Critica (Machado de Assis, 1910)/Guilherme Malta

Confiou-me V. Ex. para julgar um dos mais fecundos poetas da América latina, que o meu ilustrado amigo Henrique Muzzio apreciaria cabalmente, a não impedir-lho a doença que nos priva de seus escritos. Entre a ousadia de me fazer juiz e o desprimor de lhe desobedecer, confesso que me acho perplexo e acanhado.

A idéia, porém, de que sirvo neste caso ao elevado sentimento americano com que V. Ex. está aliando a literatura de dois povos, me dá algum ânimo de vir a público. Claro está que não virei como juiz e sim dizer em poucas e singelas palavras a impressão que me causa, e não de hoje, o eminente poeta chileno.

Não de hoje, digo eu, porque os seus versos não me eram desconhecidos. Os primeiros que li dele mostrou-mos o seu compatriota Guilherme Bleste Gana, maviosíssimo poeta e um dos mais notáveis e polidos talentos do Chile. Vinham impressos num jornal de Santiago. Era um canto ao México, por ocasião da catástrofe que destruiu o trono de Maximiliano.

Havia ali muito fogo lírico, idéias arrojadas, e ainda que a composição era extensa, o poeta soubera conservar-se sempre na mesma altura. Hipérbole também havia, mas era defeito esse menos do poeta que da língua e da raça, naturalmente exagerada na expressão. A leitura do canto logo me despertou o desejo de ler as obras do autor. Obtive-as posteriormente e li-as com a atenção que exigia um talento de tão boa têmpera.

Não são mui recentes, como V. Ex. sabe, os seus dois volumes de versos. A única edição que conheço, a 2.ª, traz a data de 1858, e compreende os escritos de 1847 a 1853, tempo da primeira juventude do poeta. Não quer isto dizer que se arrufasse com as musas, e o canto a que me referi acima prova que também elas lhe não perderam a afeição dos primeiros dias.

Estou que o poeta terá publicado nos jornais muitas composições novas, e é de crer que algumas conserve inéditas. De qualquer modo que seja, os seus dois volumes, como qualidade, justificam a nomeada de que goza o poeta em toda a América espanhola; e, como quantidade, poderiam encher uma vida inteira.

A poesia e a literatura das repúblicas deste continente que falam a língua de Cervantes e Calderón conta já páginas dignas de apreço e credoras de admiração. O idioma gracioso e enérgico que herdaram de seus pais adapta-se maravilhosamente ao sentimento poético dessas regiões. Falta certamente muita coisa, mas não era possível que tudo houvessem alcançado nações recém-nascidas e mal assentes em suas bases políticas.

Além disso, parece que a causa pública tem roubado muito talento às tarefas literárias; e sem falar no poeta argentino, que não há muito empunhava o bastão de primeiro magistrado do seu país, aí está Blest Gana, que a diplomacia prendeu em suas teias intermináveis. Penélope defraudou Circe, o que é uma inversão da fábula de Homero. Malta era deputado há um ano, e não sei se o é ainda hoje; não admirará que o parlamento o haja totalmente raptado às letras. A mesma coisa se dá na nossa pátria; mas já os enfeitiçados da política vão compreendendo que não há incompatibilidade entre ela e as musas e, sem de todo lançarem o hábito às ervas, o que não é fácil, é certo que voltam de quando em quando a retemperar-se na imortal juvença da poesia.

A anarquia moral e material é também em alguns de seus países elemento adverso aos progressos literários; mas a dolorosa lição do tempo e das rebeliões meramente pessoais que tanta vez lhes perturbam a existência, não tardará que lhes aponte o caminho da liberdade, arrancando-os às ditaduras periódicas e estéreis. Causas históricas e constantes têm perpetuado o estado convulso daquelas sociedades, cuja emancipação foi uma escassa aurora entre duas noites de despotismo. Tal enfermidade, se aproveita ao egoísmo incurável dos ditadores de um dia, não escapa à sagacidade dos estadistas patriotas e sinceros. Um deles, ministro de estado na Colômbia, há cerca de um ano, francamente dizia, em documento oficial, que, na situação do seu país, era uma aparência a república, e encontrava na ignorância do povo a causa funesta da inanidade das instituições. “Nossas revoluções, dizia o Sr. Camacho Roldán, nascem espontaneamente e se alimentam e crescem neste estado doentio do corpo social, em que, sob uma tenuíssima crosta de população educada, se estende uma massa enorme de população ignorante, joguete de todas as ambições, matéria inerte que se presta indiferentemente ao bem e ao mal, elemento sem vida própria, que o furacão levanta e agita em todas as direções”.

