CAPITULO I

 
Marselha. — Seu porto.— Seus habitantes.— Thiers em Marselha. — As suas bellezas. — O fim da nossa viagem ao Oriente. — Venus e o Sol. — Partida do «Ava.» — O outeiro de Nossa Senhora da Guarda. — Uma antiga usança. — Toulon. — O Porto de Nápoles. — O muzão nacional. — Ascensão ao Vesuvio. — Partida de Nápoles. — O Stromboli. — O Etna.
 


Marselha
é sem contestação, uma das mais bellas e importantes cidades do Mediterraneo.

A antiga cidade grega, a rival de Tyro, de Carthago e de Athenas, poude resistir aos desastres das guerras civis e estrangeiras que, durante os ultimos seculos, assolárão a França; e depois de mil alternativas, de grandeza e ruina, sob o impulso da moderna civilisação, Marselha, se mostra hoje como Rainha do Mediterraneo.

O seu vasto porto, mais celebre na antiguidade que o do Pirêo, offerece hospitaleiro abrigo a centenares de navios de todas as nacionalidades, que o communicão com os principaes paizes das cinco grandes divisões da Terra.

Para ahi, affluem todos os productos do oriente e do occidente: ao lado dos ricos estofos da India e da China vêm-se os tecidos de algodão dos Estados-Unidos; ao do excellente chá, o saboroso café do Brazil, chrismado com o falso nome de Moka, pelos especuladores europêos — e as lojas, os armazens de venda, expõem aos olhos do publico, mil artefactos da interessante industria oriental, que pela variedade de suas fórmas e côres, fazem as delicias dos amadores de curiosidades.

Este emporio do commercio continental importa e exporta todos os objectos de que necessita a familia humana; e o seu movimento é tal, que, salvo a marinha mercante da Inglaterra, a maxima parte de todas as outras da Europa visita annualmente Marselha.

A navegação a vapor, que faz o serviço entre esta cidade e os paizes asiaticos, é a mais importante do Globo, não sómente pelo numero dos seos navios, como pela idoneidade dos seus officiaes.

Os filhos de Marselha se distinguem dos outros seus compatriotas pelo seu caracter e temperamento; são, em geral, bravos, emprehendedores e do uma energia, proverbial na França e tão caracteristica que, só esta qualidade, basta para distinguil-os.

Assim é, que os habitantes da antiga cidade grega revoltarão-se, por varias vezes, contra o despotismo dos reis da França, e não raras, o sangue generoso dos Marselhezes regou o solo da patria, para vivificar a arvore da liberdade e fazel-a produzir os fructos que, mais tarde, forão saboreados por todos que desejavão o reconhecimento da soberania popular.

A historia da antiga filha da Phocea contém paginas brilhantes e honrosas para seus filhos; jámais a tyrannia encontrou apoio dentro dos seus muros, e seus homens de estado, que tiverão momentos de fraqueza, só encontrarão indifferença, quando de volta á cidade natal esperavão colher os applausos da multidão.

Thiers, o celebre politico opportunista do nosso seculo, não poude fugir á justiça de seus concidadãos; elle reconheceo, ainda em tempo para reconstituir o seu credito, o inconveniente d’esse systema que sempre nos conduz a apostasia politica; foi, quando por occasião da sua primeira visita á Marselha, como alto funccionario do estado, vio fecharem-se todas as portas á sua passagem. Entretanto, Thiers achava-se revestido com o poder da autoridade, dispunha do cofre das graças; porém, os Marselhezes, independentes e livres, quizerão que, o historiador da revolução de 89, se lembrasse das promessas de toda sua vida.

Thiers confessou, por mais de uma vez, a amarga impressão que lhe causou esta fria recepção, e mais tarde quando heróe conquistou os testemunhos de respeito e de admiração de todos os francezes, quando este ancião mostrou ao mundo admirado o prestigio do seu nome, valendo mais que os exercitos predominantes da Allemanha; os seus concidadãos orgulharão-se de possuil-o como modelo de virtudes civicas. Então, a sua presença na cidade de Marselha, pouco tempo antes de seu fallecimento, embriagou o povo, pela alegria immoderada do caracter meridional.

