A dona da casa ficou estupefata no dia seguinte quando lhe deram conta do ocorrido. Em quaisquer outras circunstâncias, o caso lhe pareceria natural. Naquelas afigurou-se-lhe extraordinário. Ao mesmo tempo ficou singularmente satisfeita.
— Não o deixes sair sem almoçar, disse ela ao escravo.
A ordem foi cumprida; e Gaspar viu-se obrigado a faltar à repartição porque D. Mônica, que almoçava cedo, determinou que naquele dia se alterasse o costume. Não me atrevo a dizer que o fim da boa senhora fosse aquilo mesmo, mas tinha ares disso. Verdade seja que a demora podia explicar-se pela necessidade que ela tinha de vestir-se e toucar-se convenientemente.
— Oh! não preciso de explicações, disse ela quando à mesa do almoço Gaspar quis explicar-lhe a razão do incômodo que viera dar-lhe. Vieste, é quanto basta; sempre que vieres tens aqui casa e corações amigos.
Gaspar agradeceu e almoçou. Almoçou triste e preocupado. Não reparou nas atenções da tia, no tom carinhoso com que ela lhe falava, na ternura que havia nos seus olhos; não reparou em nada. D. Mônica, pelo contrário, reparou em tudo; viu que o sobrinho não estava senhor de si.
— Hás de me contar o que tens, disse ela quando ficaram sós os dois.
— Não tenho nada.
— Não me iludas!
— Nada tenho... passei a noite mal.
D. Mônica não acreditou, mas não insistiu. O sobrinho, entretanto, sentia necessidade de desabafar com alguém; e não tardou em expor tudo à velha parenta, que o ouviu com religiosa atenção.
— Não me admira nada disso, observou ela quando ele acabou a narração; é naturalíssimo.
— Alguma traição?
— Podia ser; mas não é necessário suspeitar traição para explicar a mudança dessa moça.
— Parece-lhe...
— Parece-me que ela amava um herdeiro, e que...
— Oh! impossível!
— Por que impossível?
— Se eu lhe digo que a achei triste e abatida! O pai, sim, é possível que o pai se oponha...
— Também creio.
— Mas a vontade do pai...
— A vontade do pai há de vencer a da filha; seus conselhos a persuadirão... disse D. Mônica sorrindo. Que admira? É o que acontece com moças que sonham no casamento um perpétuo baile.
Gaspar ouviu cabisbaixo e triste o que lhe dizia a velha parenta. Seu coração batia com força, à medida que o espírito ia admitindo a plausibilidade da opinião de D. Mônica. Ao mesmo tempo surgiam-lhe na memória as provas de afeto que Lucinda sempre lhe dera, o desinteresse manifestado mais de uma vez, e, enfim, a indignação com que ainda recentemente lhe respondera a uma insinuação acerca da herança.
D. Mônica, pela sua parte, mostrava os inconvenientes em certa ordem de casamentos comparados com outros, menos românticos, mas, muito mais sólidos. Gaspar não ouviu, ou ouviu mal, a preleção da tia. Tinha perdido a repartição: saiu para ir rondar à porta da namorada.
Na primeira ocasião em que pôde falar a sós com ele (foi daí a dois dias), Lucinda referiu-lhe o discurso e os conselhos do pai, e pediu-lhe que tivesse paciência e esperasse. Gaspar jurou por todos os santos do céu que esperaria até a consumação dos séculos. A moça podia responder que provavelmente nessa época não estaria em idade de casar, não lhe acudiu, porém, a resposta e continuou a lastimar-se com ele do despotismo dos pais e das exigências sociais.
Gaspar saiu dali disposto “a fazer uma estralada”. Vagou longo tempo nas ruas sem assentar em coisa alguma, até que foi acabar a noite no primeiro teatro que achou aberto. Na peça que se representava havia um namorado em condições iguais às dele que acabava matando-se. Gaspar achou que a solução era violenta demais.
— Oh! eu morrerei por mim mesmo! exclamou ele saindo do espetáculo.
Talvez julgasse que entre a vida e a morte havia lugar para um bife de grelha, porque o foi comer em um hotel próximo. A ceia diminuiu-lhe o horror da situação; Gaspar dormiu tranqüilo a noite inteira.