Concluía o sagaz estadista propondo que se acudisse “à constituição interior da sociedade”.

Algum progresso tem já havido no Peru; e, não longe de nós, a Confederação Argentina parece ir fechando a era lutuosa da caudilhagem. De todos, porém, é o Chile a mais adiantada república. O mecanismo constitucional não está ali enferrujado pelo sangue das discórdias civis, que poucas foram e de limitada influência.

Em frente da autoridade consolidada vive a liberdade vigilante e pacífica. O que um ministro da Colômbia propunha como necessidade do seu país, vai sendo desde muito uma realidade na República Chilena, onde a educação da infância merece do poder público aquela desvelada atenção, que um antigo diria ser a mais bela obra do legislador.

Muitos patrícios nossos, a instâncias de V. Ex., têm revelado numerosos documentos dos progressos do Chile. É de bom agouro esta solicitude. Valemos alguma coisa; mas não é razão para que desdenhemos os títulos que possa ter uma nação, juvenil como a nossa, e no seu tanto operária da civilização. Não imitemos o Parisiense de Montesquieu, que se admirava de que houvesse Persas. Entre a admiração supersticiosa e o desdém absoluto, há um ponto que é a justiça.

A justiça reconhece em Guilherme Malta um poeta notável. Os livros que temos dele, como disse, são obras da primeira juventude, e quando o não dissessem as datas, diria-o claramente o caráter de seus versos. Geralmente revelam sentimento juvenil, seiva de primeira mão, verdadeira pompa da primavera, com suas flores e folhagens caprichosamente nascidas e ainda mais caprichosamente entrelaçadas.

Há também seus tons de melancolia, seus enfados e abatimentos, arrufos entre o homem e a vida, que o primeiro raio de sol apaga. Mas não é esse o tom geral do livro, nem revela nada artificial; seria talvez influxo do tempo, mas influxo que parece casar-se com a índole do poeta.

É justo dizer que uma ou outra vez, mas sobretudo nos dois poemas e nos fragmentos de poema que ocupa o primeiro volume, há manifesta influência de Espronceda e Musset. Influência digo, e não servil imitação, porque o poeta o é deveras, e a feição própria, não só se lhe não demudou ao bafejo dos ventos de além-mar, mas até se pode dizer que adquiriu realce e vigor. O imitador servil copiaria os contornos do modelo; não passaria daí, como fazem os macaqueadores de Victor Hugo, que julgam ter entrado na família do poeta, só com lhe reproduzir a antítese e a pompa da versificação. O discípulo é outra coisa: embebe-se na lição do mestre, assimila ao seu espírito o espírito do modelo. Tal se pode dizer de Guilherme Malta nos seus dois poemas Un cuento endemoniado, La mujer misteriosa e nos fragmentos.

Há nessas composições muitas páginas comoventes, outras joviais, outras filosóficas; e descrições variadas, algumas delas belíssimas, imagens e idéias, às vezes discutíveis, mas sempre nobremente expressas, também as achará o leitor em grande cópia. O defeito desses poemas, ou contos, que é a designação do autor — me parece ser a prolixidade. O próprio poeta o reconhece, no Cuento endemoniado, e contrito pede ao leitor que lhe perdoe:

............................... las digresiones
Algo extensas que abundan en mi obra.

A poesia chamada pessoal ocupa grande parte do 2.° volume, talvez a maior. Os versos do poeta são em geral uma contemplação interior, coisas do coração e muita vez coisas de filosofia. Quando ele volve os olhos em redor de si é para achar na realidade das coisas um eco ao seu pensamento, um contraste ou uma harmonia entre o mundo externo e o seu mundo interior.

A musa de Malta é também viajante e cosmopolita.

Onde quer que se lhe depare assunto à mão, não o rejeita, colhe-o para enfeitá-lo com outros, e oferecê-los à sua pátria. Ora canta uma balada da idade média, ora os últimos instantes de Safo. Vasco Nunes recebe um louro, Pizarro um estigma. Quevedo e Cervantes, Lope de Vega e Platen, Aristófanes e Goethe, Espronceda e V. Hugo, e ainda outros têm cada um o seu baixo-relevo na obra do poeta. Ofélia tem uma página. Lélia duas. A musa voa dos Andes ao Tirênio, do presente ao passado, tocada sempre de inspiração e sequiosa de cantar. Mas o principal assunto do poeta é ele mesmo. Essa poesia pessoal, que os trovadores de má morte deslavaram em versos pífios e chorões, encanta-nos ainda hoje nas páginas do poeta chileno.

