tudo, por uma mudança radical que nos cumulou de maiores direitos e como causa imediata — maiores deveres — é, já, por si mesma, um poderoso auxiliar dos que intentam a tarefa inglória de prolongá-la.

Vemos agora evidenciar-se isto pelo volume exagerado que soem assumir as coisas mais insignificantes. Está na ordem do dia o sacrilégio cometido na Capital Federal — atentado ridículo e repugnante, que em qualquer outra sociedade não sairia da sombra aonde se gerou e que entre nós é filiado ao positivismo e assim lamentavelmente atirado, como um respingo de lama, aos que marcham, muito distantes, na vanguarda do espírito moderno.

Pois que aproveitem e aumentem esta instabilidade; explorem as questões religiosas — delicadíssimas e eivadas de perigos; sacrifiquem às próprias paixões os mais altos interesses; que perturbem e tentem a destruição de tudo o que está feito — e espantem a todo o mundo…

Mas não façam rir ninguém.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 2 abr. 1892

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Tentando a reabilitação de Maquiavel, Macaulay, seguindo uma direção oposta à de Bacon, não o apresenta como um espírito singular de democrata, golfando no seio do despotismo daqueles tempos a mais dolorosa e a mais delicada ironia. O crítico inglês admite que cada sociedade tem os seus vícios característicos e que a posteridade, o supremo júri das gentes, procede em seu julgamento de uma maneira sumária.

Achando muito numerosos os delinq uentes, escolhe alguns deles, ao acaso, e sobre o pobre testa-de-ferro dos desmandos alheios aplica o veridictum fulminante.

Maquiavel foi escolhido entre os culpados da sociedade de Lourenço de Médicis.

Precisamos, porém, protestar também contra a introdução deste princípio na filosofia da história.

Não tanto pelo muito que entristece e assombra toda gente, o eterno espantalho desses longos martírios, dessas tristíssimas memórias dilaceradas pela pena de todos os críticos, mas porque nos assustamos de antemão, procurando introduzir da observação do nosso meio, o representante infeliz de todos os seus defeitos.

Não pelo que diz respeito a nós, maioria hoje e minoria ontem, que nos batemos pelo Governo com altivez adquirida numa oposição vitoriosamente sustentada, que somos uma uma amplificação do que éramos ontem; e, como os guerreiros antigos, fomos buscar as esporas de cavaleiros nos centros agitados da luta. Nós, dizemo-lo ingenuamente, não podemos, pela reunião ou síntese dos nossos defeitos, fornecer um monstro à História. Seguimos retilineamente até aqui, sem apelo às sinuosas dos desorientados; de um golpe de vista revemos todo o passado e fazemos dele toda a garantia do futuro.

Preocupa-nos, porém, o mártir que enviaram à história pátria, os representantes da feição má da nossa nacionalidade e que no subsolo da República vivem a vida hibernante dos que não têm no cérebro a irradiação fecunda de um ideal.

As repúblicas italianas tiveram a decrepitude precoce dos boêmios que morrem cedo, estiolados nas labaredas das próprias paixões e rimando a própria desgraça. Representa-as ante a posteridade um ente assustador é certo, mas genial e capaz de deslumbrar pelas magias de um grande talento defluindo da suprema maldade. Elas estão todas sintetizadas naquele homem singular e, através do Maquiavel-poeta e do Maquiavel-político, vimo-las desmoronando e grandiosas ainda no próprio aniquilamento.

Qual será porém o trágico bonzo, misto de supremo ridículo e de suprema insânia, capaz de condensar na fisionomia informe o lado condenado da sociedade brasileira deste final de século, destinado ao golpe despiedado da justiça histórica?

A diminuta, a diminutíssima, a exígua minoria dos leais, que acompanharam a dor do Imperador deposto, pode enriquecer as tradições do nosso brio, com a postura heróica do Barão de Ladário.

Os republicanos históricos têm já, na vida inextinguível da história, a alma olímpica de Benjamin Constant ou a memória augusta e puríssima de Silva Jardim.

Os que dirigem hoje a República podem-se definir pela serenidade vingadora do Marechal Floriano Peixoto.

Qual, porém, será o sinistro bufão, alguma coisa que reúna, num consórcio extravagante, a máxima tristeza ao máximo ridículo, a ferocidade e a fraqueza, e insciência e a audácia — qual o representante infeliz que pagará amanhã pelas culpas desses, que intentam, da sombra, o apedrejamento, dos que marcham em plena luz?

Confrange-se o espírito prevendo o espantoso martírio; perturbamo-nos de antemão ante a apresentação dessa fisionomia singular às gerações do futuro.

A nossa época é a nossa pátria no tempo; anima-nos, por ela, um grande amor, desses que escurecem todos os defeitos e todas as maldades; queremo-la o mais possível gloriosa e imaculada, emergindo do batismo de luz da democracia.

É preciso pois — a prevalecer o princípio do pensador inglês —, é preciso que, desde já intentemos a tarefa de obstar que entre na história e escandalize esse amálgama esquisitíssimo de La Palisse Quasímodo.

Que se derrame sobre tudo isto — o silêncio esmagador das ruínas…

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 3 abr. 1892

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Transcrevemos do Livro do exilado, de Edgar Quinet, esta admirável fantasia:

"Escutai:

Disse uma fada um dia a um cavaleiro: eu vou fazer-te presentes magníficos. Far-te-ei, primeiro, o que entre nós chamamos um mar de angústias e tu procurarás atravessá-lo, a nado; é provável que te afogues. Suponhamos porém que o atravesses a salvo; eu te farei, ao saíres, um lago de amargores, cem vezes mais perigoso que o primeiro; tu aí te extinguirás infalivelmente. Se, porém, realizando o impossível, tu o atravessares ainda, terás à saída uma legião de gigantes, amigos meus, prestes todos a te abaterem, sob os pesados montantes de ferro. Admitamos ainda que consigas escapar. Neste caso encontrarás um castelo magnífico, uma princesa deslumbrante — a Liberdade.

"— Ah! — bradou o cavaleiro — por que não começas por aí, já que podes tudo?

"És muito indiscreto — responde a deusa. — Se dás mais uma palavra, transmudo-te em réptil…"

A moralidade da fábula existe por aí, limpidamente, desvendando-se à observação mais simples.

A liberdade, a verdadeira liberdade, não é uma coisa que se decrete, que possa sair do espírito dos legisladores, como Minerva, armada e pronta à realização da sua ingente tarefa.

É como direito, um produto cultural das sociedades, e como tal evolve, seguindo a direção de um desenvolvimento superior da inteligência e dos sentimentos.

A filosofia moderna, fazendo-se abdicar das alturas fantásticas em que a colocora a metafísica — como uma coisa inata e absoluta, sobranceira às agitações da vida —, nobilitou-a ainda mais, podo-a em função das lutas brilhantíssimas inerentes à condição humana.

Não é uma dádiva, que se recebe — é uma conquista, muitas vezes trabalhosa, que se realiza.

Vinculada profundamente à existência humana, cuja maior perfeição está no justo equilíbrio dinâmico, entre a sociedade e o indivíduo, ela é o mais vigoroso elemento para a chegada a este objetivo.

A filosofia antiga trouxe-as das miragens encantadoras, onde sonhava, deu-lhe origem divina e entregou-a à humanidade, como quem entrega uma lâmpada brilhantíssima a um cego. Os pensadores de hoje elevam-na mais, dão-lhe uma origem humana; fazem-na a colaboração, o resultado dos esforços combinados de todos os que sentem e pensam, e estudam a sua evolução maravilhosa, na própria evolução das sociedades.

E é por isto que a estremecemos, como um dos melhores legados dos esforços das velhas gerações, em prol do qual nos dispomos a dispender todas as energias do nosso cérebro e da nossa afetividade, para que não se quebre a continuidade dessa nobilíssima solidariedade, que prende, através dos séculos, o presente ao passado.

Fazemos, porém, da ascensão contínua e constante da vida, através de todas as angústias e todas as vitórias, a única maneira de alcançá-la.

Não a desejamos fácil, como o cavaleiro da fábula…

Repelimos, mesmo, esta espécie singular de liberdade que faculta a um sujeito qualquer, o trazer aos enxurros da maior protervia, os homens e as ideias, da mesma sorte que pode dar a outro o direito de dizer que o Sol não é o centro do sistema planetário.

Não é livre quem o quer ser somente; a vontade nada mais é do que o estimulante para esse ideal, que só pode ser realizado pela inteligência — por isso que, em síntese, a liberdade consiste em saber subordinar-se às leis.

Desiludam-se, pois, os que por aí, nos seios de umas frases de reputação duvidosa, espartilhadas numa adjetivação retumbante, estabelecem a máxima licença de palavras e a constante profanação do bom-senso.

Usem e abusem dessa espécie de liberdade, que é a mesma de toda a animalidade inferior; mas quando a ação governamental for coagida, em prol do bem geral, a refrear ou cercear-lhes a ação não gritem que é a liberdade da pátria que se sacrifica.

Esta não é facilmente violada; é inviolável mesmo: guarda a consciência nacional — amparada nos princípios da democracia; cresce e se avoluma na razão direta da nossa própria elevação e para torná-la cada vez maior achamos naturais todos os esforços, e lançamo-nos, sem pavor, ao mar de angústias da lenda de Edgar Quinet.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 5 abr. 1892

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Por mais incruenta que tenha sido, a nossa transformação política foi radical e seus efeitos se evidenciam a cada passo.

Basta considerar-se a distância entre a política marasmática do Império e os princípios atuais.

Não passamos de uma maneira contínua da antiga Constituição para a de hoje. Separam-nas, a grandeza de conquistas realizadas por outras sociedades, através de lutas, em que não tomamos parte.

Enquanto as nacionalidades do ocidente da Europa e na América — os Estados Unidos — sob o domínio, muitas vezes, das maiores crises, levantaram os princípios que nos decoram hoje — prolongávamos dolorosamente ao último quartel do século XIX, a inatividade colonial.

Erguemo-nos afinal, sem termos combatido, para partilharmos da vitória.

Tudo que temos hoje é uma dádiva generosíssima do nosso século.

Sejamos sinceros.

A nossa história patenteia o tristíssimo fato de uma sociedade esmagando, pela própria passividade, aos seus melhores filhos.

Da Inconfidência à Confederação do Equador, o historiador não sabe o que admirar mais, se o aparecimento de tão grandes heróis em tal sociedade, ou se a indiferença de tal sociedade ante homens tão ilustres.

Nunca tivemos essa indispensável continuidade de ideias e atos, que salva, através dos séculos e das crises, todos os esforços dos que lutam.

Extinguiam-se nos patíbulos, juntamente com a vida, os altos pensamentos dos mártires da nossa história.

De sorte que a evolução democrática, que se poderia ter iniciado com os revolucionários do século passado, é uma coisa recente; vem de 1870, com a brilhante e ousada minoria que nunca mais a abandonou.

E o advento da República exprime afinal a conquista realizada por essa minoria brilhantíssima sobre uma maioria indiferente.

Por mais incruenta, pois, que tenha sido essa transformação política, ela conduziu-nos a uma fase delicadíssima de adaptação às instituições republicanas.

Atravessamos, inegavelmente, um período de transição inevitável.

Faz-se preciso, por conseq uência, sobre todo este estado de coisas, o influxo vigoroso de uma política exclusiva e eminentemente conservadora, que ampare, nessa brusca ascensão para uma existência maior e melhor, uma nacionalidade que lutou muito pouco para atingi-la.

O objetivo fundamental dessa política dever ser, a todo o transe, o estabelecimento da ordem e sabe-se quanto é difícil semelhante tarefa, nessas quadras perigosas, em que o próprio balanceamento dos espíritos favorece as piores causas e a gestação de todas as explorações.

O lema da nossa bandeira é uma síntese admirável do que há de mais elevado em política.

Precisamos porém não invertê-lo, o que seria um desastre; quanto antes, pois, é necessário que todo o progresso, que relativamente já temos, se assente sobre a base indestrutível da consolidação da República.

Não temos, felizmente, divergências religiosas ou políticas tão profundas que dificultem muito o estabelecimento da ordem material. Traçadas limpidamente as órbitas de todas as atividades, basta que sobre elas paire a vigilância severa das leis.

É o que se tem feito felizmente.

Digam o que disserem, o governo enveredou com brilhantismo pela única política, capaz no momento atual de estabelecer as garantias da paz e acompanhamo-lo desassombradamente, nós, que no fato de uma ampla adaptação ao sistema democrático vemos mais do que uma conquista política — a grande regeneração de uma sociedade.

Seguiremos para o século futuro, robustos e grandes; neste século, cuja deslumbrante grandeza escapa às mais ousadas deduções da sociologia, através das vitórias da ciência e da indústria, a pátria brasileira redimir-se-á; e obedecendo à grandeza do próprio destino assumirá, enfim, a hegemonia das nações latinas…

Todo um século de inatividade terá compensado em alguns anos de lutas civilizadoras — e um grande futuro será afinal a absolvição para um passado estéril.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 6 abr. 1892

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É fácil esta luta de guerrilheiros, com o aproveitamento de todas as encostas, de todos os barrancos ocasionalmente oferecidos e oferecendo continuidade ao inimigo, como suprema tática — o deserto.

É o extremo recurso dos fracos que procuram a vitória — um vasto fracionamento do combate.

Para isto todas as armas são úteis e todos os companheiros bons.

Esta luta singular em que se vence afinal ao vencedor, pela niilidade das próprias vitórias, tem na história as mais disparatadas feições.

Romanesca e gloriosa, salvando a Espanha — aonde a legenda napoleônica iniciou a sua página dolorosa —, ela é selvagem e condenável na Vendéia, transformada inteira numa emboscada — ante os homens de 1889.

A Vendéia preocupava mais aos grandes revolucionários, do que a Europa inteira apresentando-se a despenhar-se sobre a República, numa avalanche de lutas formidáveis.

Enviaram, para abatê-la, o seu melhor general, Hoche; e o grande exército, que mais tarde passearia triunfalmente pela Europa, recebeu a sua mais larga cicatriz, daqueles adversários impalpáveis, que punham-lhe em frente uma única trincheira — a sombra misteriosa das suas florestas.

A República brasileira tem também a sua Vendéia perigosa.