E estes factos, que nos parece, á primeira vista, de nenhum interesse, quando queremos julgar das virtudes do um povo, são, ao contrario, indicações preciosas sobre a direcção dada á opinião, pela sua moralidade; são estes movimentos expontaneos e desinteressados provas infalliveis com que poudemos ajuizar do estado moral de qualquer corpo collectivo.

Esta sociedade altiva e generosa não podia habitar uma cidade mal edificada e despida das bellezas que ornão suas irmãs. De feito, Marselha contém bellos monumentos e outras edificações de uma architectura imponente, taes como sejão: — o seu Hotel de Ville, o seu Theatro, o Arco do Triumpho e outros muitos edifícios publicos ou particulares, que tornão elegantes e importantes as grandes arterias da cidade.

A seus pés prostrão-se, calmas, as cerúleas vagas do Mediterraneo; uma corôa do granito cinge-lhe a fronte, e o extenso valle, que a rodea, limita-lhe os dominios.

A antiga cidade grega, que a tradicção nos descreve, desappareceu progressivamente diante do engenho humano; o labyrintho de ruas estreitas e immundas, e as acanhadas habitações da idade média, forão substituidas pelos boulevards e os squares aformoseados com os lindos edificios que ahi ostenta a moderna architectura.

Poucas cidades da Europa apresentão um accressimo tão rapido de população como Marselha. Em começo deste seculo apenas contava 90,000 habitantes, e hoje a sua população é superior a 300,000, o que é sem duvida devido, ao desenvolvimento do seu commercio maritimo e á vasta extensão da actual rede de caminhos de ferro que cobre todo territorio francez.

Foi á esta interessante e rica cidade que chegamos em 15 de Agosto de 1874, com o fim de embarcarmo-nos em um dos paquetes francezes, com destino ao Japão.

A nossa viagem, ás longinquas terras do extremo oriente não foi motivada pelo desejo que, havia muito tempo, nutriamos de visitar paizes curiosos, pelos uzos e costumes dos seus habitantes, e, ainda mais, por terem sido, incontestavelmente, a patria dos primeiros philosophos, cujas doutrinas, alguns seculos mais tarde, forão expostas sob outras fórmas, pelos sabios do occidente. O objecto da nossa viagem era outro, e tinhamo-nos compromettido levar ao cabo nossa empreza.

Eis como um gracioso convite assim se transformára em ardua missão.

Venus, a deosa da formusura, devia realizar a solemne promessa feita ao rei dos astros, da sua entrevista secular, o que teria lugar em um dos dias de Dezembro de 1874; e como nossos antepassados, sacerdotes como nós, das divindades celestes, notarão n’estas entrevistas, que suas crenças erão mystificadas pelos caprichos da deosa; cumpria-nos aproveitar o novo ensejo para formularmos juizo a respeito.

Até então, viviamos de crenças, mais ou menos justificadas pelas apparencias, e era de esperar que um seculo mais tarde, quando os direitos dos homens se achavão muito mais regulados e definidos, que estes deoses, a nosso exemplo, justificassem suas relações.

Talvez que, algum leitor, severo em seus juizos, julgue pouco airosa nossa presença a este rendez-vous, entretanto, no caracter de conscienciosos sacerdotes, tinhamos necessidade de justificar o nosso apoio ás modernas innovações sociaes, provando a moralidade dos deoses já venerados pelos antigos povos, e que os poetas chamarão mythologicos.

Ora, a occasião era azada; Venus a mais formosa das deosas, seria o mais fraco baluarte da virtude; e bem determinadas suas relações legitimas com o dardejante Sol, qualquer outra divindade, menos bella, ficaria invulneravel da maledicencia.

Era pois, em busca da verdade, que partiamos; e se estas razões não satisfizerem ao exigente leitor ponderamos finalmente que, devendo ter lugar a entrevista no Japão, e visto sermos todos obrigados a adoptar os costumes dos paizes em que estivermos, não nos ficará mal o papel de terceiro em questão de amor.

