Ismailia estava tomada por uma extrordinária multidão. Nos largos areais, para além do cais, tinham-se construído acampamentos para os viajantes que não vinham de Alexandria nos navios. Tinham-se improvisado hotéis semelhantes a grandes dormitórios. Havia pequenos vapores ancorados servindo para alojamentos. O aspecto da cidade naquele dia era poderosamente vivo e original.

Os regimentos egípcios tinham acampado junto do lago. Ao centro, num largo espaço que há ao pé do canal de água doce, estavam as tendas para os xeques, que são os chefes das aldeias árabes, ou chefes das tribos do deserto. As tendas abertas por diante deixavam ver os grandes lustres pendentes, os tapetes de Meca e de Damasco, onde se encruzavam as soberbas figuras figuras dos xeques, fumando gravemente o narguilé.

Tinham-se estabelecido barracas enormes, onde, a todo o momento, se serviam a todos os convidados e a todos que entravam, refrescos, vinhos, saladas, e jantares. Havia toda a sorte de jogos, de danças, de músicas. As tribos beduínas tinham acampado perto.

Eu vi uma caravana beduína em descanso no largo dos bazares: tinham cravado no chão duas lanças, e em volta os cavalos e os homens, figuras duramente esculpidas em bronze, altivamente enfaixadas nos albornozes, faziam um grupo estranhamente pitoresco.

As largas ruas estavam cheias de uma multidão ruidosa, colorida, original.

Tinham vindo almeias do Fayoum (província) que debaixo das tendas celebravam as suas misteriosas e estranhas danças. O imperador da Áustria e a imperatriz tinham passeado por Ismailia, montados em dromedários; depois disso as ruas estavam cheias de viajantes, equilibrados sobre as excêntricas selas dos camelos e dos dromedários. Havia por toda a parte tocadores, cantadores, mágicos, fascinadores de serpentes.

Os beduínos formavam danças e lutas, e carreiras de cavalos. Alguns, de pé sobre os dromedários lançados a galope, faziam toda a sorte de destrezas e de equilíbrios, jogando a lança. Tudo isto era acompanhado pelas salvas constantes dos navios, e pelos urras das marinhagens. À noite, a cidade transformou-se em luz. Por todos os largos estavam acesos grandes fogos. Via-se ao fundo do lago, através dos navios iluminados, brilhar fantasticamente a cidade, feita de pontos de luz. Os acampamentos estavam flamejantes. Em todas as tendas dos xeques havia cantos de mulheres árabes acompanhados de darabuca. Os fogos de artifício estalavam por todo o ar. No meio de grandes grupos, entre um círculo de fachos enormes, dançavam as almeias. Em outros círculos alumiados, a multidão abria os olhos diante dos improvisadores árabes. A luz escorria por entre toda aquela multidão, tomada de alegria. Havia sobre a cidade e o lago aquele forte rumor das festas, que é composto dos cantos, das músicas, das vozes, dos aplausos, tudo harmonicamente confundido, e que pela força da sua originalidade arranca o homem para fora da vida vulgar, com irritantes atracções. Tudo isto víamos nós ao atravessar a cidade, nas enormes carruagens que nos levavam ao grande baile de Ismailia, no palácio novo de Ismail-Paxá. O palácio, cercado de jardins, tinha neles uma iluminação de gosto oriental. Havia luzes espalhadas por todos os ramos de árvores, entre as folhas das flores, na terra dos vasos. Sobre a erva estavam desenhados arabescos de luz de um aspecto original. O canal de água doce que corre ao pé estava cheio de barcos iluminados, onde havia cantores árabes que passavam numa perpétua serenata. Ao começo da noite, entre as mesas, os árabes estendiam às vezes a mão, metiam os dedos nos pratos, e afastavam-se comendo desdenhosamente. Nas salas, o baile era apenas uma oscilação sufocada de corpos. O ouro bordado das fardas arranhava os ombros nus, e os enormes sapatos dos xeques do deserto rasgavam os longos vestidos das loretas. Não havia ordem, nem espaço, nem ar, nem alegria. Era brutal e pesado: fatigava. A maior parte da gente dispersou-se pela cidade, a ver as iluminações e as festas populares.