Não fazemos, nesta aproximação histórica, a injustiça de compararmos em tudo, aos perturbadores de hoje os rudes bretões, que se fizeram os últimos cavalheiros da velha monarquia derruída, enquanto abrigava-se no estrangeiro, acobardada, a aristocracia francesa.

Rebelados e ousados, extinguindo, numa desordem maravilhosa, a admirável simetria dos batalhões republicanos, procurando a vitória através dos incêndios e das ciladas — ligava-lhes entretanto os corações o liame indestrutível de um sentimento comum.

Não encontramos isto nos que, unicamente pela maneira por que perturbam o começo da República, se equiparam aos heróicos vendeianos.

Falamos da maneira a mais geral.

Se houvesse uma idéia, um princípio, um objetivo qualquer, o mais insignificante, do lado dos que — de norte a sul do país — parece terem tomado a deliberação infeliz de sistematizar a anarquia — à luz dessa idéia ou desse princípio, por mínimo que fossem — já se teria travado a discussão mais franca.

Nada disto, porém.

Existe apenas a determinação de atirar por terra tudo o que está feito; o desalojar as posições, para realizarem um único ideal — ocupá-las.

E o propósito disto, diuturnamente, os despiedados prelos realizam o esmagamento do bom-senso ou remoem uma estafada retórica revolucionária, expluindo de umas velhas frases sonoras e vazias.

Estabelece-se, francos, a exploração e o aproveitamento dos menores acidentes, muitos dos quais naturalíssimos, nessa grandiosa translação de toda uma sociedade para um regímen melhor.

Ainda há pouco acirrou-se escandalosamente o sentimentalismo do povo acerca de um fato insignificantíssimo; foi mesmo tentada uma questão religiosa e não se assustaram eles ante a eventualidade do grave aparecimento do clericalismo — o constante pesadelo de Gambetta quando restaurava a França.

E assim seguidamente, aliados de todos os males que surgem, o mínimo incidente que aparece é como seteira, de onde nos espingardeiam.

A República vencê-los-á, afinal, como a grande revolução à Vendéia, com uma diferença fundamental porém — a glória do republicano francês foi verdadeiramente brilhante, graças à própria grandeza dos vencidos…

Quando porém, entre nós, no último barranco esboroado, rolar o último adversário, nós que não temos dedicações pessoais no governo, como se insinua deslealmente, que vemos nos homens do poder símbolos abstratos da realidade, dos princípios que adotamos, nós não teremos o triunfo, mas uma triste lição acerca de todos os perigos, capaz de produzir a indisciplina dos sentimentos e das ideias.

Que nos sirva de consolo este ensinamento por vir — já que no presente invade-nos a máxima tristeza, vendo transportado para as lutas ideais do pensamento a tática extravagante de substituir a batalha — por um vasto, um indefinido, um profundamente doloroso deserto tristíssimo de ideias…

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 7 abr. 1892

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Seguimos com a pátria para a eminência fulgurante do ideal republicano, como quem vigia a abrupta e aspérrima encosta de um vulcão andino…

À medida que sobe, atravessando sucessivamente todos os climas da terra, distraído pela rápida mutação dos grandes panoramas, desde a flora exuberante do equador à vegetação rudimentar dos pólos, o naturalista adquire um novo encanto em troca de um maior perigo.

E quando bem alto, envolto na reflexão maravilhosa das geleiras, o assalta todo o deslumbramento das grandes alturas iluminadas e um desmesurado horizonte incita-lhe os mais ousados sonhos à fantasia, é-lhe preciso calar o brado entusiástico que lhe irrompe do peito, para que se não despertem as avalanchas impetuosas, adormidas em torno, uma passividade traidora.

Nós vamos assim.

Arrebatados, como todos, na impetuosa corrente dos ideais modernos que se aprestam, nesta agitada véspera do século XX, a todas as conquistas da atividade humana, inscrevemo-los contudo no círculo inextensível de uma política conservadora e altamente cautelosa, única capaz de evitar a perda, a dispersão dos princípios e ideias já adquiridas.

Da mesma sorte que a mais ligeira oscilação atmosférica transmuda a silenciosa calma das grandes altitudes numa tempestade violenta — compreendemos todos os perigos que existem, de uma maneira implícita, nos incidentes os mais insignificantes.

Subordinamo-nos pois — com uma constância inquebrável — a esta orientação, a única apta para conduzir-nos, sem maior perigo, ao futuro.

Não se pensa porém assim unanimemente. Há uma nota tristemente discordante, destoando nesta harmonia de sentimentos e ideias e capaz — talvez — de produzir os mais lamentáveis desastres.

Antagônicos aos que, cientes de toda a delicadeza do atual período — envidam o máximo esforço para que se realize afinal o indispensável equilíbrio das ideias, dos interesses e uma aspiração política comum — levantam-se a todo o instante, açulando a discórdia, os que têm todo o interesse na perturbação geral.

Segundo notícias ontem recebidas, alguns generais — intimaram o Vice-Presidente da República, para realizar quanto antes a eleição presidencial.

É um fato contristador, este.

É realmente lamentável que a agitação que até há pouco tempo se desmoralizava, pelos próprios agitadores, tenha agora o apoio de nomes conhecidos de homens, que já tiveram prestígio.

Não acreditamos, entretanto, que se levantem as avalanchas que tememos — na altura em que nos achamos.

É preciso porém que o governo, fortalecido pelo prestígio inegável da lei, seja inexorável cumprindo-a.

Na fase atual qualquer vacilação na repreensão dos crimes políticos é pior por sua vez um crime maior.

Seguiram já para as amarguras de um prestígio os rudes e inconscientes revoltados, de cuja boa-fé se ludibriou tristemente para uma revolta abortada.

Sofremos conseq uências de um ataque criminoso às leis e à ordem; tivemos entretanto a atenuante da própria rudeza.

No caso presente o atentado contra a ordem é maior, graças ao prestígio mesmo dos que o fazem.

É preciso que se faça sentir quanto antes por parte do governo a repreensão mais enérgica para que não continuemos por mais tempo à mercê de todos os desmandos, de toda a insânia e toda a desorientação dos que não temem a enorme queda — nossa e da pátria.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 8 abr. 1892

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O manifesto dos generais, com tanto açodamento aceito pela oposição, é de uma incoerência pasmosa.

Não resiste à mais vulgar análise. É um erro, e, o que é mais sério — um crime.

Começam pedindo ao governo o termo de intervenção militar, e não se lembram de que o fato mesmo desse pedido, revestido do valor de uma alta hierarquia de classe, constitui, por si mesmo, uma intervenção bastante séria na ação governamental; é, pois, uma incoerência.

Recordam o estado anárquico dos Estados e o critério que devem possuir de homens experimentados, numa longa vida sulcada de lutas, o próprio critério que têm deve convencê-los de que puseram, por esta maneira, ao lado da anarquia — sempre pronta a explorar tudo —, implicitamente, um prestígio que fora melhor se aplicasse a intenções mais aproveitáveis; é, portanto, um erro.

Terminam pedindo a eleição presidencial; não discutimos esta questão agora — a verdade, porém, é que um tal pedido, feito ostensivamente, embora sob uma forma respeitosa, é um atentado à ordem, é mais um balanço em toda a agitação que por aí vai; é, nas quadras normais, uma falta disciplinar, no período gravíssimo, porém, por que passamos — é um crime.

Suponhamos que o governo cede a esta imposição disfarçada; procuremos por uma demonstração ad absurdum a evidenciação do próprio absurdo que pretendem.

Ante esta subordinação à força, desmoralizar-se-ia, abdicaria, abandonaria forçosamente o poder. A legalidade, a extralegalidade, restaurar-se-ia, mais uma vez, graças — não esqueçamos isto — à intervenção militar. Como conseq uência inevitável — nova anarquia nos Estados, novas reações, novas lutas ainda intensas, até que se fizesse precisa uma hiperlegalidade, oriunda da mesma fonte, em substituição da extralegalidade combatida…

E neste deplorável círculo vicioso, voltando sempre, para corrigirmos um erro, ao começo do mesmo erro — teríamos uma tristíssima acumulação de desastres, quando o que precisamos e o que queremos é a larga estrada ascensional, e retilínea, que nos afaste de tudo isto.

O governo não cederá, porém; cerca-o impenetrável e magnífica uma barreira ideal — o fulgor das espadas e dos espíritos mais heróicos e desassombrados da pátria.

Abandonar, em meio, à missão reconstrutora, equivale a romper, ilogicamente, a solidariedade que mantém com a feição nobre da nossa nacionalidade.

Subordinar-se a imposições de quem quer que seja, por mais encobertas que sejam, equivale a decretar, tacitamente, a própria fraqueza.

Permitir o impune campear dos que, por quaisquer meios, imprimem estimulantes à anarquia dispersiva — que é o inimigo comum —, equivale a faltar à sua missão principal, é, moralmente — extinguir-se.

O governo não cederá e prestigiará a lei.

Um número fatídico de generais não profanará a data, por vir, do próximo dia da nossa inteira regeneração política e social.

Volvam em torno o olhar todos os demolidores, os que por uma cisão estabelecida com as aspirações comuns realizam o fato estranho de se expatriarem sem o abandono do país — e verão que os dedicados à atual ordem de coisas têm a predisposição heróica dos predestinados — e são, em meio das lutas do presente, como a síntese, a miniatura da grande nacionalidade brasileira do futuro.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 10 abr. 1892

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Mocidade caturra, a nossa…

Somos, no banquete espiritual, uma espécie de importunos convivas, corretamente vestidos de preto, em que a fronte moça se perde nas rugas de uma velhice precoce e o gesto comedido e austero é quase um escândalo, ante o despreocupado donaire, o desempeno feliz, toda a inquieta elegância dos voltairianos fin de siècle, dedicados heroicamente à oposição sistemática.

Arredados por outras preocupações — tudo o que vibra e vive em torno, chega até nós como um eco, um eco longínquo, incapaz de imprimir-nos à inervação a prodigiosa dinâmica dos sentimentos, através da qual simultaneamente esvai-se e se regenera-se a vida.

Tumultua a sociedade; e enquanto eles — os fortes, os felizes, os moços — os analistas incansáveis do nosso meio — aproveitam afanosamente tudo o que ascende da vasa, graças à fermentação geral — nós, os velhos de cabelos pretos, seguimos a parábola ousada de uma utopia, indiferentes ou irônicos.

Mocidade caturra e ingrata.

Há poucos dias se expandiu lírica e dolorosamente a sentimentalidade geral; não criminosa e bárbara se erguera crispada sobre a fronte silente do Cristo; o telégrafo, vibrando eletricamente a comoção geral, transmitira aos mínimos recantos do mundo o espantoso crime; agitou-se no túmulo a carcaça desguarnecida de Torquemada; os réus confessos de ateísmo fizeram-se Madalenas soluçantes e trocaram, por momentos, os altos coturnos pretensiosos pelas sandálias humílimas dos penitentes; fez-se precisa a reparação, e a reparação se fez — amplamente — com as tochas, convictamente vibradas, nas costas de meia dúzia de infiéis rebeldes; e no meio de tudo isto, nós, ou tivemos uma ironia esfaceladora, farpeando, despiedada, aos crentes de última hora, capazes de pintar bigodes no rosto imaculado de Maria, ou a razão frigidíssima, condenando o fato em si e os seus inquietos exploradores.

Ontem novo gérmen de comoção geral. Entrada triunfante de uma falange regeneradora, envolta numa grande onda de luz, destilada de velhas espadas, brunidas no revérbero quente e fulgurante das batalhas. Expluíram ditirambos apaixonados. Vasto renascimento de esperanças estoladas. Uma magnífica aura guerreira — feita de vibrações heróicas de clarins, rutilações de metralha e resfolegar ruidoso de heróis — iniciou-se majestosa. O Grande Velho desceu de Petrópolis e o câmbio, o cobarde e incorruptível fiscal da confiança estrangeira, apresentou-se, aterrado, para um salto descensional e grave.

E enquanto tudo isto se dava, quando por uma espécie notável de endosmose uma grande febre de lutas penetrava as veias dos mais indiferentes — nós não tínhamos a postura, a linha admiravelmente romântica deles, dos valentes, a nossa vida não oscilou, combalida, num grande desequilíbrio do sistema nervoso — antes, num impulso perfeitamente burguês e prosaico, voltamo-nos para esta velharia — a lei.

Dois fatos capitais, de transcendente importância — inteiramente perdidos.

Decididamente somos ingratos, caturras e despiedados.


E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 13 abr. 1892

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A situação é esta: de um lado, um grupo de indivíduos que intenta a subversão da ordem, e, de outro, um governo que se faz respeitar.

Estão definidas as posições. Não, porém, à luz de uma idéia ou de um princípio político.

Muito recente, a política republicana não teve ainda tempo de diferenciar-se em partidos.

Há uma causa mais geral e profunda, justificando o aparecimento constante dos que, tão lamentavelmente, rotulam todos os nossos defeitos, os mais condenáveis.

As sociedades, como as espécies, evoluem através de um perene conflito entre o adaptar-se a novas condições de vida e hereditariedade conservadora, que as contrabate e repele. Ora, a adaptação do regímen democrático é uma coisa difícil; torna-se portanto mais cômodo, aos que se forram ao império de uma orientação segura, o entrarem para as agitações políticas com todas as qualidades adquiridas.

A sociedade monárquica não nos legou, certamente, esse respeito ao prestígio da autoridade, mais necessário ainda às repúblicas do que ao cesarismo.

Ela não nos ensinou a vermos, numa admirável harmonia com as leis, a única força dos que governam. Daí, esta tendência para assaltá-las, esta nevrose de desmoralizá-las hoje — no seio da República —, onde são inexoráveis e soberanas.


Daí, toda esta intermitência de crise e o aparecimento dessa espécie de criminosos — vítimas dos que atiram contra a estabilidade do meio atual, inconscientemente quase, impulsionados pelo meio anterior.

E uma coisa que se dá, no início de todas as reformas e a anistia, que nestas ocasiões quase sempre ampara os agitadores vencidos, é, verdadeiramente — uma absolvição dos erros do passado, que eles representam.

Felizmente, estes vícios hereditários, breves, se extinguem — por isto que, mesmo pelo muito depauperarem os que herdam, facultam-lhes as maiores derrotas.

Evidenciou-se isto agora.

Toda uma conspiração — incubada há meses, que aliciara adeptos em todas as classes, que se construíra recrutando todos os ódios e todos os despeitos e tivera afinal artes de se decorar, no último momento, com a auréola de um herói — explodiu — com o resultado negativo de entregar à justiça que a realizaram.