Assim frustrada, qualquer accusação que se nos queira fazer, cumpre-nos confessar a satisfação e contentamento de que nos possuimos, entrando a bordo do Ava, um dos melhores paquetes das Messageries Maritimes, que devia suspender ancora, no dia seguinte, 19 de Agosto pela manhã.

Na verdade, estes paizes decantados, pelos poetas portuguezes dos seculos passados, aguçavão nossa impertinente curiosidade, e só um obstaculo de impossivel remoção nos forçaria a modificar nosso primeiro proposito.

Assim, algumas difficuldades, que apparecerão, forão valorosamente aplainadas, e no dia marcado, o Ava punha-se em movimento, levando-nos a seu bordo bem como a outros convivas á festa de Venus.

O Ava fazia então a sua segunda viagem ao Oriente; havia apenas dous annos que acabara de ser construido nos importantes estaleiros da companhia: e a sua fórma e outras condições nauticas chamavão a attenção dos profissionaes, os quaes admiravão o cuidado que presidio o seu fabrico; e sua fortaleza recommendava-o para a navegação difficil dos mares tempestuosos da China e do Japão.

As suas dimensões em comprimento e largura são mais ou menos as mesmas das do Equador e do Gironde, porém a altura acima do nivel d’agua é muito menor; o que diminue consideravelmente a superficie de presa ao vento. Comtudo, esta modificação que satisfaz as boas condições de resistencia durante os temporaes, é realizada com sacrificio das accommodações dos passageiros, já transferindo a sala de jantar para debaixo da coberta, já dispondo as camaras em volta do salão; o que é de pouco conchego para os viajantes que enjoão, quando viajão no mar.

Felizmente somos pouco accessiveis a este incommodo; e por isso, apenas o helice do Ava começou a mover-se, subimos á tolda do navio para gozar da bella vista do vasto porto de Marselha.

Ao lado direito a vista se perde em uma floresta de mastros de grande numero de navios mercantes, alguns amarrados ao longo do cáes, e todos dispostos com pittoresca symetria. Na extremidade das suas arvores vião-se confusamente flamulas de mil côres diversas, e pavilhões indicando as respectivas nacionalidades. Entre estes distinguimos o auri-verde varias vezes representado, e á sua vista o nosso coração recebeo dolorosa impressão, ao lembrarmos da patria e da familia, da qual já havia tres annos, achavamo-nos ausentes; e agora a distancia, que a separava de nós, augmentaria progressivamente e com ella as difficuldades de communicação.

A deslocação do navio, sobre as aguas tranquillas do porto, pela sua marcha, veio distrahir a nossa attenção dos navios brazileiros que nos recordava o que tinhamos de mais caro no mundo; passavamos então em frente de uma montanha onde se eleva a capella de Nossa-Senhora-da-Guarda, objecto de profunda veneração dos marinheiros marselhezes.

Este outeiro é muito concorrido pelos individuos desta occupação, que festejão todos os annos com pompa e esplendor a sua padroeira. É um lugar de verdadeira peregrinação, o monte Sinai de Marselha, onde o infeliz naufrago vai depôr aos pés da Mãe de Christo os seos ex-veto e outras offrendas.

Mais longe, perto da barra deste porto, sobre as muralhas de uma torre, um grande numero de homens e mulheres entoavão canticos ao Altissimo e a Santa Virgem, recommendando á sua guarda os viajantes do Ava. Estas vozes fortes e sonoras tocarão nossos corações, e commovidos e reverentes, descobrimos nossas cabeças a essas demonstrações humanitarias e sublimes que só podem encontrar estimulo na religião do Christo.

Aquelles que assim nos desejavão boa viagem erão homens e mulheres do povo, simples pescadores ou pessoas de suas familias, cujos corações devião occultar nobres virtudes, e honestas quanto desinteressadas intenções.

Este edificante uso, exemplo sublime da caridade christã, está enraizado na população deste lugar; e todas as vezes que um navio sahe de Marselha, os habitantes correm pressurosos ás muralhas para recommendal-o á protecção da sua padroeira.

