D. Maria do Carmo não alcançou que os recém-casados ficassem morando com ela. Jucunda desejava-o; mas o marido achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da madrinha; e assim viviam juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde residiam debaixo do mesmo teto.

Extinta a melodia, secas as rosas, passados os primeiros dias do noivado, Jucunda pôde tomar pé no recente tumulto, e achou-se grande senhora. Já não era só a afilhada de D. Maria do Carmo, e sua provável herdeira; tinha agora o prestígio do marido; o prestígio e o amor. Maia literalmente adorava a mulher; inventava o que a pudesse fazer feliz, e acudia a cumprir-lhe o menor dos seus desejos. Um destes consistiu na série de jantares que deram em Petrópolis, durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram célebres; a flor da cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra de ver a seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.

Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da morte do pai. A carta era da irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai nem teve tempo de dizer: ai, Jesus! Caiu da rede abaixo e expirou.

Leu a carta sentada. Ficou por algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente; relembrava as coisas da infância, e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias antigos, despegava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.

— Que é que tem? perguntou-lhe.

Jucunda, sobressaltada, ergueu os olhos para ele; estavam úmidos; não disse nada.

— Que foi? insistiu o marido.

— Morreu meu pai, respondeu ela.

Maia pôs um joelho no chão, pegou-a pela cintura e conchegou-a ao peito; ela escondeu a cara no ombro do marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.

— Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.

Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de pronto a cabeça, e enxugar os olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder no bolso a ruim ortografia da irmã e outros pormenores. Maia sentou-se na poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas. Olhando para o chão, viu um papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a notícia da morte do sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou de ler, deu com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com pouco se aquietou. Viu que a notícia apontava tão-somente a vida política do pai, e concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à grandeza local; não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos e capazes, ecoaria pelo país inteiro".

— Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.

Não houve abalo; mas, à vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na capela da madrinha, só para os parentes.

Chegado o tempo, nasceu o filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse primeiro e único fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que para dar às graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que conservou por muitos anos. A maternidade realçava a feminidade.

Só uma sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.

— Não disse quem é?

— Não disse, não, senhora.

— Bem vestida?

— Não, senhora; é assim meio esquisita, muito magra.

Jucunda olhou para o espelho e desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando as saias, foi ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher de pé, magra, amarelada, envolvida em um xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por alguns instantes calada, esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.

— Não me conhece, Cundinha?

Antes que acabasse, já a irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fê-la sentar-se; admirou-se de a ver aqui, sem saber de nada; a última carta recebida era já de muito tempo; quando chegara?

— Há cinco meses; Getulino foi para a guerra, como sabe; eu vim depois, para ver se podia...

Falava com humildade e a medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera mirando a sala, que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do chão. Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um quadro, cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo. Já antes de entrar, ficara por algum tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica. Contou à irmã que perdera o filho, ainda na província; agora viera com a idéia de seguir para o Paraguai, ou para onde estivesse mais perto do marido. Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou ficasse aqui.

— Mas que tem feito nestes cinco meses?

— Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei costurando para ela. A família foi para S. Paulo, vai fazer um mês; pagou o primeiro aluguel de uma casinha onde moro, costurando para fora.

Enquanto a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos, — desde o vestido de seda já gasto, — o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda pusera em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe escaparam sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe deu pena como repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra tenente por atos de bravura e outras muitas coisas. Não dizia você; para não empregar senhora, falava indiretamente; "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a princípio fez um gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o reprimiu, e deixou-se tratar como à outra parecesse melhor.

— Tem filhos?

— Tenho um, acudiu Jucunda: está dormindo.

Raimunda concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas, nem de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não pôde sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da casa, e despediu-a ali mesmo.

Em verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência. Não obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à Rua do Costa, ajudou-a com dinheiro, mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho Velho, sem acordo, mas às furtadelas. No fim de dois meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma viagem à Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província; mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.

Foi então que o marido recebeu aviso anônimo das visitas da mulher à Rua do Costa, e das que lhe fazia, em casa, uma mulher suspeita. Maia foi à Rua do Costa, achou Raimunda arranjando as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do Engenho Velho, Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas, dizendo que "D. Jucunda era sua patrícia e antiga protetora"; agora mesmo, se voltava para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois de longo interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas, três meses depois, por ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao marido a grande e sincera afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.

Maia lembrou-se então da Rua do Costa.

— Todos lhe querem bem a você, já sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me falou daquela pobre mulher, sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava na Rua do Costa?

Jucunda empalideceu. O marido contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera com Raimunda, e finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas. Jucunda sentiu-se vexada e confusa.

— Que mal há em fazer bem, quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido, concluindo a frase com um beijo.

— Sim, era excelente mulher, muito trabalhadeira...