É uma coisa nova; parece que estamos destinados atualmente a fornecer casos originais à história. Esta aponta-nos inúmeros fatos de revoltas esmagadas, sob cargas impetuosas de regimentos e explosões de metralha; é novo porém o fato de uma conspiração que sai à rua e se dissolve a pranchadas, como uma arruaça qualquer de irresponsáveis.

Seria, entretanto, uma inverdade dizer que falta a muitos dos atuais perturbadores altivez ou coragem individual; a verdade, a tristíssima verdade, exuberantemente comprovada, é que nada existe capaz de debilitar mais os fortes, do que o agremiarem-se sem a fortaleza moral de uma idéia.

A união, nestes casos, faz a fraqueza; aumenta a intensidade do atentado, na razão inversa das probabilidades de vencer.

A vitória do governo não desperta hinos triunfais — foi a correção de um erro e realizou-se felizmente, com extrema facilidade.

Que o afastamento temporário dos agitadores facultem [sic] a consolidação da ordem e o alevantamento desta pátria digna de melhores dias.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 17 abr. 1892

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Há cinco meses festejava-se o segundo aniversário da República.

Desperta pelos hinos marciais a população da capital se alevantara festiva, estacionando desde mui cedo no local destinado à grande festa.

Ali, refletindo todo o brilho de um sol, ardente de estio, nas límpidas baionetas perfiladas dos batalhões em linha, havia como que uma explosão silenciosa das flamas ofuscantes.

Parecia deslembrado um grande crime.

Apenas uma ou outra fisionomia torturada, de rebelde impenitente, destoava da alacridade comum. Nas janelas do Quartel-General, aonde dois anos antes se aprumavam as estaturas dos rebelados vitoriosos, ostentavam-se, ridentes, grupos formosíssimos de moças curiosas. E o povo, aquele feliz e despreocupado povo fluminense, tumultuava na vasta praça — à espera da diversão prometida.

Admirável dia aquele — ardentíssimo e claro —, defluindo, caindo, iluminado como uma auréola, de um firmamento sem nuvens.

Era impossível haver mais resplandecente gambiarra, para a sombria farsa que se ia desdobrar — a comemoração da vitória democrática, em pleno domínio da ditadura…

Esta consideração, porém, não ensombrava o espírito da maioria, não entibiava a alegria fácil da grande massa de indiferentes; o que a preocupava, esporeando-lhe rispidamente a paciência, era o desejo, um grande desejo desenfreado, de contemplar o velho marechal, que, num ímpeto de energia, vencendo a dispnéia estranguladora, ali apareceria em breve.

Quando, porém, a nota estrídula dos clarins o anunciou, e a artilharia alçou a voz atroadora e através de um vasto perfilar de espadas — ele apareceu —, houve um contraste extraordinário entre o que se esperava e o que se viu…

Não era mais a admirável figura de herói, dominadora e ousada, feita para modelar todo o espírito cavalheiresco e heróico de um povo.

Pálido e alquebrado — no meio de um estado-maior deslumbrante —, o olhar velado de tristeza, era a sombra, nada mais que a sombra do Marechal Deodoro — que dois anos antes, naquele mesmo lugar, vencera o seu mais glorioso combate e se transfigurara imortal — no meio de ovações delirantes.

Sugerem-nos esta vaga reminiscência, as notícias contristadoras, que chegam da Capital Federal. Sem o querermos, vemo-lo através do seu último triunfo, tristíssimo triunfo antagônico a toda a passada grandeza de herói — porque a morte que o assalta agora é como que o seu complemento indispensável.

Por maior que seja a nossa emoção, não a sobrepomos à verdade. Embora nos custe, calamos este sentimentalismo extraordinário que nos caracteriza e que é como uma perene emboscada ao juízo austero da consciência.

Naquele dia o ilustre soldado se incompatibilizara, irremediavelmente, com a existência da pátria, que lhe deve, no entretanto, muito. E ele tinha talvez consciência disto; os que o sacrificaram despiedadamente prepararam-lhe um triunfo inglório e, no meio de tudo aquilo, ele passou — com a tristeza profundamente dolorosa de um vencido.

Hoje está entregue à justiça da História. Do inquérito feito sobre a sua existência notável ressaltam — a épica grandeza dos combates, as expansões magníficas do brio, a aurora fulgurante da República — e um erro!

Este, porém, por mais condenável que seja, não pode refluir sobre um passado ilustre. Não se pode constituir como o coeficiente de redução de uma existência. A responsabilidade do crime de 3 de novembro além disto cai com mais vigor sobre as cabeças de cúmplices que não terão, infelizmente, de prestar contas à posteridade — visto não passarem do aniquilamento da vida objetiva, que tanto deslustraram. Demais, ele que era bravo e poderoso, fez, para atenuá-lo, no fim da sua longa vida de guerreiro, o que não fizera nunca ante o horror das batalhas: — recuou.

Recuou, quando poderia ter lutado e talvez vencido.

A sociedade convulsionada do presente não pode definir-lhe a gloriosa existência.

O que se pode, porém, afirmar, desde já, antecipando o juízo do futuro, é que a sua entrada em nossa história, engrandece-a.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 20 abr. 1892

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Este início de agitações religiosas que se esboça por aí, entre as próprias seitas teológicas, sugere-nos, a nós que não nos subordinamos a dogma algum, mas que não nos negamos a religião, algumas observações oportunas.

Aproveitamos o momento para, embora a traços largos, definirmo-nos bem com esta honestidade incorruptível de consciência, própria aos que amparam a vida na solidez dos princípios, e sem a qual se instabilizam todas as virtudes.

Reconhecemos, como toda a gente, que a religião encarada de um modo geral, sobranceiro a suas formas aparentes, é uma função espiritual evolvendo com o espírito humano e sendo afinal a suprema diretriz da vida.

Iludem-se deploravelmente os que nos vendo emancipados das imposições de todos os dogmas e presos no círculo, racionalmente intransponível, dos fatos naturais, acreditam que pensemos orientar o próprio destino, eliminando da consciência o sentimento religioso. Segundo a escola a que nos filiamos isto equivaleria à mutilação do espírito e destruiria,em grande parte, o valor da concepção dinâmica que reduz a um princípio único toda a vasta metamorfose da existência universal.

Felizmente para nós, pertencemos ao número dos que acreditam que todo o conflito secular entre a religião e a ciência nada mais é do que a tendência para uma harmonia futura, entre o incognoscível indefinido e inconcebível — e o cognoscível — perfeitamente concebível, em cujo seio pode de uma maneira completa definir-se o pensamento.

Decorre daí que não compreendemos tão radicalmente insanável a reconciliação entre uma — cujo objeto é a existência definida, única de onde podem surgir as nossas concepções — e a outra cujo objetivo é perpetuar na espécie o sentimento adquirido de toda a existência indefinida, perenemente insondável.

Segundo pondera judiciosamente Spencer, a paz se estabelecerá entre ambas, quando se subordinarem aos fins respectivos; quando a ciência se restringir às suas explicações próximas e relativas, e a religião se convencer de que o mistério que ela contempla — é absoluto.

A mesma razão que impede a ciência de legislar sobre o mistério, inibe a religião de aproximá-lo das leis científicas.

Todo o passado humano nos fala eloq uentemente da imensa luta, travada em virtude da falsa compreensão destes diferentes destinos; luta maravilhosa, cujo objetivo não é a conquista de uma pela outra, mas — a paz; admirável campanha em que a ciência, sempre vencedora — era a única a fornecer as vítimas; singularíssima batalha em que uma vencia, enquanto os seus melhores filhos passavam por todas as torturas, desde a humilhação de Galileu à agonia de Giordano Bruno.

A crítica científica porém cuja mais elevada missão tem sido, ninguém impugnará isto, a de fixar a religião no seu verdadeiro papel — rebatendo-a vitoriosamente todas as vezes que ela, abdicando da própria grandeza, desce à relatividade e intenta, com a autoridade de fórmulas absolutas, leis e preceitos; esta onipotente crítica científica, ante a qual têm ruído todas as formas dadas ao incognoscível e todos os códigos, tendentes a regulamentarem as nossas relações com ele — vai, felizmente, perdendo, a pouco e pouco, a feição destruidora, à proporção que o espírito moderno se robustece pela aquisição de ideias positivas, dimanadas da observação e da experiência.

Enquanto isto se dá, e cada ciência, agindo isoladamente segundo um ponto de vista especial, alevanta as verdades inerentes aos diversos modos de ser da realidade concebível — a filosofia harmonizando admiravelmente todas as verdades particulares assim estabelecidas, sob um ponto de vista geral, dá-nos o sentimento desta realidade que é o objeto da religião, quaisquer que sejam as formas que assuma. Vemos por aí que o sentimento religioso tem, no seu aparente inimigo, a ciência, um grande auxiliar.

É graças a ele que as crenças religiosas, das brutalidades do paganismo a todo o brilho da moral cristã, foram-se aperfeiçoando sempre, a proporção que mais abstratas se tornaram as representações do incognoscível.

Persistindo a evolução humana na sua marcha sempre ascensional, é lógico esperar que se extinguam afinal quaisquer representações de realidade inconcebível — pairando, por fim, sobre o conhecimento da existência definida, o sentimento, nada mais que o sentimento, dessa existência indefinida, dessa realidade intangível — que sentimos além de tudo o que podemos sentir…

Este sentimento é a base comum de todas as crenças, cujas variações estão unicamente na maneira pela qual o compreendem, os diferentes estados de consciência.

Evolui, guiado pelo espírito humano, crescendo e notabilizando-se com ele, seguindo, uma continuidade admirável, do mais bárbaro fetichismo aos deslumbramentos do Cristianismo…

É preciso, porém, que um indispensável equilíbrio se estabeleça entre ele e a consciência; se o seu deperecimento gera o objetivismo grosseiro dos povos sem crenças — o seu predomínio exagerado é talvez pior, é esse excesso de subjetividade — o fanatismo, que enlutou tanto a história.

Não acreditamos que ele surja entre nós, principalmente agora em que a lei ampara igualmente todas as crenças.

As pequenas agitações, a que nos referimos, acima, não podem alcançar e perverter mais, na elevada posição a que a levou o espírito humano — a este sentimento religioso, que partilhamos também, como os mais fervorosos crentes — mas ao qual não tentamos definir, ao qual não podemos representar…

Estas observações — vagas e talvez obscuras por um defeito de síntese — têm o único valor de mostrarem até que ponto somos neutros, nas atuais cisões religiosas.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 24 abr. 1892

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Aplaudimos sinceramente a generosa anistia concedida ultimamente pelo governo a alguns criminosos políticos.

À primeira vista parece que o nosso já proverbial sentimentalismo — alcançou mais uma vitória, fazendo recuar esta rígida e austera justiça revolucionária, inacessível às prisões, sobranceira a todas as fraquezas e pairando muito alto, sobre o tumulto da sociedade.

Parece que por mais rigorosa que seja a linha reta ideal, que determina a marcha do governo, ele imprime-lhe essas ligeiras sinuosas, para transigir com o meio.

E os que compreendem que todas as agitações só podem extinguir afogadas na serenidade das leis devem, no primeiro instante, entristecer-se.

A justiça, porém, como tudo, é essencialmente relativa. Rodeiam-na as circunstâncias do momento e é impossível caracterizar-se qualquer de suas manifestações, sem a consideração preliminar das causas que a produziram.

Peada — como tudo — às condições exteriores, é bem de ver-se que esta entidade subjetiva, esta nobilíssima manifestação da consciência, obedece, como aquelas, a uma seleção contínua e constante, em função da sociedade inteira.

As reformas, periódicas quase, de todos os códigos, exprimem bem esta evolução da justiça, seguindo a própria sucessão dos estados sociais.

Ora — uma ligeira observação, feita sobre a nacionalidade brasileira, dos tempos que correm, diz-nos de pronto que a justiça, feita sobre os crimes políticos, não se pode erigir com um rigorismo incoercível e inexorável; isto porque ela não pode satisfazer a indispensável condição de ser plenamente geral, abrangendo a todos os delinq uentes.

O nosso estado atual de coisas constitui uma notável espécie de atenuante — para todos esses crimes.

A indiferença, a grande indiferença que domina parte do país, por tudo que diz respeito aos interesses gerais da pátria, desculpa, talvez, a todos os que, num ambiente moral — rarefeito e inconsistente —, descrêem da ação sempre segura das ideias, apelando para as brutalidades da revolta.

Se os sediciosos representam um mau elemento dispersivo — os indiferentes representam um péssimo elemento absorvente e aniquilador.

Aqueles têm ainda a fraqueza desassombrada de, convulsionando a ordem estabelecida, darem lugar à reação vigorosa das leis, mostram-se, apresentam-se, embora através de todas as cautelas dos que conspiram.

Não são porém os únicos a dificultarem entre nós a realização prática dos princípios republicanos.

Mais perigosos, talvez muito mais perigosos, são todos aqueles para cujos crimes não existe flagrante; delinq uentes impalpáveis, intangíveis e numerosíssimos, cuja função pecaminosa consiste em absorver para extinguir, simultaneamente e indistintamente, as mais fecundas ideias e os mais sólidos princípios, em cujo seio deperecem igualmente todos os assomos das revoltas e todas as energias das leis; legião híbrida e incolor, estéril e indefinida, que ninguém vê e todo o mundo sente, e acobertada por esta triste palavra de — indiferentismo.

A última eleição senatorial e o centenário de um grande homem serviram para patentear mais uma vez a sua existência, pelos resultados que deram.

Na primeira se violou deploravelmente esse direito de voto que nas quadras difíceis é um dever; no segundo se falseou à veneração com que a civilização moderna circunda as memórias dos que dedicaram-lhe todos os esforços.

Nada entretanto justifica esse retraimento de certa parte da opinião, quer para as questões do presente, quer para as grandes tradições do passado.

Consideramos todo esse indiferentismo como um inimigo mais para se temer do que as revoltas que têm aparecido.