Uma hora depois apenas viamos, atravez do nevoeiro, as costas da França, onde habita um grande povo, que pela riqueza da sua industria e do seu commercio tem conjurado a ruina da patria, ameaçada tantas vezes pelas desastrosas revoluções e guerras estrangeiras; deixando os inimigos admirados dos seus recursos e da facilidade com que em poucos annos de paz, restaura, como acaba de fazer, as suas forças e eleva-se pelo trabalho mais alto que nunca.

Já o sol declinava no horizonte quando o Ava passou em frente de Toulon, outra cidade da mesma origem que Marselha, e já notavel pela sua industria no tempo de Arcadio, filho de Theodozio o Grande.

Posto que a antiga cidadella do Mediterraneo tenha perdido pela sua situação, proxima de Marselha, que absorve a sua importancia commercial, Toulon, não tem desmentido o seu glorioso passado, e nós que a visitamos, podemos affirmar que só as obras do immortal esculptor Puget, que ahi se vêm, compensam a visita do estrangeiro.

Os seus arsenaes são vastos e muito importantes, e mesmo quem conhece os de Rochefort e de Brest contempla admirado suas officinas e os vastos armazens de munições de guerra; porém são, sobretudo, seus fortes com immensas baterias de fórma circular, que mais attrahem a attenção. Os filhos de Toulon sustentão com orgulho, que estas fortificações não encontrão rivaes nos outros paizes.

No dia seguinte pela manhã o Ava, sulcava as aguas italianas, e as dez horas mais ou menos avistavamos o cone fumante do Vesuvio que, isolado, eleva-se ao oriente da cidade de Napoles.

O Ava, proseguindo em sua marcha, augmentava o lindo panorama que se desdobrava aos nossos olhos: — Napoles edificada no meio de elevadas colinas com suas edificações dispostas em amphitheatro, abraçando o seu golfo em toda a extensão, offerecia uma bella perspectiva de varios planos: — o primeiro, formado pelas suas ilhas de pittoresco relevo, que se elevão no meio das aguas azuladas do golfo; o segundo, pelo Vesuvio e as colinas que rodeão o mar; finalmente, no fundo, o amphitheatro da grande cidade coroada pelos campanarios dos seos templos e pelas muralhas dos seus castellos, recordava-nos que a patria das artes era vizinha da capital do christianismo, e que seus filhos experimentarão, por muitos annos, a influencia do feudalismo allemão, tornado mais vexatorio pelo predominio dos antigos papas sobre a peninsula italiana.

Novas vistas ahi se succedem como os scenarios nos theatros: — de um lado são numerosas aldeias como as de Portici, Resina, Torre del Greco e da Nunziata; do outro, para quem se dirige para o occidente, se mostrão Pouzzoles, Baja e o cabo Missenea. No sul, vimos ao longe, as alvejantes aldeias de Castellamare, Vico, Sorrento e Campanella.

Apenas o Ava aferrou perto do porto militar, descemos a terra anceiosos por visitar, na antiga Parthenope[nota 1], os grandes monumentos d’arte do seu famoso musêo, symbolos indeleveis que resumem a historia da arte de todos os tempos, desde os Imperadores Romanos até o presente.

A nossa visita ao antigo muzêo borbonico foi d’esta vez de corrida; e apenas pudemos admirar no seu conjuncto ás maravilhas que ahi se vêm, e que parecem desprender doces effluvios, em honra dos genios creadores que adejárão para a eternidade, porém, depois de animar o gelado marmore e de estampar em simples telas, verdadeiros poemas de suas ardentes imaginações.

Logo, ao entrar, vêm-se no vestibulo bellas composições pintadas sobre madeira, diversos arabescos e outras pinturas decorativas que só merecem interesse secundario.

Seria impossivel descrever tudo que vimos na extensa galeria de quadros do muzêo de Napoles; nem este livro comportaria tal descripção, nem durante as visitas que fizemos posteriormente ao musêo, o tempo nos sobrou para contemplar, ainda que por instantes, todas as bellezas que ahi se achão expostas.

Apenas diremos o que vimos de mais notavel ou o que mais attrahio nossa attenção por qualquer circumstancia. Dominico Gargiuli, Annibal Carrache, Guido Reni, Miguel Angelo, são os representantes da supposta escola Napolitana bem que nenhum destes grandes artistas tivessem seu berço em Napoles. Suas obras primas encontrão-se em alguns musêos da Europa, porém, o de Napoles possue a maior parte senão as mais celebres.