Quando eu saía para ir a um café italiano, em companhia de alguns oficiais ingleses, ver as almeias de Beni-Ironef dançarem a dança da abelha, encontrei Mr. De Lesseps, no peristilo, que procurava ansiosamente o seu paletó.

Mr. De Lesseps é uma figura felgada e nervosa, bigode curto e branco, e dois olhos que faíscam em negro, cheios de inteligência e sinceridade. Tem uma fisionomia e, sobretudo, um sorriso, que revelam tendência para as concepções abstractas, mas firmeza nas dificuldades da vida.

Mr. De Lesseps é diplomata, orador, engenheiro, financeiro e soldado. Tem tudo isto, e esta harmonia de qualidades é o segredo da sua inquebrantável força, e do seu constante triunfo nesta obra do Suez. Foi andando a visitar o deserto líbico, em companhia de Said-Paxá, então vice-rei, que ele resolveu, com apoio de Said, encetar a sua obra: desde então quantas lutas, já com a Inglaterra que intriga contra ele e que o difama, já com a Turquia que lhe tira os seus trabalhadores, já com os capitais que se retraem diante dos seus planos, já com o deserto que contradiz a ciência das suas teorias, já com a cólera que lhe destrói os seus operários, quantas lutas, até que pudesse tranquilamente procurar o seu paletó, numa festa que celebrava o fim de tantos ásperos trabalhos!

Ao meio da noite, quando eu vinha para bordo, as luzes morriam miseravelmente por toda Ismailia e a sombra cobria o lago. Ao outro dia, a grande procissão dos navios saía do largo Timsah, em direcção a Suez. Começava então já a ver-se, ao lado do canal marítimo, o canal de água doce - que vai indo quase paralelamente com ele até Suez. De resto a paisagem começa a ser de uma uniformidade monótona: a fulva vastidão do deserto de ambos os lados do canal. O canal de água doce é uma das maiores obras de Mr. De Lesseps e um dos episódios mais notáveis da perfuração do istmo. Os operários do canal tinham de trabalhar no deserto. A primeira necessidade era a água: um exército de operários não podia subsistir durante muitos anos apenas com água trazida pelas caravanas. Ao princípio, quando as obras estavam junto do lago Mensaleh, tirava-se a água de alguns poços isolados, fazia-se vir da próxima cidade de Damieta, ou destilava-se a água do mar. Mas, À maneira que os trabalhos caminhavam para o centro do istmo, as dificuldades apareciam. Não havia poços, nem água do mar. Damieta estava longe. O tonel de água começava a custar vinte e cinco francos. Demais, como vinha em caravanas, qualquer demora, qualquer transtorno lançava a sede entre os operários, e começavam as confusões de trabalho. As inquietações sobre a água cresciam. Então Mr. De Lesseps resolveu ir ao Nilo, a trinta e cinco léguas, buscar água doce e trazê-la ao deserto por um canal que seguisse uma linha quase paralela ao canal marítimo, costeasse os lagos Amargos, passasse ao pé das montanhas de Djebel, e fosse ter a Suez. O canal seria, assim, para uso dos operários, para a irrigação daqueles terrenos áridos, e para a navegação de pequenos barcos. Nós víamos, com efeito, o canal doce, cheio de velas, cujas pontas aguçadas e brancas saíam acima das margens. Um dos episódios épicos do canal de água doce foi a passagem das dragas. Foi necessário levar aquelas monstruosas máquinas até ao pé dos lagos Amargos, para atacarem as areias do Serapeum. Foram transportadas pelo canal de água doce.

Centenares de homens iam-nas levando à corda, das margens. Mas aquelas enormes máquinas a cada momento encalhavam, voltavam-se, ou, quando o vento era violentamente contrário, faziam força para trás. Para as tirar do lodo, para as impelir, para as equilibrar, eram necessários esforços sobre-humanos, onde sucumbiam muitos valorosos operários. Foi ao anoitecer que chegámos aos largos Amargos.

Toda a esquadra do cortejo ancorou aqui durante a noite. Havia uma lua esplêndida, que enchia o lago de luz, e desenhava vagamente até ao horizonte as ondulações do deserto.