Escreveu Malta no período em que o sol do romantismo, nado nas terras da Europa, alumiava amplamente os dois hemisférios, e em que cada poeta acreditava na elevada missão a que viera ao mundo. Aquela fé perdeu-se, ou amorteceu muito, como outras coisas boas que vão baixando nesta crise do século. O canto do poeta, ode dedicada a Blest Gana, exprime a serena e profunda confiança do cantor, não só na imortalidade da inspiração, mas também na superioridade da poesia sobre todas as manifestações do engenho humano. A poesia é o verbo divino, el verbo de Dios, e o poeta, que é o órgão do verbo divino, domina por isso mesmo os demais homens: el poeta es el único. Com este sentimento quase religioso, exclama o autor do Canto:

Salmo del orbe, cántico infinito,
Verbo eterno que inflamas
El alma, y como un fulgido aerolito
Rasgas tinieblas y esplendor derramas!
Verbo eterno, aparece,
El bien redime, el bien rejuvenece!
……………………………………………………………..
Alza la frente! de la imagem bella
La forma allí circula;
Perfumes pisa su graciosa huella,
Y creación de luz, en luz ondula.
Poeta, alza la frente!
La eterna idea es hija de tu mente!

A musa que assim canta os destinos da poesia encara friamente a morte e fita os olhos na vida de além-túmulo. Entre outras páginas em que este sentimento se manifeste, namoram-me as que ele chamou para siempre, e que são um sinônimo de amor, animado e vivo, e verdadeiramente do coração. Nem todas as estrofes serão irrepreensíveis como pensamento; mas há delas que o cantor de Tereza não recusaria assinar. Çomo o poeta de Elvira, afiança ele a imortalidade à sua amada:

Los dos lo hemos jurado para siempre!
Nada puede en el mundo separarnos;
Consolarnos los dos, los dos amarnos,
Debemos en el mundo, caro bien.
A pesar de las críticas vulgares
Los cantos de mi lira serán bellos,
Inmortales quizá... yo haré con ellos
Diadema de armonías a tu bien.
Eses cantos son tuyos; son las flores
Del jardín de tu alma. En ella nacen,
Crecen, aroman, mueran y renacen,
Que es un germen eterno cada flor.
Yo recojo el perfume, y transvasado
Del alma mía en el crisol intenso,
En estrofa sublime lo condenso
O lo esparzo en un cántico de amor.
Mi amante corazón es una selva
En sombras rica, en armonías grata;
Y el eco anuda y a su vez dilata
Con la canción que acaba otra canción.
Lira viviente, cada nota alada
Vibra en sus cuerdas, su emoción expresa;
Ave incansable de cantar no cesa,
Tan poco el labio de imitar el son.
Oh! si pudieses asomar tus ojos
Dentro en mi alma! Si leer pudieras…
Cuántas odas bellísimas leyeras,
Cuántos fragmentos que sin copia están,
Todo un poema, en fin, todo un poema
Transfigurado, armónico, infinito,

En caracteres gráficos escrito
Que tu ojos no más traducirán.

Geralmente é sóbrio de descrições, e quando as faz sabe envolver a realidade em boas cores poéticas. A imaginação é viva, o estro caudal, o verso correntio e eloqüente. Não direi que todas as páginas sejam igualmente belas: algumas de inferior valia; mas tão ampla é a obra, que ainda fica muita coisa de compensação.

Quisera transcrever uma de tantas composições, como Panteismo, Canción, Crepúsculo, Lástimas, La Noche e muitas mais; o público, porém, ante cujos olhos vão estas linhas, tem já nos trechos apontados umas amostras do que vale a inspiração do poeta quando abre livremente as asas.

Livremente, porque há ocasiões em que ele a si mesmo impõe o dever de ser breve e conceituoso, ganhando na substância o que perde na extensão. Vê-se que conhece o segredo de condensar uma idéia numa forma ligeira e concisa que surpreenda agradavelmente o leitor. A prolixidade que eu achei nos poemas, e sobretudo Cuento endemoniado, não era defeito do poeta, mas um resultado da exageração dos modelos que seguiu.