O Anjo da Guarda uma das mais famosas obras primas de Dominico chama a attenção de todos os visitantes, pela belleza de expressão e suave colorido.

A Virgem de Corregio, mais conhecida pelo nome de la Zingarella, ou del Coniglio, é ambicionada por todos os musêos. Esta obra prima é reputada como uma preciosidade do Musêo Napolitano; e os guardas das galerias de pintura são constantemente interrogados pelos estrangeiros, sobre o local em que se acha este quadro.

O Casamento de Santa Catharina do mesmo artista, ainda que seja um quadro de pequenas dimensões, é muito apreciado pela gradação do colorido que inspira um sentimento grandioso e imponente á nossa imaginação enthusiastica. É sobretudo pela suavidade das fórmas que Corregio distingue-se de outros grandes artistas.

De Annibal Carrache, se vê uma cópia do fresco de Corregio, na Igreja de Parma, representando S. João Baptista rodeado pelos Anjos. Segundo nos disserão, o fresco foi inutilisado, quando se reconstruio esta Igreja; de modo que, o valor deste quadro é duplo, pois imaginado por Corregio e copiado por um artista, não menos notavel, como Carrache; – elle não podia ter mais dignos autores.

Ticiano tambem é representado no grande musêo: a sua Danäe é o primor d’arte da escola veneziana. Este quadro achava-se ainda ha pouco tempo em um gabinete secreto, porém, nenhum legitimo motivo havia para esta mysteriosa reservação. A Danäe de Ticiano, foi feita por encommenda do Duque de Fárnesio, que cedendo ás instancias do Papa Paulo III a cedeu ao musêo de Roma. Não sabemos como ella hoje se acha em Napoles onde attrahe a attenção dos amadores e serve para assumpto de estudo aos jovens artistas napolitanos.

Os paineis destas galerias elevão-se hoje a mais de novecentos, porém este numero tambem comprehende mediocres cópias e muitas composições sem grande merito artistico.

As estatuas e baixos relevos em marmore constituem uma collecção de mil e quinhentas esculpturas.

Em uma das salas vimos a bella estatua de Agrippina chorando a morte de Germanico, que chamou nossa attenção pela expressiva posição, nobre e austera do vulto que pinta realmente o sentimento da dôr piedosa, sempre susceptivel á resignação.

O busto de Julio Cezar trabalhado em marmore de Carrara tambem é uma outra obra prima de esculptura; os nobres traços que desenhão-lhe as feições são firmes e de um relevo muito realçante pelas sombras que se destacão — sobre a alvura do marmore.

A estatua de Flora ou de Venus vestida, é uma obra importante da esculptura grega. Canova fallava deste monumento da arte antiga com certa admiração, e, sobretudo, o que mais elle admirava, era a naturalidade das roupagens. Esta estatua foi encontrada soterrada nas Thermas de Caracalla, conjunctamente com o Hercules Fárnesio obra de Glucon de Athenas.

A collecção epigraphica é riquissima e variada. Um dos seus monumentos é o Hercules Fárnesio de que já fallamos, e outro ainda mais famoso é o grupo do Touro Fárnesio.

Hoje está verificado que este trabalho é devido a dous antigos esculptores, naturaes da ilha de Rhodes, de nomes Appollonio e Taurisco. Este importante grupo monolitho, foi restaurado no tempo de Paulo III, e representa provavelmente, — Dirceo, no momento de ser ligado aos cornos de um furioso touro por Amphião e Zetho filho de Anthiope.

Os objectos provenientes das infelizes cidades de Pompeia e Herculanum se distinguem á primeira vista, pela sua côr e alteração.

O bronze dos objectos soterrados pelas lavas do Vesuvio, em Pompeia, está mais deteriorado e o metal apresenta mesmo alguns pontos corroidos e cobertos de manchas de côr differente, quasi sempre azuladas e rodeadas por vivos embranquecidos; emquanto que os bronzes, de Herculanum conservarão-se melhor; sua côr é verde, e a superficie em alguns pontos apresenta polimentos.