Já que o governo, pois, se considera bastante forte para garantir a ordem, aplaudimos sinceramente a anistia — porque ninguém pode afirmar que sejam, os revoltosos reprimidos, mais condenáveis do que tanto, tanta gente por aí, talvez, nem saiba que a pátria — existe.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 27 abr. 1892

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O ideal da política moderna — tudo o indica — está numa dependência cada vez mais íntima, do indivíduo para com a sociedade e numa independência, cada vez mais acentuada, de ambos para com o Estado. As próprias imposições sempre crescentes da vida civil imprimem, dia a dia, a todos os espíritos uma disciplina bastante sólida, para dispensar as repressões contínuas dos poderes constituídos ou o seu constante apoio.

O futuro — e é isto uma verdade já velha — pertence ao industrialismo. Ele operará, tonificado vigorosamente pela fórmula soberana da divisão do trabalho, a mais vasta diferenciação e conseq uente aperfeiçoamento da feição mais nobre da atividade humana; crescerá, portanto, paralelamente, com o progresso material o desenvolvimento moral do mundo; a sociedade será uma ampliação da família e restará ao Estado, exclusiva, a garantia da ordem.

Um olhar para o passado nos mostra limpidamente que a luta pela existência, na sociedade, tende sobretudo para este objetivo — a emancipação individual.

Entre as nacionalidades do presente as que se aproximam mais desta fase de ampla independência são, realmente, as que mais nobilitam o nosso século pelas maiores criações do trabalho. À proporção que se fortalecem e crescem dispensam naturalmente a intrusão dos governos, cujo papel restringe-se por fim em unicamente assegurar-lhes o próprio engrandecimento.

Esse grande ideal político será realizado.

Não é uma utopia; garante-o vantajosamente todo o maravilhoso espetáculo da evolução humana.

Compreendemos, porém, toda a distância a que nos achamos dele; e embora com a maior tristeza, confessamos que a sociedade brasileira não pode dispensar, tão cedo, para as questões mais simples do seu desenvolvimento, o prestígio oficial do governo.

Temos como em extremo trabalhosa a missão do Estado, nos tempos de hoje; não lhe basta dedicar-se exclusivamente à garantia da ordem, é-lhe indispensável que, de alguma sorte, exorbite, estabelecendo os primeiros elementos do progresso.

Filhos de uma terra tão vasta e tão rica, pode-se dizer que nunca precisamos viver através de um contínuo apelo a própria atividade; nunca necessitamos travar com o meio cosmológico estas admiráveis lutas, em que se retemperam tão bem a índole de todos os povos; a concorrência vital, graças à extensão do território, aliada a uma população rarefeita, nunca se constituiu como um motivo da seleção do nosso espírito, de acordo com as condições exteriores, de modo a nos dar esse conjunto de tendências e aspirações comuns, que definem qualquer nacionalidade.

É fácil a qualquer dizer, graças à maravilhosa plasticidade do estilo amoldado a todas as causas, que somos já uma nação, com aspirações bem definidas de futuro, em harmonia com uma exata compreensão do passado.

Neste caso, o governo poderia verdadeiramente se restringir à missão, menos trabalhosa, de mero condensador das energias sociais e guarda da estabilidade geral.

A verdade, porém, é que, ante o assalto da crise atual, nos sentimos inermes e fracos, fazendo-se precisa, para os mais simples fatos de economia, a ação do Estado; isto desde as questões rudimentares da alimentação e da higiene às mais sérias.

O que o Estado tem feito até hoje, além da função dificílima de velar pela segurança comum, é, estimular, substituindo-a muitas vezes — essa tão fecunda iniciativa particular que somente agora se esboça entre nós, com probabilidades de desenvolvimento.

A iniciativa oficial tem absorvido mesmo as grandes manifestações do sentimento, fazendo-se indispensável o seu influxo para que não se olvide tudo o que há de verdadeiramente grande na nossa existência histórica.

Precisamos, porém, libertá-lo dessa duríssima tarefa, libertando-nos dessa tutela generosamente concedida.

Por mais necessária que pareça a proteção oficial, ela é efêmera por isto mesmo que toda a força dos governos promana das sociedades.

Faz-se necessário portanto que se iniciem desde já todos os passos para uma maior independência de vida e comecemos afinal a auxiliar o governo ou em vez de, como até hoje, recebermos dele uma proteção constante e incondicional, só assim poderemos seguir com as demais nações para esse ideal que enobrece e dignifica tanto a política moderna.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 1o. de maio de 1892

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Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa…

Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.

Abandonam os cérebros dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos — e aqueles exércitos formidáveis, que a todo instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira…

Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo, que trabalha e que sofre — sempre obscuro —, entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.

O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a Idade Média, à sombra dos castelos sob o guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele — a matéria-prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos — transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história — pensa!

Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas — para trazer, às costas, até os nossos dias — a burguesia triunfante.

Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito intentam-lhe a regeneração — desde os exageros de Proudhon às utopias de Luís Blanc —, ele inicia por si o próprio alevantamento.

E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo — cruzar os braços.

E que triste e desoladora perspectiva esta — de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho — e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras — num tenebroso bocejo…

Se entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma idéia vencedora.

O quarto estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.

Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.

Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável — quer se defina por um caso notável de histeria — Luísa Michel, ou por um caso vulgar de estupidez — Revachol.

Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema — e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos homerulers o espírito robusto — é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.

Realmente, a vitória do socialismo bem entendido exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria — moça e rica — chegamos às vezes a não o compreender — transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática, além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina…

Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.

Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.

Pela segunda vez se patenteia, na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum — e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas, ou se esta admirável cruzada para o futuro.

Seja qual for este regímen por vir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer, ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Aug. Comte — ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.

Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despenhar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.

Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido — o Exército — abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 8 maio 1892

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Afinal, nesta constante vibração nervosa, da qual surge a maravilhosa dinâmica das ideias, vão-se-nos os dias, cheios dos deslumbramentos e dissabores da luta…

Os rudes operários que esgotam a musculatura, batalhando a matéria, têm as intermitências do descanso e se refazem amplamente.

Mas nós, que nos havemos uns a outros, tacitamente, estabelecido o dever de seguirmos o deambular incoerente de uma sociedade — a pique ainda dos últimos abalos políticos — e contraímos diariamente as vistas para o apercebimento de fatos, que aparecem as mais das vezes ilógicos, só nos alentamos ou por meio de uma abstrata contemplação do futuro, consoladora e feliz, ou procurando no presente uma zona mais calma, onde por momentos se possa o espírito despear das preocupações habituais.

Felizmente, em falta de assunto urgente, podemo-nos voltar hoje para mais calma ordem de ideias, sugeridas por uma local desta folha, de ontem, onde se anuncia a próxima aparição de dois livros de versos.

São verdadeiramente dignos de aplausos os que colaboram desta sorte no alevantamento comum, sobretudo para os que compreendem que é pela arte, de uma maneira geral, que se pode formar a mais pronta, a mais ampla e a mais segura idéia de superioridade afetiva e mental de um povo.

A ciência, altamente cosmopolita, define na história as épocas sucessivas de elevação humana; o seu caráter de universalidade é tal que é vulgar o fato de notáveis descobertas feitas simultaneamente em pontos diferentes: define de um modo geral o espírito humano — competindo a arte mais especial, definir o espírito das nacionalidades.

É por isto talvez que um grande pensador moderno, através da claríssima argumentação de que usa, demonstra limpidamente que se faz indispensável aos seus cultores a iniciação científica.

Isto porque qualquer produção de um verdadeiro artista, digamo-lo ousadamente, traduz antes a mais alta forma do instinto hereditário da raça que o da própria conservação — pelo encarnar eternamente no mármore ou engastar perenemente no seio fulgurante de um poema, num notável altruísmo, o que lhe existe de verdadeiramente notável em torno, num grande esquecimento de si mesmo.

Preso, vinculado ao meio em que vive, o verdadeiro artista como que tem a passividade de um prisma, através do qual se refrata — com os cambiantes que imprime-lhe o seu temperamento — a grande alma humana, com as suas múltiplas e desencontradas feições.

Para atingir porém a esse ideal, para que os seus quadros, ou os seus versos admiráveis, possam de algum modo traduzir assim o estado psíquico de uma época, avalia-se claramente que se lhe faz prevista essa elevação grandiosa da consciência, baseada na compreensão exata do seu tempo.

As sociedades, em sua marcha eterna, mudando continuamente, assumindo sempre novas feições, deixam sempre após, testemunha-o a arte antiga, representando-lhes a fisionomia anterior, um povo imortal de estátuas falando a majestosa linguagem dos poemas…

É fácil de compreender, portanto, de quanto brilhantismo precisam dispor esses que se destinam à difícil função de retratarem-nas, em todas as suas modalidades.

A poesia, a escultura, a pintura e a música são para Spencer as flores da civilização e o eminente pensador pondera judiciosamente "que se não deve abandonar a planta, a instrução científica, para cuidar antes da flor, que neste caso brotará degenerada."

Tudo quanto se agita e vive e brilha e canta na existência universal obedece a uma vasta legislação, para a qual ascende infatigavelmente o espírito humano, em busca da verdade; tem pois razão o ilustre mestre, impondo ao poeta, além da cômoda feição contemplativa, a subordinação às leis naturais, sem a qual, por um desastroso predomínio de subjetivismo — ele descamba aos partos monstruosos dos temperamentos enfermos.

Evidentemente não quer isto dizer que se vá metrificar os teoremas da Geometria ou os princípios da Física; o que a ciência faz é sobrepor, para iluminá-la ainda mais, a fulguração da consciência à afetividade do artista; estabelece um contato mais íntimo entre ele e a existência geral, de modo que, com maior conhecimento de causa, nos transmita tudo o que nela exista.

Tem ainda a ação altamente moralizadora, de enfraquecer o notável egoísmo dos sonhadores, que passam pela vida absorvidos em si mesmos, numa contemplação singular das próprias emoções…

Parece-nos que já vai longe o tempo em que se pregava a ação esterilizadora do estudo sobre o sentimento.

Goethe pelo fato de ter sido um naturalista tal que, juntamente com Lamarck, entreviu o darwinismo antes de Darwin — é também imortal como poeta.

Que a nossa arte balbuciante se alevante vigorosa, amparada nas grandes leis da existência universal, de que é a nossa pátria um majestoso palco, é o nosso mais ardente desejo, ao saudarmos os sonhadores que surgem.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 11 maio 1892

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Embora à saciedade se haja por inteiramente inócua a inumação de cadáveres, nem por isto a cremação deixa de ser uma maneira mais decente e mais feliz — se é possível — para o término da vida.

Não vale a pena o enumerar-se as opiniões que se têm a este respeito degladiado, inúmeras e controvertidas, de proeminentes higienistas; o citarem-se todos os devaneios nebulosos dos filósofos, cujos espíritos se afundaram nas impérvias sombras da morte, adquirindo quase todos, como Lessing, um "tédio doloroso", como único e tristíssimo resultado.

Para nós é perfeitamente indiferente — acerca deste último ponto — que sejam as covas as entradas para o nada ou os escuros penetrais das fulgurantes regiões há tanto prometidas: é tão formosa e tão grande esta existência universal, e tão estreita a vida humana para compreendê-la, que não precisamos, num arranque de subjetivismo, transpor-lhe as barreiras, para esse intangível sobrenatural, aonde a razão se esvai torturada pelas maiores quimeras.

Que a alma vingue sobre os destroços da matéria, como querem os espiritualistas e infinitamente persista, ou, como quer o materialismo, se extingua; em qualquer dos casos sempre é melhor e menos fúnebre a rápida combustão orgânica, sob uma temperatura altíssima de platina, do que essa aterradora e lenta decomposição, operada pelos microorganismos — esses extraordinários analistas da matéria —, que lentamente a diferenciam e preparam para novas funções na vida…

Lemos há pouco tempo, algures, uma curiosa notícia sobre a fauna medonha dos sepulcros e é impossível sofrear-se o espanto e repugnância, que nos assaltam ante os sinistros coleópteros e dípteros, que durante dois ou três anos se repastam de sânie.

A ciência tem dessas páginas que pedem a assinatura de Hoffmann.

O professor Brouardel, que tentou esta horribilíssima empresa, armado de uma grande frieza de verdadeiro sábio, chegou a descortinar tendências e costumes nestes sombrios animais; e fala-nos da preferência de uns como a Phora aterrima pelos corpos magros e da predileção notável dos Risophagos pelos organismos gordos; e, prosseguindo na dolorosa observação, mostra como alguns, atraídos pelas exalações, furam a terra e, penetrando as estreitas frinchas dos esquifes, vão procurar — na sombra, a misérrima iguaria.

Para o mais fervoroso crente, como lhe deve ser profundamente doloroso o saber que enquanto as almas dos seres que lhe aformoseiam a vida sobem para os céus, nas feições queridas, descem ao mais hediondo destino quando se podem extinguir, volatizadas, no seio do que de mais encantador existe na natureza — a luz?

E os pensadores modernos, os que sistematizam essa nobre, essa necessária e essa elevadíssima veneração pelos mortos, qual melhor destino do que este podem para eles desejar, contrastando com o anterior, aonde os seus despojos últimos têm a pisada indiferente do caminhante, e são passíveis da curiosidade intensiva do sábio, medindo-lhe as apófises?…

Decididamente não há vacilar entre um e outro caso; ademais a cremação satisfaz a todas as crenças; os cemitérios mesmos não perderão o doloroso encanto, a tristíssima poesia que os circunda, pelo possuírem, ao revés da terra apodrecida dos túmulos, as urnas funerárias, guardando as cinzas purificadas dos mortos.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 15 maio 1892

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Ainda bem que nos aprestamos para a próxima Exposição de América do Norte.

Ainda bem — porque mais do que a satisfação do nosso orgulho de brasileiros, precisamos satisfazer o nosso imenso orgulho de americanos.

Parece que à proporção que se expande o espírito humano as fronteiras recuam; como que estalam e se abrem não podendo no âmbito estrito abarcar-lhe a crescente magnitude.

É por isto, certamente, que os filhos do novo mundo sentem e compreendem que a América é, na ordem moral, o mesmo que na ordem física — a pátria comum, a maravilhosa síntese de todas as pátrias…

As nacionalidades européias, que surgiram da ruinaria do império do Ocidente, derruído sob o frankisk dos bárbaros, trouxeram, por uma hereditariedade refratária aos mais generosos ideais da civilização, até ao presente, os velhos ódios que tão despiedados cindiram as raças conquistadoras, no início da Idade Média.