Assim é que, para conter os ímpetos de sua alma, e juntamente aconselhar aos débeis a prudência, imaginara a galante alegoria da pomba:

Tus blancas alas agitas,
Paloma, en brando volar,
Y en tus vueltas infinitas
A una blanca vela imitas
Que se aleja adentro el mar.
………………………………………………….
Allí tus débiles plumas
Al aire se esparcirán…
Ah! no de águila presumas!
No abandones, ay! tus brumas
Por el sol del huracán!

Nem sempre se atém a estas generalidades. O problema da vida e da morte a miúdo lhe ocupa o pensamento. Não é já o poeta que anuncia a duração dos seus versos; é o homem que perscruta o seu destino. A conclusão não é sempre igual; às vezes crê, às vezes duvida; ora afirma, ora interroga apenas; mas esta mesma perplexidade é a expressão sincera do seu espírito.

O filosofo segue as alternativas da alma do poeta. O que a semelhante respeito encontro no livro é singularmente rápido e lacônico, como se o autor temesse encarar por muito tempo o problema terrível. Que será? por exemplo, é o singelo título destes singelíssimos versos:

¿

Hay mas allá? ¿La tumba es un abismo
Ó en un trono de luces se transforma?
¿Queda en la tierra parte de mí mismo,
Ó de una idea agena soy la forma?
¿Me ha creado el amor ó el egoismo?

Noutra página — Preguntas sin respuestas:

Santas visiones que jamás hallamos,
Mas que siempre seguimos y que vemos
Y con ansia del alma deseamos,
Decidme: ¿es realidad cuanto creemos?
Decidme: ¿es ilusión cuanto esperamos?
Y en la tumba morimos ó nacemos?

A tais interrogações, muitas vezes repetidas, responde o mesmo poeta em mais de uma página. Linha reta é a denominação desta conceituosa quintilha:

La muerte es una faz más luminosa;
La muerte es una vida más perfecta;
El espíritu humano no reposa;
Contiene un nuevo espíritu la fosa,
Como en la línea curva está la recta.

Não se propôs ele dar-nos um sistema filosófico; não escreveu sequer um livro de versos. Escreveu versos, conforme lhos foi ditando o sentimento da ocasião e quando os colecionou não se deteve a compará-los e conciliá-los, que isso seria tirar o caráter legítimo da obra, a variedade do sentir e do pensar. Esse é geralmente o encanto desta casta de livros. Junqueira Freire seria completo sem a contradição dos Claustros com o Monge?

Conviria talvez dizer alguma coisa a respeito da linguagem e da versificação do poeta. Uma e outra me parecem boas; mas a um estrangeiro, e sobretudo estrangeiro não versado na língua do autor, facilmente escapam segredos só familiares aos naturais. Nem a língua, nem a poética da língua conheço eu de maneira que possa aventurar juízo seguro. Os escritores europeus dizem que o idioma castelhano se modificou muito ou antes que se corrompeu passando ao novo continente.

Nas mesmas repúblicas da América parece que há diferenças notáveis. Dizia-me um escritor do Pacífico que o castelhano que geralmente se escreve na região platina é por extremo corrupto; e ali mesmo, há coisa de poucos anos, bradava um jornalista em favor da sua língua, que dizia inçada de escusados lusitanismos, graças à vizinhança do Brasil.

Assim será, não sei. Mas, a ser exato o que se lê numa memória da academia espanhola de Madri, lida e publicada em novembro do ano passado, a corrupção da língua nos países hispano-americanos, longe de aumentar, tem-se corrigido e melhorado muito, não só por meio de obras de engenho e imaginação, como por livros didáticos especiais. Um poeta da ordem de Malta tem natural direito àquela honrosa menção, e, pela posição literária que ocupa e a popularidade do seu nome, influirá largamente no movimento geral.

Estou que não conhecemos ainda todo o poeta. O que domina nos dois volumes publicados é o tom suave e brando, a nota festiva ou melancólica, mas pouco, muito pouco daquela corda do Canto ao México, que o poeta tão ardentemente sabe vibrar. Guardará ele consigo alguns trabalhos da nova fase em que entrou, como o seu compatriota Blest Gana, que teima em esconder das vistas públicas nada menos que um poema? Um e outro, como Barra Lastarria, como Errazuriz, como Arteaga, devem muitas páginas mais às letras americanas, a que deram tanto lustre Arboleda e Basílio da Gama, Heredia e Gonçalves Dias.