As estatuas em bronze são imponentes e algumas de grandes dimensões. Entre muitas outras, não menos notaveis, mencionaremos as seis dançarinas, com seus olhos de esmalte, encontradas em Herculanum, onde ornavão o proscenio do theatro d’aquella cidade.

A posição de cada uma d’estas estatuas é de uma naturalidade inimitavel nos nossos tempos, em que se obedece a certas e multiplices regras anatomicas que muitas vezes sacrificão a variedade das fórmas e a verdadeira harmonia do conjuncto.

Em uma outra sala, vê-se a cabeça de um cavallo colossal, antigo symbolo da republica, e que ornava a praça onde se elevava outrora o templo de Neptuno, na cidade de Napoles.

Infelizmente conveniencias religiosas privarão a arte d’esta obra prima da antiga Grecia, e só a cabeça e o pescoço forão conservados. Foi em 1322 que o Arcebispo de Napoles, vendo o povo entregar-se a uma tola superstição, attribuindo a esta estatua a virtude de curar as doenças dos cavallos, ordenou que se fundisse o corpo do cavallo e o metal fosse empregado para os sinos da cathedral; comtudo, não levando ao cabo esta profanação á arte, o Arcebispo mandou conservar a parte que descrevemos, e que basta para nos dar idéa da magnificencia do todo.

Em uma pequena sala do muzêo, cuja entrada é exclusivamente franqueada aos representantes do sexo forte, vêm-se varias estatuas de Venus, que disputão entre si a primazia da belleza: uma, muito parecida com a Venus de Medicis; outra, com a do Capitolio, outra, á Venus Anadyomenia, etc. É porém, a Venus Callipygea, que foi encontrada na casa dourada de Néro, a que leva vantagem a todas, pela elegancia de suas formas e formosura dos seus traços.

Não é menos curiosa e interessante a collecção immensa de papyros escripturados pelos antigos; e por consequencia, preciosos depositarios dos seus pensamentos.

 
China
Mandarim civil
Lit. Imp. A. Speltz.
𝕸𝖆𝖓𝖉𝖆𝖗𝖎𝖒 𝖈𝖎𝖛𝖎𝖑
 

Nas excavações que se fizerão em Portici encontrou-se grande quantidade de rolos carbonisados d’estes escriptos, que ao principio, os operários rejeitarão, julgando ser pedaços de carvão.

E em uma casa, ahi encontrada, havia uma sala guarnecida com armarios cheios de papyros formando rolos e dispostos com symetria. Mais de mil d’estes papyros forão sujeitos a estudos por homens especiaes, e depois de mil difficuldades, o Padre Antonio Piaggi descobriu o meio de ler essas folhas, completamente ennegrecidas pelo fumo e calcinadas pelo fogo.

De feito, algumas traducções importantes forão ultimamente publicadas dos trabalhos do Philodemo, Rabirio e Epicuro, graças aos perseverantes cuidados dos sábios Carcani, Ignarro e Giordano.

Quando voltamos do Oriente desembarcamos em Nápoles, e então, pudemos com mais vagar apreciar as suas principaes obras d’arte e curiosidades.

As ruas de Nápoles são, em geral, mal traçadas, estreitas e sem o necessário nivellamento, acontecendo, quando chove, as aguas permanecerem por algum tempo estagnadas em muitos logares; entretanto, o seo calçamento se presta facilmente a um nivellamento, por ser feito com pedras vulcanicas, planas e de largas dimensões. Outras ruas são largas e bem ventiladas; porém estas são em pequeno numero, distinguindo-se duas principalmente: a via Roma ou rua de Toledo, e o caes da Chiaja; também o caes de Santa Lucia e o da Victoria são bastante largos, e é d’ahi que se goza a mais bella vista do porto de Nápoles.

As casas de commercio são muito frequentadas pela sociedade napolitana, principalmente as que são situadas na rua de Toledo, a mais bella da cidade. Em muitas destas casas de venda, vê-se um nicho ou pequeno oratorio, com a imagem de uma Madona, diante da qual os devotos queimão velas de cera, ou accendem lampadas em sua honra.