Aquelas fronteiras erriçadas de canhões, aquelas sociedades que se isolam, acolhendo-se, cada uma, num círculo rutilante intransponível de espadas — indicam à saciedade, que esta consciência moderna tão elevada e tão nobre, ali está num perene estado de sítio.

Como que no seio da Europa pisa eternamente o cavalo de Átila.

As mais altas criações do espírito humano partiram dela e ela assistiu o esboço e a constituição de todas as ciências — mas o seu seio revolto e pisado pelas marchas dos exércitos é verdadeiramente impotente para criar, completas, as grandes aspirações dos seus grandes pensadores.

A América afigura-se-nos predestinada a realizá-las.

Tomou à velha civilização a vasta base subjetiva das ciências e sobre ela erigiu, majestosa e fecunda, a sua existência industrial.

Daí, talvez, o seu cosmopolitismo; as ideias não têm pátria — e aparecendo, quando elas já eram dominadoras, as sociedades americanas, antes de criarem uma tradição guerreira, receberam em comum o seu influxo admirável e como que se irmanaram.

Decorre, por certo, deste fato este sentimento notável e novo, próprio aos filhos das diversas regiões do Novo Mundo — qual o de generalizar a pátria, medindo-a pelo enorme estalão dos Andes e das Mountains Rock, amplificando-a de um a outro pólo…

Realmente, se esta política americana, toda civilização e paz, ideada por Monroe, não é uma utopia irrealizável e se de fato, embora sem a base orgânica de um código fundamental comum, a vasta confederação das repúblicas americanas, graças à uniformidade dos sistemas políticos, é um fato de ordem moral, sobranceiro às fronteiras — podemos compartilhar das glórias que advirão à América pelo condensar na sua metrópole comercial as maiores criações do esforço humano.

Pela nossa parte, é dolorosamente certo que pouco contribuiremos para realçar-lhe o brilho e a notável opulência. Abandonamos ainda ontem o marasmo monárquico e somente agora a nossa atividade é livremente plebiscitada nos comícios da indústria.

Fomos os últimos a incorporarmo-nos à pátria americana.

É isto, porém, um motivo para que sejamos entre os primeiros a compreendê-la e elevá-la.

A Exposição de Chicago pode bem ser a prefiguração do que faremos em breve. E, se assim for, se isto se der, se eficazmente emulados pelos do norte os sul-americanos se alevantarem tanto, deixará talvez de ser um sonhador ousado, alguém que idealize a constituição final da pátria americana.

Realmente o Novo Mundo assume ante o antigo uma feição mui diversa a que antes este teve, do X ao XV século, o civilização do Oriente. Naquela idade, toda a Europa era um perene ansiar pelas maravilhas que a imaginação bizarra dos peregrinos lhe criava, nas paragens pelo Ganges.

As gentes ocidentais, olvidando todos os elementos de riqueza que possuíam, voltavam-se de todo para as terras de onde surgia o sol, como se trouxesse de lá todos os seus deslumbramentos. Daí as penosas deambulações para as ignotas paragens, veladas nos mistérios do bramanismo.

E quando, após o domínio dos mares, se aproximaram os dois mundos e se desvendaram os arcanos da Índia — todas as cobiças se satisfizeram largamente, mas o espírito humano espantou-se ante uma filosofia estranha, costumes desvairados e sanguinárias religiões!

Por uma circunstância notável, porém, um genovês ousado, nessa época, trouxe das suas viagens, ao revés de galeões cheios de ouro — um novo mundo. Como para compensar todos os males que originaria o enlace da anarquia medieval com as riquezas da Ásia — oposta a ela, nas bandas do Ocidente, surgia a pátria universal da indústria e do trabalho.

A Europa volta-se hoje para ela, como no século XIII para o Oriente.

O espetáculo é, porém, muito outro. As novas nacionalidades ensinam às velhas como se vencem as campanhas da paz, e mais que as riquezas da Índia dão-lhes os prodígios da indústria e o exemplo de uma grande solidariedade.

Ainda bem, pois, que pela nossa parte nós aprestamos desde já para colaborarmos num fato, que tão bem traduz o nosso alevantamento.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 18 maio 1892

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O pedido de habeas-corpus, formulado agora, às portas do desterro, pelos degredados — degrada-os.

Entristece-nos a detalhada notícia que a este respeito lemos no Jornal do Comércio de 15 do corrente.

O rebelado vencido não pede; subordina-se à fatalidade das circunstâncias, que pelo lhe terem sido criadas por um ato de ousadia, não se podem afastar por um ato de humildade.


O demônio de Milton — é majestoso, é verdadeiramente grande e magnífico, porque ao rolar das alturas iluminadas, numa queda infinita, espalha pelos mundos os haustos febricitantes da revolta e torna para Deus, ao invés de um gesto mendicante, um incendido olhar de cólera indomável.

Embora esse supremo apelo de oprimidos se dirija à majestade da justiça e paire a justiça, soberana, sobre as cisões partidárias, os órgãos que as exercitam são constituídos pelos que compõem a ordem vencedora e está na dignidade do vencido o voltar-lhe obstinadamente o rosto, se não repudia o passado e não confessa que errou.


Ademais diz-nos a História exuberantemente que o degredo, o exílio, tem de algum modo sido um poderoso elemento de propaganda; ao invés do que se dá fisicamente, o afastamento aumenta a estatura do exilado; pelo afastar-se da sociedade como que ele se aproxima do futuro; é uma individualidade posta em evidência de uma maneira notável e por isto mesmo que o sentimentalismo é a base comum da índole de todos os povos, a auréola de mártir que lhe circunda a fronte vale pelos mais poderosos argumentos e lhe é um começo de vitória.

O desterro é de algum modo a exemplificação prática da sua força; quer dizer certamente que a pressão do meio não é bastante rígida para quebrantar-lhe a ação e inúmeros são os exemplos da maneira por que esta se avoluma poderosa e alta, para poder ser percebido pela pátria longínqua…

Além disto o exílio foi sagrado na História — o castigo ilustre por excelência, castigo que é de algum modo um prêmio indireto às grandes energias, que por muito poderosas, desequilibram as sociedades.

Nas épocas mais bárbaras da maior antiguidade, os governos insolavam os cidadãos ilustres, quando podiam extingui-los de vez, como que por uma presciência do futuro, em função dos seus grande ideais, das suas extraordinárias utopias. Ele tem sido o indispensável coroamento das maiores existências; é como que uma larga porta aberta para a História, e, fitando o conjunto humano, vemos transpô-la um admirável grupo de imortais.

Não o entendem assim, os nossos revolucionários. Ao se aproximarem das barreiras do exílio — em vez da serenidade estóica, de levantarem altivíssima a consciência sobre todas as agruras — fazem uma coisa banal, mas para nós inesperada — explicam-se e reclamam… Por maior, por mais necessária que seja a independência dos poderes, eles harmonizam-se nas medidas extremas que tendem à salvação da ordem.

No caso atual, o poder judiciário, pelo absoluto silêncio, sancionou a ação executiva.

Por que lamentável incoerência, pois, se dirigirem os revolucionários, aos que tacitamente se alistaram entre os que os oprimem?

Fez mal entretanto o juiz seccional do Pará, denegando o habeas corpus impetrado; por isso mesmo que o pediram os desterrados mostram que não merecem o desterro; são inofensivos e fracos — afastaram todas as culpas numa longa série de considerandos; e a sua volta teria para nós o valor de salvar toda uma tradição secular de constância inabalável, que caracteriza o revolucionário vencido, no desterro.

Nesse balanceamento da sociedade, em que as posições se mudam numa constante reação de contrastes — é bem possível que sigamos um dia para onde eles hoje não querem seguir — e se assim for, que não tenhamos uma reminiscência, de deplorável fraqueza sequer nos lugares aonde deve imperar a mais alta resignação.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 22 maio 1892

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Há seis anos desoladora nova perpassou a terra: — extinguia-se em Paris o poeta extraordinário, que se nacionalizara em todas as pátrias, pelo condensar melhor do que qualquer outro talvez, no amálgama ideal de bronze e ouro de seus versos eternos, essa síntese afetiva continuamente crescente, que se espelha em todas as literaturas, e é o ponto de apoio de todas as nacionalidades e a garantia mais sólida de todas as civilizações.

Realmente, se qualquer literatura define uma nacionalidade, pelo se basear inteira no sentimento hereditário da raça e a subordinação às tradições nacionais, Vitor Hugo, o genial e extraordinário romântico, é mais do que o poeta da França; pertence ao nosso século — porque o que todos nós sentimos, palpitando veemente, fulgurante e sonoroso, através dos seus alexandrinos imortais, não é a alma de uma sociedade, mas sim todo sentimento humano!

O sentimento da pátria, a inexaurível fonte dos maiores lirismos, em torno ao qual têm vivido todas as musas, não lhe bastou à desmedida afetividade e vemo-lo ligando-o ao sentimento maior da solidariedade humana — intentando assim, por uma intuição de vidente, esse consórcio final da Arte com a Filosofia, a que chegaram também os pensadores modernos, porém através de longas, penosas e severas meditações.

É por isto talvez que ele não foi um clássico; o classicismo, que se pode definir como uma veneração exagerada pelo passado, quebrara por largo tempo a continuidade do sentimento humano — restaurada felizmente na Idade Média pela Renascença e no século XVIII pelo Romantismo — e não podia por certo satisfazê-lo.

Nascendo com o seu século, parece ter-se indissoluvelmente ligado à época extraordinária das maiores revoluções da filosofia, da política e da arte e intentado a tarefa de refleti-las todas.

Assim é que através dos seus livros notáveis vemos além do estudo exagerado das paixões, defluindo — ora um vago e indefinível misticismo, uma filosofia singular — a idealização maravilhosa de um deus sem altares, cabendo melhor nos corações do que nas catedrais; ora um formidável e impenitente delírio revolucionário e vingativo, explodindo na orquestração selvagem e maravilhosa dos Castigos…

A revolução ocidental, que é inegavelmente o melhor trabalho dos Enciclopedistas — pusera no seio de todos os povos os gérmens de regeneração política e em todos os cérebros, os primeiros elementos da regeneração filosófica.

Era preciso, porém, alguém que idealizasse essa existência moderna, que dela se derivou, alguém que, exagerando embora as verdades da filosofia e da política, as interpretasse à humanidade, sob a forma atraente de utopias e de ideais deslumbrantes.

Esta função foi admiravelmente exercitada pelo homem extraordinário, de cujo nome nos lembramos hoje.

Não nos damos à tarefa, ademais dispensável, de enumerar-lhe todas as fases, em sua translação pela terra, nem todas as grandezas de seus sonhos, que dimanam, multiformes, das páginas tranq uilas das Contemplações às páginas explosivas do Ano terrível. Temos, além disto, unicamente o objetivo de impedir que passe despercebido, hoje, um nome, sobre o qual parece que se começa a fazer um esquecimento além de injusto — ingrato.

Embora reconheçamos que ele não é o primeiro homem deste século — não nos inibe isto de venerarmos profundamente ao sonhador extraordinário que tão bem idealizou a fraternidade humana — que será amanhã uma conquista de filosofia e tão bem preconizou — a república universal — o que será a maior conquista, amanhã, da política moderna.

E.C.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 5 jun. 1892

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Não há filósofo apedrejado ou político vencido que, após atravessar as asperezas de uma propaganda infecunda, não se volte, no último estádio da vida, para a mocidade, num supremo apelo — tornando-a legatária exclusiva das suas aspirações mal compreendidas ou paralisadas pela inércia inconsciente do meio.

Ela é a representante mais próxima do futuro — e, quase sempre, surge como que predestinada a encarnar todos os ideais dos gênios incompreendidos, Daí o constituir-se a sua derradeira esperança.

Parece, realmente, que à energia moral dos velhos pensadores faz-se indispensável a aliança com o sentimento vigoroso das gerações que surgem, sem o qual ela deperece, estéril e improdutiva.

Esses que passam pela vida, alheios a si mesmos, perdidos numa abstrata contemplação da existência geral, nem sempre como Newton, presenciam a vitória do próprio pensamento; estiolam-se, clamando num deserto singular de multidões indiferentes; nem sempre vão, como o pensador britânico, numa Westminster opulenta, nobilitar as sepulturas dos reis, e, para que todos seus esforços não se extingam, faz-se-lhes preciso prender às suas existências, que acabam enfraquecidas, as existências que começam vigorosas.

Nos tempos maus das crises, em que a dispersão dos sentimentos e das ideias simboliza a própria decomposição social, é ainda a mocidade, por um notável contraste com a sua índole sonhadora e inquieta, a classe conservadora por excelência, guardando, intactos, todos os princípios.

É preciso porém que a mocidade não seja — criança.

A puerícia é mais natural aos velhos do que aos moços. Por isto mesmo que o sentimento predomina nestes, as suas ideias têm um estimulante mais enérgico e devem erigir-se — vigorosas e sérias.

Na fase atual sobretudo faz-se precisa a mocidade brasileira, como que uma grande austeridade de velhos.

Enfrenta, seguindo para o futuro, uma sociedade convulsionada — e já que se lhe faz imperiosíssimo o dever de não isolar às lutas que a cindem, que as iniciem com a palavra alevantada dos fortes e não com os balbucios e devaneios infantis…

Lastimamos não encontrar essa atitude na Mensagem dirigida pelos acadêmicos baianos ao mestre ilustre por ocasião de ser desterrado.

Ninguém certo ousará condenar sentimento que a criou; foi elevadíssimo e generoso, infelizmente porém mui pouco aproveitado.

A mocidade do Norte perdeu uma magnífica ocasião de fixar, perenemente, num documento político, toda a grandeza da sua alma ardente e fulgurante e que é como que modelada pelos firmamentos vastos do equador, puríssimos, cheios de sol, vibrando imensos na gestação prodigiosa da luz…

A ocasião era entretanto propícia para isso; não quis porém e ao revés da palavra severa de pensadores e combatentes ela circundou a desventura do mestre, com o lirismo rudimentar, como mensagem exclusivamente sentimental, cuja essência extratamos:

"Jovens e acadêmicos, longe do torrão natal, soluçando beijos e carinhos maternais, fomos dolorosamente impressionados quando até nós chegou a notícia da dupla ofensa que sofríamos, e protestamos desde logo manifestar-vos a cruciante dor que nos acabrunha.

"Sim, manifestar-vos para que todos saibam que não se maculam impunemente as pétalas queridas do coração da mocidade.