No dia seguinte acordou tarde; e faltou à repartição, como usava fazer algumas vezes, e seu espírito, mais que nunca, era avesso ao expediente. Lembrou-se de ir dar um passeio a Niterói para distrair-se. Embarcou e recolheu-se todo em si, olhando para o mar e o céu. Pouca gente havia perto; ainda assim, e por mais absorto que ele estivesse, não pôde obstar que lhe chegasse aos ouvidos o seguinte pedaço de conversa entre dois sujeitos desconhecidos.
— É o que lhe digo, não caio nessa.
— Mas por quê?
— Porque não tenho certeza de ganhar um conto de réis e arrisco-me a perder dez ou doze.
— Não creio...
— É arriscadíssimo!
— Você é um medroso.
— Medroso, não; prudente. Prudente como quem lhe custou a arranjar um peculiozinho.
— Peculiozinho? Maganão! confesse que você tem aí os seus cem contecos...
— Por aí, por aí...
Gaspar suspirou e olhou para o passageiro que dizia possuir cem contos. Era um homem de cerca de quarenta anos, vestido com asseio, mas sem apuro nem elegância. A barca chegava a S. Domingos; o interlocutor do homem desembarcou, enquanto o outro ficou para ir a Niterói. Logo que a barca tomou este caminho, Gaspar aproximou-se do desconhecido:
— Não me dirá — disse ele — como é que Vossa Senhoria arranjou cem contos de réis?
O desconhecido olhou espantado para a pessoa que lhe fazia esta pergunta e ia responder-lhe descortesmente, quando Gaspar continuou nos termos seguintes:
— Espanta-se naturalmente do que lhe digo, e tem razão; mas a explicação é simples. Vossa Senhoria vê em mim um candidato a cem contos de réis; ou a mais...
— Mais é melhor, tomou o desconhecido sorrindo.
— Bastam-me cem.
— Pois o segredo é simples.
— Qual é?
— Ganhá-los.
— Oh! isso!
— É difícil, bem sei; leva anos.
— Quantos anos levou o senhor?
— É muito curioso!
— Oh! se eu lhe contar a minha situação, compreenderia a singularidade da minha conversa.
O desconhecido nenhuma necessidade sentiu de saber a vida de Gaspar, e dirigiu a conversa para as vantagens que podem dar os bens da fortuna. Foi o mesmo que lançar lenha no fogo. Gaspar sentiu arder em si, cada vez mais, a ambição de possuir.
— Se eu lhe disser que posso ter trezentos contos de réis amanhã?
Os olhos do desconhecido faiscaram.
— Amanhã?
— Amanhã.
— Como?
— De um modo simples; casando.
Gaspar não recuou em suas confidências; referiu tudo ao desconhecido que o ouvia com religiosa atenção.
— E que faz o senhor que não casa?
— Porque amo a outra pessoa; uma criatura angélica...
O desconhecido olhou para Gaspar com tanta compaixão que este sentiu-se envergonhado — envergonhado, sem saber de quê.
— Bem sei, disse ele, que não há prudência nisto; mas o coração... O que eu queria era saber como se pudesse obter cem contos, para depois...
— Casar com a outra?
— Tal qual.
— Não sei. A barca está a chegar e nós vamos separar-nos. Deixe-me dar-lhe um conselho: case com sua tia.
— Uma velha!
— Trezentos contos.
— Amando a outra!
— Trezentos contos.
A barca chegou; o desconhecido despediu-se.
Gaspar ficou só, a refletir no infinito número de homens interesseiros que há no mundo. A barca voltou daí a pouco à cidade. Gaspar viu entrar entre os passageiros um homem ainda moço pelo braço de uma senhora idosa, que ele supôs ser sua mãe, mas que soube ser sua mulher quando o rapaz a apresentou a um amigo. Vestiam com luxo. O marido, tendo de tirar um cartão de visita da algibeira, mostrou uma carteira recheada de dinheiro.
Gaspar suspirou.
Chegando à cidade foi à casa da tia; D. Mônica achou-o ainda muito triste, e lhe disse.
— Vejo que amas loucamente essa moça. Queres casar com ela?
— Titia...
— Farei o mais que posso; tentarei vencer o pai.
Gaspar ficou estupefato.
— Oh! disse ele consigo; eu sou indigno desta generosidade.