O povo napolitano é essencialmente religioso á sua moda; o que elles praticão resente-se dos antigos cultos rendidos aos deoses do paganismo, e é assim que, em Napoles, encontra-se uma grande variedade de imagens da Madona, cada uma tendo seos devotos particulares, e sendo objecto de um culto distincto.

As Madonas existem em todos os pontos de Napoles: no interior das casas, em nichos praticados nos muros de algumas ruas, nas praças, e, finalmente, até no frontespicio das casas particulares, e em geral sobre a porta principal.

O Vesuvio mede mais de 1,100 metros de altura; o seo cone eleva-se no espaço como a chaminé de um grande forno, sempre fumando e lançando cinzas; e, á noite, na escuridão das trevas, esta columna de fumo e de vapor illumina-se de subito e alternativamente todos os tres minutos. Era de suppôr que as encostas deste gigante de fogo fossem abandonadas e sinistras; a sorte de Pompeia e Herculanum deveria affastar d’ahi os napolitanos; entretanto, na base do Vesuvio se destacão muitas habitações formando povoações ou aldeias.

As encostas do vulcão são intelligentemente utilisadas com bellas vinhas, cujas uvas fornecem o afamado lacrima-christi, tão procurado em algumas cidades da Europa.

Sob o ponto de vista mineralogico, o Vesuvio apresenta alto interesse; os mineraes que ahi se encontrão, são numerosos, notando-se entre outros, a mica, o epidoto, a augita, o amphiboleo, a breislakita, a amphigenea, a nephelina, o idocrasio e grande variedade de granadas.

Presentemente, as lavas da cratera são de natureza differente das que se vêm em algumas collecções mineralogicas da Europa. Nestas amostras, os porphirios e sobretudo os chrystaes de amphigenea, constituem principalmente a lava; entretanto, vimos lavas, colhidas na actual cratéra, sem conter a minima quantidade destes crystaes.

É facto verificado que a natureza da lava é modificada pelas erupções, e que, outras vezes, estas lavas são acompanhadas por muitas substancias diversas, que se encontrão nas importantes collecções geologicas, estudadas com o maximo cuidado.

A ascensão ao Vesuvio começa em Resina, depois de entrarmos em Portici, um dos arrabaldes de Napoles, assim chamado, por ter sido este lugar o Herculis porticum dos antigos; em seguida, deixa-se a estrada de Sorrento e toma-se uma outra que vai costeira aos flancos do morro, porém, em voltas tortuosas até chegar a uma antiga ermida, hoje transformada em hospedaria ou albergue. Ahi, encontrão-se cavallos, que em meia hora levão os toristas além do Summa, cujo solo é completamente coberto com camadas de cinzas ou escorias. Então, a ascensão é bastante difficil e trabalhosa, e gasta-se mais de meia hora para chegar-se até o boqueirão da cratera; onde, os olhos se extasião diante de vastos panoramas, e o nosso coração se concentra intimidado por tanta grandeza á vista da nossa pequenhez.

De Portici á cratera, gastamos mais de tres horas; ora, viajando de carro e a cavallo, ora a pé, com as plantas mortificadas pelas asperidades das escorias apezar da fortaleza dos nossos botins, que, as vezes, sem encontrar ponto de apoio resistente, aprofundavão as camadas de cinzas e lançavão esta materia sobre nossas vestes.

Entretanto, vimos bellas filhas da Albion, com suas louras madeixas e saphiricos olhos, vencerem com coragem todos os obstaculos, e galgarem o alto do Vesuvio, para d’ahi gozarem do esplendido espectaculo que a natureza nos offerece.

Lançando os olhos para o amphitheatro immenso, que se estende aos pés da montanha, subita idéa se apodera do viajante, que interroga o futuro, sobre a sorte d’esta cidade, ameaçada, a todos os instantes, de ser soterrada debaixo de camadas de projectis, como perecerão Pompeia e Herculanum.

Já que fallamos d’estas antigas cidades, cumpre-nos confessar que, por imperdoavel imprudencia na distribuição que fizemos do nosso tempo, não visitamos suas ruinas, hoje quasi que habitadas pelos sabios archeologos, incançaveis interpretes d’esse livro authentico da vida dos povos romanos do seculo I.