"Manifestar-vos para que não se julgue que desapareceu do seio da juventude a mais linda e delicada virtude, aquele que nasceu de um beijo trocado nos lábios purpurinos de dois serafins: a Gratidão. Sim, se tivéssemos abandonado este honroso posto, amanhã, os pósteros veriam que o defensor impávido e altaneiro da mocidade tinha sido desprezado num momento crítico, quando precisava rever em palavras consoladoras o que tinha dado em sacrifícios.

"Não; os moços não mentirão aos seus princípios nem deixarão que se ponha em dúvida a impolutação de seus caracteres.

"Baianos, seríamos degenerados se, na hora angustiosa da vida de um coestaduano, não corrêssemos a animá-lo já que não podemos mostrar o lugar que o espera no peito da pátria.

"Seríamos indignos da Bahia se não procurássemos acariciar a intemerata cabeça baiana que se sente pequena para conter o peso de tão grandes e soberbas ideias.

"Não, baiano audaz, nós estaremos ao vosso lado, e se cairmos glorificados na luta o paleontólogo encontrará mais tarde muitos esqueletos abraçados a um só, e saberá que foi o mestre baiano que tombou com seus discípulos."

Pusemos aí grifos a esmo, quase.

Seguem-se meia dúzia de linhas, que nada mais adiantam.

Sem fazermos comentários — é preciso entretanto convir que tudo isto está muito longe de definir aquela mocidade brilhantíssima do Norte, aonde o talento é quase tradicional e de onde segundo uma frase que se vai transformando em provérbio parte a luz!

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 12 jun. 1892

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Decididamente vai-se tornando indispensável uma locução nascida ontem e já velha pelo uso — esta maneira de designar fin de siècle a todas as extravagâncias mais ou menos espirituosas, mais ou menos elegantes que expluem de todas as sociedades, nesta extrema velhice do século mais fecundo e mais brilhante que tem havido. Por uma circunstância notável, o século XVIII tão ilustre e tão nobilitado, pela Enciclopédia, teve os derradeiros dias, delirantes e tragicamente extravagantes; a metafísica, lentamente acumulada no espírito dos filósofos, expandiu-se amplamente no delírio extraordinário das revoluções políticas, convulsionou todos os costumes e todas as crenças e definiu-se vitoriosa, criando politicamente 1889 e filosoficamente — o culto da Razão.

Ela define afinal toda aquela época agitada; e o historiador de talento tem na filosofia uma base magnífica, para caracterizar o término agitado do século de Voltaire.

Qual, porém, o espírito bastante robusto para fazer a diagnose de um século de trabalho, cheio das maiores conquistas da inteligência, do sentimento e da atividade humana, mas cujos derradeiros dias disparatam de toda a sua imensa história?

Está bem visto que não intentamos fazer a sua crônica gigantesca; sugeriu-nos estas linhas a leitura de uma acabrunhadora notícia, num jornal parisiense, a Petite Presse.

Até pouco tempo éramos nós, filhos da raça latina, que aqui, na França, na Itália ou na Espanha, escandalizávamos a grande era trabalhadora, com os desvarios do nosso temperamento irrequieto e extravagante — como elemento conservador alevantava-se a sólida raça saxônica, fria, operosa e sistemática, seguindo para o futuro com um grande respeito às tradições do passado.

Deplorável nova, porém, diz-nos que a tendência universal, fin de siècle, de indiferentismo doentio, parece ter-lhe assaltado a rígida e austera consciência.

Relata-nos o confrade parisiense o grande embaraço em que se acha uma associação de antigos militares alemães.

Patriótica e guerreira, a marcial associação inaugurou, em Berlim, grandiosa estátua do velho imperador, do homem extraordinário que fez a Alemanha e descobriu Bismarck — Guilherme I.

Este movimento fora objeto de uma subscrição cujos organizadores tal confiança alimentavam de sucesso que fizeram-no a crédito, dando como garantia o espírito patriótico da velha raça guerreira. Infelizmente porém foram diminutos os subscritores.

Debalde apelaram os patriotas para o patriotismo; por mais intensivo que se tenha feito esse apelo, não conseguiu a metade da quantia para pagar os artistas e as demais despesas da empresa. Desta arte apresenta-se um dilema assustador — ou se consegue a quantia necessária, ou o martelo do leiloeiro percutirá escandalosamente a efígie do herói de Sadowa e a sua majestosa figura de bronze, destinada a pertencer a uma nacionalidade, irá pertencer a quem mais der!


E a folha parisiense termina com uma ironia cruciante, com essa ironia dolorosa do francês, que não esquece Sedan: La carte à payer est lá

Que magnífico exemplo para nós: como nos educam as velhas sociedades cheias de tradições e de glórias — nesta quadra que bracejamos como náufragos, assoberbados pelos maiores problemas políticos, para cuja solução devemos procurar elementos mais do que nas paixões dos partidos, no sentimento nacional!

Não nos espantemos, pois, com o que por aí vai; a dispersão dos sentimentos é plenamente geral; o grande século, após viver como um pensador eminente, acaba como um boêmio desiludido; e, presas pela mesma vertigem, marchando sem norte, sem ideias e sem filosofia as sociedades de hoje parecem dizer como os cavalheiros da corte mais dissoluta da história: — Après moi, le deluge!

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 22 jun. 1892

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Infelizmente somos obrigados a confessar que têm motivos de sobra, para os maiores júbilos e alentadora alegria, os que diuturnamente alfineteiam — inofensivos mas perseverantes — a rígida armadura do atual governo.

Por uma casualidade, nimiamente favorável aos minúsculos Bayards da oposição, ele está a estas horas entre dois fogos. Mato Grosso, apesar de vastíssimo, já estava afinal exaurido para a exploração política; a problemática, a quase ideal república transatlântica, volatizava-se, como um sonho, e mal se constituía base a essa retórica estrugidora, através da qual reverbera a paixão oposicionista, que se nos afigurava prestes a desaparecer, esvaída e exangue, à mingua de desastres; as jeremiadas, calculadamente entoadas em torno das agruras e sofrimentos dos desterrados, iam-se também, e a pouco e pouco, deperecendo, extinguindo, ante outras coisas mais urgentes e mais sérias. Ameaçavam-nos já alguns prenúncios de ordem, solidamente estabelecida, em uma certa estabilidade no prestígio admirável das leis.

Há, porém, um deus para eles; deus que não é por certo inofensivo e benfazejo, mas misterioso e assustador, como os que apavoram as gentes indianas; espécie de Shiva impiedoso, que lhes creia infatigavelmente a sombra protetora dos desastres, a aliança perene com todas as calamidades.

Realmente, a estas horas, deve haver um vasto restrugir de cantos festivos e ovações delirantes, nos arraiais dos que soem bater-se unicamente abroquelados pelas ruínas da pátria.

O governo acha-se entre dois fogos; agita-se o Rio Grande, Pernambuco agita-se; a conflagração do Norte responde à conflagração do Sul; os homens de 1817 acordam aos brados dos valentes de 1835; tudo isto pode ter conseq uências gravíssimas. A desordem no seio da pátria é correlativa com a desconfiança do estrangeiro. Em compensação porém o governo pode oscilar, vacilam as posições — e por sobre toda essa ruinaria anelada avulta uma adorável perspectiva de lugares vagos, de posições a ocupar…

Deve haver, pois, a estas horas, no rez-de-chaussée da política nacional, um grande restrugir de contos, festivais e ovações delirantes.

Toda esta alacridade há de passar, porém, rapidíssima, efêmera, como tantas outras. Demais, ela não nos assusta; a energia dos governos faz-se muitas vezes no seio agitado das revoltas; a agitação rio-grandense, porém, inegavelmente a mais perigosa, não se generalizará.

A vitória de Júlio de Castilhos, vitória que com a maior sinceridade aplaudimos, não só está muito longe de traduzir a reação vitoriosa contra o atual estado de coisas, como é uma sólida garantia da paz. É preciso que não se envolva, em paralelos criminosos, o moço ilustre que é a mais alta esperança do Rio Grande, e que é verdadeiramente um forte — na triste série de governantes depostos, frágeis e sem ideais.

Para qualquer, rudimentarmente conhecedor da política do Sul, a sua vitória exprime, sobretudo, a derrota de um partido que, nas condições atuais de nosso país, pode ser considerado o inimigo comum — o gasparismo. Sob este ponto de vista, o advento dos castilhistas é o maior benefício que se poderia fazer às instituições republicanas, levantando-as, vitoriosas, no mesmo lugar em que parece terem-se asilado os últimos restos de esperança na restauração monárquica. Tão compenetrado disto parece estar o governo que, tendo no Rio Grande a metade do Exército, e podendo, sem violar a Constituição, que prevê o caso de agitações nos Estados, intervir — guarda a mais inteira, a mais completa neutralidade, não perturbando pelas armas a marcha triunfal das ideias republicanas naquele Estado.

Iludem-se, pois, mais uma vez, os que batem palmas as agitações que surgem; a do Rio Grande é altamente salutar, a do Norte inteiramente local e insignificante. Não é desta vez ainda que o ideal mazorca irromperá triunfante sobre a ordem desmantelada.

Há por certo, nestes dois acontecimentos, motivos para que se expanda o lirismo oposicionista; de fato, cada um deles pode originar novas e aventurosas explorações; não terão porém outra conseq uência.

Acabávamos de traçar estas linhas, quando um telegrama, acima de toda a suspeição, nos dá a notícia, já esperada, de que o governo de Júlio de Castilhos presta o mais franco apoio à política do governo central.

Decididamente começamos mal e este artigo — felizmente podemos confessar que não têm, absolutamente não têm, motivos para maiores júbilos a alentadora alegria, os que diuturnamente alfineteiam — inofensivos mas perseverantes — a rígida armadura do governo atual.

DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 29 jun. 1892

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É velha entre nós, a campanha contra o positivismo. Se houvéssemos a intenção de enumerar, entre as coisas profundamente tristes destes tempos, tudo o que se tem escrito acerca da nova filosofia, certo esquissaríamos uma Coréia fantástica, feita de toda uma imensa agitação, todo um incoerente tripudiar de filósofos desocupados, de clérigos iracundos e cronistas trocistas.

Renunciamos à empresa: fugimos ao espetáculo espantoso, dessa espécie de psicólogo sabbat de ideias arrevesadas, teorias desvairadas e utopias delirantes, com o mesmo espanto e terror que possuíam as crédulas almas das gentes medievais, ante os bailados demoníacos, que a imaginação lhes criava — na encosta solitária das montanhas ou à sombra silenciosa das catedrais…

Ultimamente erigiram Huxley contra-regra formidando e monótono e incorreto melodrama de maldições — e o eminente fisiologista, cujo espírito, aliado ao de Haeckel, teve lucidez para através dos mais íntimos recessos da matéria descortinar a feição primordial da vida, dando a base física do plasma à complicadíssima e admirável arquitetura da existência universal — Huxley, talvez nem saiba, em seu retiro, na sua grande abstração de sábio, que tem entre nós tão inesperada missão. Imagina-se Turenne, correto, brilhante e cavalheiro — a comandar um esquadrão de tártaros…


Está bem visto que não nos propomos, por demasiado frágeis, à empresa de terçar armas pela religião, positiva, à qual não pertencemos, porque, neste iniciar da vida, um ideal filosófico nos é ainda uma aspiração, destinada a realizar-se mais tarde e definindo a altitude máxima da consciência, surgindo de um amplo conhecimento do mundo.

Por ora seguimos sem Deus, sem chefes; não corremos riscos de revogarmos amanhã o que pensamos hoje.

Nada mais deplorável do que esse viver automático dos que se agitam de pronto, a mercê das teorias filosóficas; preferimos seguir lentamente, na formação desse mundo interior, indefinido e vasto, e que constitui afinal o único prêmio, real e inalienável, de todos os esforços de nossa inteligência e de nossa afetividade.

Temos entretanto pelo genial instituidor da Filosofia Positiva, à luz da qual estudamos, admiração bastante para que nos seja difícil sofrear o espanto ante a maneira por que o impugnam, maneira que não se traduz por um combate, franco e desassombrado, mas que é como um apedrejamento.

É doloroso o quadro dessa campanha intransigente e cega, movida sobretudo pelos que parecem possuir elevação bastante, para compreenderem toda a grandeza do pensador, que foi como o herdeiro feliz de todas as criações da elaboração mental do século XVIII e que, sem exagero o dizemos, traduziu Descartes para o século XIX e instituiu a síntese subjetiva.

É realmente inexplicável tamanho combate contra o filósofo eminente cujo maior crime parece estar no aniquilamento da metafísica; cuja maior falta consiste em ter nobilitado a concepção social do conjunto humano — substituindo aos intermediários subjetivos, imaginosos e intangíveis, que aquela estabelecia entre o mundo e o homem, a noção altamente filosófica da Humanidade.

Por uma circunstância notável, a serenidade imperturbável e até certo ponto altiva, do pequeno grupo de positivistas, contrasta visivelmente com todo o açodamento impugnador. Não vão à imprensa, não vão às tribunas; trabalham, lutam e pensam — alheios a todo o esgotamento inútil e à ação dispersiva das polêmicas estéreis.

Daí a simpatia de que são credores — mesmo daqueles que como nós se acham muito afastados das crenças que os impulsionam.

A biografia de Benjamin Constant, por Teixeira Mendes, livro em que se reflete admiravelmente a alma diamantina do fundador da República, exemplifica o que dissemos.

Enquanto acirradamente o imprecavam, através das doutrinas que adota, esse moço ilustre, perfeitamente incompreendido pela massa geral dos seus contemporâneos e que guarda um grande e obstinado silêncio ante todos os ataques — reconstruía, lenta e conscienciosamente, em toda a sua grandeza, a individualidade talvez a mais pura da nossa História.

Será, por acaso, tão perniciosa e condenável a filosofia que intenta e realiza tais empresas?

Pela nossa parte, respeitamos profundamente os que consideram a veneração pelos grandes homens como o "problema capital dos nossos tempos", já que verdadeiramente as grandes individualidades do passado são as que velam melhor sobre o destino dos que seguem, demandando o futuro…


DIA A DIA

"O Estado de S. Paulo", 3 jul. 1892

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Acabamos de ler o discurso do Sr. Epitácio Pessoa. Oração enérgica, brilhante e imaginosa ela define admiravelmente o nosso sentimentalismo agudo e mostra até que ponto a dor augusta dos infelizes é comovedora, refrangendo através de um coração altamente lírico e moço — que posto como um prisma entre nós e os desterrados políticos, empresta a toda amargura que os punge todos os cambiantes, multicores e exagerados, da palavra e da retórica parlamentar.