Na nossa viagem para o Oriente, o Ava apenas demorou-se algumas horas em Napoles, de modo, que quando deixamos este porto, os ultimos raios dourados do sol ferião as nuvens, que envolvião a cratera do Vesuvio, fazendo-as scintillar com rubra côr.

Passamos perto da pittoresca ilha de Capri, com seus rochedos escabrosos e d’onde o Imperador Tiberio, segundo Suetonio, mandava precipitar ao mar as victimas da sua crueldade, depois de as martyrisar com prolongados e excogitados supplicios.

Em frente desta ilha, fica Campanella, a terra das bellas Napolitanas, e onde existio o templo de Juno, sobre cujas ruinas edificou-se uma grande igreja, sob a invocação de S. Francisco.

No meio da noite do mesmo dia que partimos de Napoles, vimos as chammas do Stromboli que, como pharol de luz intermittente, indicava ao Ava a entrada do estreito de Messina.

Foi a ilha, onde se eleva este vulcão, a primeira que avistamos depois de Capri; a sua formação, segundo dizem, é toda vulcanica e à montanha está em constante actividade ha muitos seculos. Durante a noite vêm-se distinctamente as erupções, que por intervallos, parecem fogos de artificio. Um phenomeno curioso e particular a este vulcão foi observado por Sir Lyell.

Este sabio notou que as erupções erão muito mais fracas quando o tempo sereno do que durante as tempestades; assim é que os habitantes da ilha considerão o vulcão como um barometro.

Algumas horas depois deixavamos o Stromboli na popa do Ava e entravamos no estreito passe de Messina.

Ao lado direito viamos as luzes da cidade de Reggio e no lado esquerdo a cidade de Messina, mais importante pelo seo commercio do que a primeira.

Na frente de nós, esclarecido pelos raios bruxuleantes da aurora, divisavamos o Etna, o mais elevado vulcão da Europa, com o seu cone ainda encoberto pelo nevoeiro da manhã.

Uma hora depois, esta montanha de mais de 3,300 metros de altura, achava-se perto do Ava; navegavamos nas mesmas aguas que molhavão a sua base do lado do Oriente.

N’este ponto, a base do Vulcão fórma um circulo regular de 38 léguas de extensão, que diminue progressivamente com a altura, porém, de modo a formar doces declives apenas de 7 a 8 gráos, o que torna facil a ascenção á cratera durante a boa estação.

O Etna também é conhecido na Sicilia pelo nome de Monte Gibello; elle é cultivado em alguns pontos de suas vertentes e principalmente na sua base; ahi, vê-se grande numero de casas formando mais de 60 aldeias ou povoações; e esta região é considerada como uma das mais ferteis da Sicilia.

Debaixo do ponto de vista scientifico o Etna mereceo os estudos de Lyell e de Elie de Beaumont.

Segundo estes sabios geologos, as suas encostas do lado do Sul e de Este, apresentão depositos sedimentados e vulcanicos de origem sub-marina, e, ahi encontrárão, grande quantidade de conchas, na altura de 800 pés acima do actual nivel do mediterrâneo!

Quando o Etna poude ser visto por nós pelo seu lado meridional, este gigante de lavas apparecia com o seu dorso nú de toda vegetação e de uma côr cinzenta característica, o que formava accentuado contraste com a luxuriante vegetação da sua base oriental.

Apenas o cume do Etna, envolto em densa nevôa, era visível, quando avistamos Syracusa, a antiga e poderosa colonia grega, que desappareceo com Archimedes, o mais illustre dos seus filhos, para seguir a fortuna das armas romanas.

O Ava passou diante de Syracusa veloz em sua carreira. O vento era muito favoravel e fresco, e auxiliava poderosamente o movimento do helice que o deslocava sobre as vagas.

A tarde dobravamos o cabo do Passaro, deixavamos Malta á direita, e perdiamos de vista as terras da Europa; esta parte do Globo a mais importante pelo engenho dos seus filhos, porém menos tradicional do que as regiões que iamos percorrer.


Notas do Wikisource

  1. Antigo nome da cidade de Nápoles.