Afinado pelo diapasão da sentimentalidade rudimentar que nos caracteriza, é bem de ver que as vibrações da sua palavra incendiada, irrompendo do estreitíssimo âmbito do Parlamento, acharam fora um vasto campo para o máximo elastério, dilatando-se por todo o país e imprimindo em todos os peitos o ritmo agitado das grandes emoções.

Nós mesmos que, para garantia do próprio espírito, invertemos em tudo o que se refere aos acontecimentos atuais, a velha fórmula que regula a aquisição das ideias — isto é, nós que, calculadamente, nos habituamos a pensar antes de sentir, embora assim abroquelados, não sofreamos o ímpeto da primeira onda; comovemo-nos e idealizamos uma tela de Rembrandt — erma de luzes, pavorosa e constritora, aonde em meio da desolação dos descampados um grupo de mártires, sob os olhos silentes das estrelas, pairava, tendo sobre as frontes, latente, uma grande noite, a saudade da pátria…

Não há, de fato, tese de mais fácil e ampla explanação do que esta. Orador, ao galgar a tribuna, começa por ter, naturalmente, todo o auditório a seu lado; vai fazer vibrar a nota sempre altíssona do velho sentimento humano: não precisa dominar, prendendo-as aos liames fulgurantes da dialética, as inteligências — dirige-se aos corações; não precisa elevar o assunto — o próprio assunto eleva-se e eleva-o; não necessita quase defender-se — ninguém o ataca; todos afinal o aplaudem, porque iluminada por tal oratória a tribuna não é uma posição de combate, é sagrada — é um púlpito!

Toda essa eloquência porém não resiste a uma reflexão medianamente lúcida: fora desta corrente hipnótica, que circula as tribunas, a consciência reassume o seu império inviolável e reage sobre a ebriez das emoções: o tribuno enérgico, vigoroso e brilhante, comove-nos pintando tetricamenteo destino dos homens, tudo isto porém esvai-se ante a lucidez do espírito bastante que nos mostra o destino da pátria.

É forçoso convir; nós não estamos numa quadra tão fácil e feliz que faculte esse desperdício inútil de emoções a esse constante expluir, gongórico e extravagante, de fraudulento lirismo, que invade os jornais e as tribunas; deixemos de uma vez a exploração pecaminosa de todas as dores e de todas as calamidades; batamo-nos à luz dos nossos princípios, adversos embora, sem o acompanhamento obrigado dessas eternas loas de infortúnio; desse constante salmodiar de agruras…

Mais lógicos, por certo, eram aqueles bardos hebreus da antiguidade bíblica, que iam, nos dias da escravidão e desgraças nacionais, dependurar as harpas nos ramos dos salgueiros, nas ribas agitadas dos mares e quedavam-se após, silenciosas, deixando que os hautos das procelas vibrassem-nas, me longas notas discordantes e doloridas…

Realmente, não há a mínima vantagem nesse constante retaliar de questões quase que meramente sentimentais, numa época em que se faz preciso atender de pronto às necessidades reais e urgentes do país. Se os desterrados políticos, por frágeis e inofensivos, não merecem o exílio, que se lhes dê a anistia salvadora. Para que, porém, tentar ir avante, quebrar lanças por uma absolvição que seria rídícula ante a evidência do crime?

Todos nós compreendemos o infortúnio dos compatriotas desterrados, mas certos de que erraram, temos como um erro maior — um longo tempo perdido com o intuito de negar a falta.

Temos um notável exemplo no Chile. Segundo lemos há pouco, a terra varonil que, simultaneamente com a nossa, atravessou a crise revolucionária, restaura-se, alevanta-se revivescente, quando a ruinaria foi por certo muito maior por lá, visto como a energia poderosa de Balmaceda só se pôde extinguir no centro das batalhas. Entretanto cindem ainda a sua política todas as dissensões partidárias antigas; congressistas e balmacedistas investem-se ainda, em prol de antigas ideias.

A verdade, porém, é que o Chile se levanta do aniquilamento anterior, e isto, em grande parte, porque os chilenos não perdem, como nós perdemos, numa luta de represálias, um tempo utilíssimo em liquidar longamente as questões do passado, antes as imposições do presente.

Nós fazemos o contrário: logo ao assumir o poder o governo foi distraído pelos atos dos que conspiravam; reúne-se o Congresso e distrai-se com os atos do governo. E entibia-se a ação deste último e acirram-se todas as paixões, todos os ódios partidários e aumenta-se ainda mais essa prejudicialíssima desconfiança do estrangeiro, que nos deprime o crédito e reage da pior maneira sobre toda a nossa vida econômica.

Longos discursos sentimentais e vagos, visando as mais das vezes o renome pessoal e uma espécie de imortalidade à la minute, através do aplauso das galerias, eis toda a gestação da minoria.

Os que assim procedem terão ao menos a fortaleza e abnegação bastante para ao nosso lado, amanhã, lutarem para debelar todos os males que por acaso produzam?

Que nos responda o futuro.

"O Estado de S. Paulo", 6 jul. 1892

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Veio e passou, célebre como um sonho, a agitação de domingo, deixando o rastro obrigado de cabeças e vidraças desmanteladas. Não temos porém por tal forma insignificante, em si, a mazorca malograda que não a consideremos assunto para os comentários da crônica.

Naturalmente os que, de longe, dela tiveram notícia, através do laconismo comprometedor do telégrafo, divisaram idealmente toda esta cidade vibrando, convulsionada, tendo no seio a febre devastadora da revolta, o tumultuar ruidoso de massas populares enraivecidas e a ação repressora do governo, defluindo das cargas de cavalaria, enérgicas e prontas.

O quadro não foi entretanto tão dramático e sério, sejamos francos; a exígua fração irridenta e desocupada, da colônia italiana, não teve, para a realização dos planejados desmandos, o apoio dos próprios compatriotas e dissolveu-se ante um simulacro de reação, com imenso desapontamento por parte dos que tão desastradamente a exploraram.

O próprio fato do despedaçamento covarde da nossa bandeira indica eloq uentemente o valor moral da manifestação e dos manifestantes: não foi por certo a colônia italiana que o praticou; os que tal realizaram não têm pátria — pertencem a essa feição amorfa, repugnante e indefinida que constitui a vasa de todas as nacionalidades de tal sorte que quem até ela desce não reconhece o francês ou o alemão, ou o brasileiro ou outro qualquer povo — vê unicamente a escória comum e tristíssima de todas as raças porque só infamam a bandeira de um povo os que não têm pátria!

Não fosse esse fato, fonte da mais justa e ríspida represália, e o meeting de domingo resumir-se-ia nas passeatas inofensivas de alguns turbulentos agitando-se inconscientemente, como marionettes tristemente explorados em sua rude ingenuidade, pelos que calculadamente se abroquelam na sombra.

Nós fazemos justiça, a mais ampla e segura justiça aos compatriotas de um dos soldados mais francos e varonis deste século — Garibaldi; o italiano, herdeiro mais próximo desse espírito cavalheiresco, bravo e brilhantíssimo que tão de pronto caracteriza a nossa raça, certo não se presta à função inglória do arruaceiro vulgar, não sai, anárquica e turbulentamente, às ruas, para tomar mais tarde a fuga banal dos garotos. Estamos seguros, a menos que não admitamos totalmente degenerado o espírito de um povo, que a colônia italiana, a sua maioria honesta e digna, dissolveria a agremiação desordenada, se a não precedesse o governo.

O estrangeiro inteligente e diligente, e de tal nota temos muitos, compreende que não é, entre nós, um hóspede; vem para o seio de uma nacionalidade nova, que se refunde à luz de um ideal político — que se agita numa convulsão fecundíssima, porque traduz a entrada triunfal de novos princípios, tonificadores e enérgicos na alma de um povo; sabe, pois, que entre nós, melhor do que em qualquer outra sociedade, definida e estável, ele pode mais prontamente se adaptar e se nacionalizar, constituindo-se até poderoso elemento étnico para a feição por vir e próxima que assumiremos.

Neste início de vida republicana não são únicas a se transformarem as instituições políticas — senão que é visível a transmudação dos nossos costumes. Todas as lutas políticas e todas as dificuldades do presente têm o valor de reagirem sobre o caráter nacional, que inegavelmente envolve, tendendo a elevar-se ainda mais — e, nessa movimentação maravilhosa, a imigração européia, que desejamos e pedimos, é como uma experimentada e segura mão que nos estende a velha civilização, guiando-nos para o futuro.

Foi por isto que a feição honesta e digna do jornalismo explicou limpidamente o lamentável caso de Santos. Infelizmente sem resultado.

Agora, ante os últimos acontecimentos, pode a maioria digna e consciente da colônia italiana, assumir as responsabilidades que lhe sejam corolários?

Acreditamos que não. Parece-nos que ela, de há muito fraternizada à sociedade brasileira, pelo trabalho e cooperação comum para o nosso progresso, não deve, não deseja e não pode sancionar a insânia dos que criminosamente, transformando em sediciosa a bandeira de uma nação amiga — e irmã nossa pelas mais íntimas afinidades de raça, passearam-na pelas ruas, num alarido deprimente, rompendo à sua sombra a solidariedade com um povo, que os acolhe, obrigando-o à mais desassombrada represália.

Muito menos alimenta-nos qualquer temor de futuras complicações internacionais; fora descrer da atitude da política moderna e sobrepor arruaças sem valor à grande amizade das nações, ou admitir a aparição de notas diplomáticas num caso que modestamente faz jus às notas policiais.


A NOSSA VENDÉIA

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("O Estado de S. Paulo", 14 mar. 1897)


O relatório apresentado em 1888 pelo sr. José C. de Carvalho sobre o transporte do meteorito de Bendegó, os trabalhos do ilustre professor Caminhoá e algumas observações de Martius e Saint-Hilaire fazem com que não seja de todo desconhecida a região do extremo norte da Bahia determinada pelo vale do Irapiranga ou Vaza-Barris, rio em cuja margem se alevanta a povoação que os últimos acontecimentos tornaram histórica — Canudos.

Pertencente ao sistema huroniano ou antes erigindo-se como um terreno primordial indefinido entre aquele sistema e o laurenciano, pela ocorrência simultânea de quartzitos e gnaisses graníticos característicos, o solo daquelas paragens, arenoso e estéril, revestido, sobretudo nas épocas de seca, de vegetação escassa e deprimida, é, talvez mais do que a horda dos fanatizados sequazes de Antônio Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas.

Embora com a regularidade que lhes é inerente passem sobre ele impregnados de umidade adquirida em longa travessia do Atlântico, na direção de noroeste, os ventos alísios — a ação benéfica destes é em grande parte destruída, simultaneamente, pela disposição topográfica e pela estrutura geognóstica da região.

Assim é que falta a esta, talvez, correndo em direção paralela à costa, uma alta cadeia de montanhas — destinadas na física do globo a individualizar os climas, segundo a expressão sempre elegante de Humboldt — na qual refletindo ascendam aquelas correntes às altas regiões aonde um brusco abaixamento de temperatura, determinado pela dilatação num meio rarefeito, origine a condensação dos vapores e a chuva.

A observação do relevo da nossa costa justifica em grande parte esta hipótese despretensiosamente formulada. De fato, terminada a majestosa escarpa oriental do planalto central do Brasil, a serra do Mar, que desaparece na Bahia, diferenciada em serras secundárias, acentua-se de modo notável para o norte a depressão geral do solo de ondulações suaves, patenteando num ou noutro ponto apenas, sem continuidade, as massas elevadas do interior.

Por outro lado, a estrutura geognóstica daquela região, composta em grande parte de rochas dotadas de alto poder absorvente para o calor, determina naturalmente a ascensão quase persistente de grandes colunas de ar, ardentíssimas, que dissipam os vapores ou afastam as nuvens que encontram.

Da concorrência de tais fatos, acreditamo-lo, resulta provavelmente a causa predominante das secas que periodicamente assolam aquelas paragens, estendendo-se com maior intensidade aos estados limítrofes do interior.

Daí a aridez característica, em certos meses, dos sertões do Norte.

Nessas quadras a relva requeimada, através da qual, como única vegetação resistente, coleiam cactos flageliformes reptantes e ásperos, dá aos campos, revestidos de uma cor parda intensa, a nota lúgubre da máxima desolação; o solo fende-se profundamente, como se suportasse a vibração interior de um terremoto; as árvores desnudam-se, despidas das folhagens, com exceção do juazeiro de folhas elípticas e coriáceas, — e os galhos que morreram ficam por tal modo secos que, em algumas espécies, basta o atrito de um sobre outro para produzir-se o fogo e o incêndio subseq uente de grandes áreas.

E sobre as chapadas desertas e desoladas alevantam-se quase que exclusivamente os mandacarus (cereus) silentes e majestosos; árvores providenciais em cujos galhos e raízes armazenam-se os últimos recursos para a satisfação da sede e da fome ao viajante retardatário — cactáceas gigantes que, revestidas de grandes frutos de um vermelho rutilante e subdividindo-se com admirável simetria em galhos ascendentes, igualmente afastados, patenteiam a conformação títpica e bizarra de grandes candelabros firmados sobre o solo… "Então", diz Saint-Hilaire, "um calor irritante acabrunha o viajante, uma poeira incômoda alevanta-se sob seus passos e algumas vezes mesmo não se encontra água para mitigar a sede. Há toda a tristeza de nossos invernos com um céu brilhante e os calores do verão."

Sem transição apreciável, entretanto, a estas secas intensas e nefastas, sucedem, bruscamente às vezes, as quadras chuvosas e benéficas: impetuosas correntes rolam sobre o leito de rios que dias antes ainda completamente secos davam idéia de largas estradas tortuosas, lastradas de quartzito fragmentado e grés duríssimo, conduzindo a lugares remotos do sertão.

E sobre os campos, em cujo solo depauperado vingavam apenas bromélias resistentes e cactos esguios e desnudos, florescem o umbuzeiro (Spondias tuberosa) de saboroso fruto e folhas dispostas em palmas; a jurema (acacia) predileta dos caboclos e os mulungus interessantíssimos em cujos ramos tostados e sem folhas desdobram-se como flâmulas festivas de grandes flores de um escarlate vivíssimo e deslumbrante.

"O ar que então se respira", diz o ilustre professor Caminhoá, "tem um aroma dos mais agradáveis e esquisitos. Uma temperatura de 16° a 18° à noite e pela manhã obriga a procurar agasalho aos que poucos dias antes dormiam ao relento e com calor. As aves que tinham emigrado para as margens e lugares próximos dos rios e mananciais voltam a suas habitações. Foi ali que compreendemos quanto é bem dado aos papagaios o nome específico de festivus. Com efeito, quando chegam os bandos destas aves a gritarem alegremente, acompanhadas de um sem-número de outras, começam logo a se animar aquelas paragens e como que a natureza desperta.

"Então, o sertanejo é feliz e não inveja nem mesmo os reis da Terra!"

Como se vê naquela região, intermitentemente, a natureza parece oscilar entre os dois extremos — da maravilhosa exuberância à completa esterilidade. Este último aspecto, porém, infelizmente, parece predominar.

A este inconveniente alia-se um outro, derivado da disposição geral do terreno. Assim é que de todo contraposta à topografia habitual dos nossos campos do Sul — ligeiramente ondulados e descambando em suaves declives para os inúmeros vales que os rendilham, caracterizam-se aqueles pelas linhas duras e incisivas das fundas depressões, terminando os tabuleiros bruscamente em escarpas abruptas, separando-se os cerros por desfiladeiros estreitos, flanqueados de grotas cavadas a pique…

Com muito maior intensidade que no Sul observa-se ali a ação modificadora dos elementos sobre a terra.

Nos lugares em que a ação mecânica das águas determinando uma erosão mais enérgica faz despontar a rocha granítica subjacente, observa-se quase sempre um fenômeno interessante. Esta última apruma-se, largamente fendida em direções quase perpendiculares dando a ilusão de lanços colossais e semiderruídos de ciclópica muralha, nos quais as lajes enormes dispõem-se às vezes umas sobre outras, com admirável regularidade. Este fato, largamente observado por Livingstone nas baixas latitudes africanas, traduz a inclemência do meio.

Patenteia a alternativa persistente do calor dos dias ardentíssimos e o frio da irradiação noturna de onde resulta a disjunção da rocha em virtude deste jogo perene de dilatações e contrações.


Estes rudes monumentos, aos quais não se equiparam talvez os dolmens da Bretanha, quebram em grande parte a monotonia da paisagem avultando, solenes, sobre o plano das chapadas…

É sobre estes tabuleiros, recortados por inúmeros vales de erosão, que se agitam nos tempos de paz e durante as estações das águas, na azáfama ruidosa e álacre das vaquejadas os rudes sertanejos completamente vestidos de couro curtido — das amplas perneiras ao chapéu de abas largas — tendo a tiracolo o laço ligeiro a que não escapa o garrote mais arisco ou rês alevantada, e pendente, à cinta, a comprida faca de arrasto, com que investe e rompe intrincados cipoais.

Identificados à própria aspereza do solo em que nasceram, educados numa rude escola de dificuldades e perigos, esses nossos patrícios do sertão, de tipo etnologicamente indefinido ainda, refletem naturalmente toda a inconstância e toda a rudeza do meio em que se agitam.

O homem e o solo justificam assim de algum modo, sob um ponto de vista geral, a aproximação histórica expressa no título deste artigo. Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina as suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do império.

A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se, completam-se. O chouan ferovorosamente crente ou o tabaréu fanático, precipitando-se impávido à boca dos canhões que tomam a pulso, patenteiam o mesmo heroísmo mórbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados.

A justeza do paralelo estende-se aos próprios reveses sofridos. A Revolução Francesa que se aparelhava para lutar com a Europa, quase sentiu-se impotente para combater os adversários impalpáveis da Vendéia — heróis intangíveis que se escoando céleres através das charnecas prendiam as forças republicanas em inextricável rede de ciladas…

Entre nós o terreno, como vimos, sob um outro aspecto embora, presta-se aos mesmos fins.

Este paralelo será, porém, levado às últimas consequências. A República sairá triunfante desta última prova.

Euclides da Cunha


(Publicado em "O Estado de S. Paulo", 17 jul. 1897)

Sob este título, há tempos, ao chegar a notícia de lamentável desastre, descrevemos pallidamente a região onde nesta hora, com extraordinário devotamento, batem-se as forças republicanas.

Adotemo-lo de novo.

Infelizmente prevíamos os perigos futuros e aquela aproximação histórica, então apenas esboçada, acentua-se definitivamente.

A situação não pode, entretanto, surpreender a ninguém.

Os tropeços que se antolham às forças da República, a morosidade das operações de guerra e os combates mortíferos realizados, surgem naturalmente das próprias condições da luta, como um corolário inevitável.

O nosso otimismo impenitente, porém, que preestabelecera às marchas das colunas do general Artur Oscar, a celeridade e o destino feliz das legiões de César, mal sofreia uma nova desilusão e caracteriza como um insucesso, como um prenúncio inequívoco de derrota, o que nada mais é do que um progredir lento para a vitória.

Esquecemo-nos de exemplos modernos eloq uentíssimos. A Inglaterra enfrentando os zulus e os afgãs, a França em Madagáscar e a Itália recentemente, às arrancadas com os abissínios, patenteiam-nos entretanto reveses notáveis de exércitos regulares aguerridos e bravos e subordinados a uma disciplina incoercível, ante os guerrilheiros inexpertos e atrevidos, assaltando-os em tumulto, desordenadamente e desaparecendo, intangíveis quase, num dédalo impenetrável de emboscadas.

A profunda estratégia européia naquelas paragens desconhecidas é abalada por uma tática rudimentar pior do que a tática russa do deserto.

De fato, nada pode perturbar com maior intensidade o mais seguro plano de campanha do que esse sistema de guerra que sem exagero de frase se pode denominar — a tática da fuga — na qual, adaptadas de um modo singular ao terreno e invisíveis como misteriosas falanges de duendes, as forças antagonistas irrompem inopinadamente de todas as quebradas, surgem de modo inesperado nas anfractuosidades das serras, nas orlas ou nas clareiras das matas e, fugindo sistematicamente à batalha decisiva, diferenciam e prolongam a luta, numa sucessão ininterrupta de combates rápidos e indecisos.

A organização mais potente de um exército, que é um organismo superior com orgãos e funções perfeitamente especializadas, vai-se, assim, em sucesivas sangrias, deperecendo até a adinamia completa, ante as hostes adversárias, de uma organização redimentar, cuja força está na própria inconsistência, cujas vantagens estão na própria inferioridade e que, desbaratados hoje, revivem amanhã, dos próprios destroços, como pólipos.

Ora, quem observa, esclarecido embora por escassas informações, a disposição topográfica desse trecho dos sertões da Bahia, para o qual se dirige agora toda a atenção do nosso país, reconhece de pronpto, que ele se presta de modo notável à guerra de recursos com todo o seu cortejo de reveses.

Sem um sistema orográfico definido, na significação rigorosa do termo, a região caracteriza-se, de um modo geral, pela feição caótica e acidentada que lhe imprimiu o tumulto das águas nas épocas remotas em que a ação violenta destas, arrastando as camadas de grés que a revestiam, desnudou-a em muitos pontos, aprofundando-se em outros segundo a resistência variável das rochas até aos terrenos mais antigos.

Daí o seu aspecto bizarro e selvagem.

Em que pese a sua imobilidade aparente, a natureza, ali, nas linhas vivas dos plateaux que terminam bruscamente em paredões a prumo, separados pelos vales profundos a que ladeiam escarpas abruptas e a pique, cindida pelas quebradas ou pelos desfiladeiros que recortam as serras, aprumando-se mais longe em afloramentos imensos de gnaisses "cujas formas fantásticas recordam ruínas ciclópicas" — parece haver estereografado toda a desordem, toda a ação violenta e atumultuada dos elementos que a assaltaram.

A serra do Aracati, agremiação incoerente de serrotes contornando as caatingas que se desdobram, até o Irapiranga, na direção média de NE, inflete vivamente antes de chegar a Monte Santo, numa direção perpendicular à anterior e subdividindo-se em morros isolados, mas próximos, determina entre aquela localidade e a de Canudos a linha mais acidentada, talvez, de toda a zona.

Prolongando-se para o norte, ao atingir o morro da Favela, eixo das operações do nosso exército, os grandes acidentes de terreno derivam para leste e depois para o norte e subseq uentemente para noroeste, como que estabelecendo em torno de Canudos um círculo de cumeadas, cortado pelo Vaza-Barris em Cocorobó.

A marcha do exército republicano opera-se nesse labirinto de montanhas.

Não é difícil aquilatar-se a imensa série de obstáculos que a perturba.

Por outro lado, na quadra atual, sob o influxo das chuvas, revestem-se os amplos tabuleiros, as encostas das serras e o fundo dos vales, de uma vegetação exuberante e forte, vegetação intensamente tropical, cerrados extensos impenetráveis, em cujo seio a trama inextricável das lianas se alia aos acúleos longos e dilacerantes dos cactos agrestes.

Vestido de couro curtido, das alparcatas sólidas ao desgracioso chapéu de abas largas e afeiçoado aos arriscados lances da vida pastoril, o jagunço traiçoeiro e ousado, rompe-os, atravessa-os, entretanto, em todos os sentidos, facilmente, zombando dos espinhos que não lhe rasgam sequer a vestimenta rústica, vingando célere como um acrobata as mais altas árvores, destramando, destro, o emaranhado dos cipoais.

Não há persegui-lo no seio de uma natureza que o criou à sua imagem — bárbaro, impetuoso, abrupto —.

Caindo inopinadamente numa emboscada, ao atravessarem uma garganta estreita ou um capão de mato, os batalhões sentem a morte rarear-lhes as fileiras e não vêem o inimigo — fulminando-os do recesso das brenhas ou abrigados pelos imensos blocos de granito que dão a certos trechos daquelas paragens uma feição pitoresca e bizarra, amontoado no alto dos serros alcantilados, como formas evanescentes de antigas fortalezas derruídas.

Compreendem-se as dificuldades da luta nesse solo impraticável quase.

A Espanha não o teve melhor para abalar o exército napoleônico que nela se exauriu depois de atravessar numa marcha triumfal quase que a Europa inteira; não o tem mais apropriado a ilha de Cuba, hoje, revivendo, um século depois, numa inversão completa de papéis, contra a Espanha, o mesmo processo de guerra perigosíssimo e formidável.

Ora, a estes obstáculos de ordem física aliam-se outros igualmente sérios.

O jagunço é uma tradução justalinear quase do iluminado da Idade Média. O mesmo desprendimento pela vida e a mesma indiferença pela morte, dão-lhe o mesmo heroísmo mórbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo.


Uma sobriedade extraordinária garante-lhe a existência no meio das maiores misérias.

Por outro lado, as próprias armas inferiores que usam, na maioria, constituem um recurso extraordinário: não lhes falta nunca a munição para os becamartes grosserios ou para as rudes as pingardas de pederneira. A natureza que lhes alevantou trincheiras na movimentação irregular do solo — estranhos baluartes para cuja expugnação Vauban não traçou regras — fornece-lhes ainda a carga para as armas: as cavernas numerosas que se abrem nas camadas calcáreas dão-lhes o salitre para a composição da pólvora e os leitos dos córregos, lastrados de grãos de quartzo duríssimos e rolados, são depósitos inexauríveis de balas.

A marcha do exército nacional, a partir de Jeremoabo e Monte Santo até Canudos, já constitui por isto um fato proeminente na nossa história militar.

É uma pagina vibrante de abnegação e heroísmo.

E se considerarmos que, a partir daqueles pontos, convergindo para o objetivo da campanha, as colunas, nesse investir impávido para o desconhecido, como se levassem a certeza de uma vitória infalível e pronta, não se ligaram por intermédio de pontos geográficos estratégicos à longinqua base de operações em Monte Santo, deixando, portanto, que entre elas e esta última se interpusesse extensa região crivada de inimigos, somo forçados a admitir que a arte, esta sombria arte da guerra que obedece a leis inexoráveis, foi ofuscada num admirável lance de coragem.

As suas regras, entretanto, devem prevalecer.

Um exército não pode dispensar uma linha de operações, segura e francamente praticável, ligando-o à base principal afastada, através de pontos de refúgio intermediários ou bases de operações secundárias, para as quais refluem as forças em caso de revés ou seguem facilmente os recursos que se tornam necessários.

A viagem recente, de Canudos a Monte Santo das forças sob o comando do coronel Medeiros é um exemplo frisante.

Toda a campanha ficou em função daquela força expedicionária; a sorte de um exército ficou entregue a uma brigada diminuta. Entretanto tal não sucederia se a linha de operações tivesse como pontos determinantes duas ou três posições estratégicas, aonde forças em número relativamente diminuto se firmem, auxiliando eficazmente as comunicações entre a base de operações e o exército.

As forças auxiliares que partem hoje do Rio de Janeiro irão, certo, anunciar estas medidas urgentes, corrigindo uma situação anormalíssima.

Não basta garantir Monte Santo — é indispensável ligá-lo o mais estreitamente possível ao exército, cujo eixo de operações alevanta-se neste momento, em frente de Canudos.

Tomadas estas providências, a campanha que pode terminar amanhã repentinamente por um golpe de audácia, mas que pode também prolongar-se ainda, será inevitavelmente coroada de sucesso.

A morosidade das operações é inevitável, pelos motivos rapidamente expostos.

As tropas da República seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória. Fora um absurdo exigir-lhes mais presteza.

Quem, ainda hoje, observa essas monumentais estradas romanas, largas e sólidas, inacessíveis à ação do tempo, lembrando ainda a época gloriosa em que sobre elas ressoava a marcha das legiões invencíveis, irradiando pelos quatro pontos do horizonte, para a Gália, para a Ibéria, para a Germânia, compreende a tática fulminante de César…

Mas, amanhã, quando forem desbaratadas as hostes fanáticas do Conselheiro e descer a primitiva quietude sobre os sertões baianos, ninguém conseguirá perceber, talvez, através das matas impenetráveis, coleando pelo fundo dos vales, derivando pelas escarpas íngremes das serras, os trilhos, as veredas estreitas por onde passam, nesta hora, admiráveis de bravura e abnegação — os soldados da República.