Descobrimento Prodigioso e suas Incalculaveis Consequências para o Futuro da Humanidade/Appresentação

V
APRESENTAÇÃO

Pela aurora do dia primeiro de Junho era de auspiciar um bom dia.

E' verdade que o céo estava aublado, mas dessas nuvens elevadas que no céo de Pariz annunciam com mais certeza o bom tempo do que um levante esplendido ; o vento estava bom e fresco sem chegar a violento.

Na praça da Concordia havia grande movimento de povo desde a noite de 31 de Maio.

De toda a parte viera gente contando ver alguns preparativos, ou indicio do mysterioso acontecimento annunciado para o dia seguinte. Muitos haviam ficado até tarde. Grande numero d'esses individuos que vivem d'industrias desconhecidas, offerecendo lume aos fumantes e apanhando pontas de charutos, depois dos espectaculos foram estacionar na praça da Concordia com a esperança de achar a quem ceder o logar por alguns cobres. Entre as seis e as sete horas da manhã começou a affluir o povo ; pelas oito a classe escolastica. A's nove era tão compacta a multidão na praça,que passou-se ordem para não deixar entrar mais ninguem consentindo que sahisso quem quizesse.

O contagio lavrou por todos como em taes casos acontece ; atraz d'um curioso vem outro. Os que protestaram mais firmemente se não incommodar, foram como que arrastados, e só por verem que a torrente avolumava-se foram avolumal-a mais O povo apinhou-se nos campos Elyseos, no jardim das Tulherias, ponte da Concordia, càes, rua Real, rua de Rivoli e boulevards. A's dez horas era difficil passar pelo boulevard da Magdalena. A's dez e meia custava muito a passar alem da rua da Paz. A's onze horas era impossivel chegar até a rua da Chaussée d'Antin. Nas janellas havia mais gente junta do que comportavam.

A conversação ia animada ; as hypotheses e gracejos corriam d'aqui para alli de bocca em bocca. Principie ! O panno, suba o panno ! Olá da musica gritavam os garotos. As autoridades não deviam permittir, dizia José Prud-homme, que se fizesse agglomerar tanto povo, de um modo verdadeiramente perigoso, e sem dizer porque — Aaah !... exclamava um gaiato apontando para o espaço. E a plebe respondia com hurrahs, assobios e applausos. Houve algumas disputas, mas sem accidente serio. A's onze horas e tres quartos a curiosidade tornou-se mais violenta.

Misturava-se com um tal ou qual terror vago que sente quem espera por uma cousa desconhecida. Cessaram os remoques. Reinou silencio geral e desusado. Nada mais grave do que o silencio das muldidões, solemne, quasi lugubre. Os que tinham relogio estavam a consultal-o e olhal-o de vez em quando. Faltavam cinco minutos para meio dia e nada apparecera ainda na praça da Concordia. Recomeçaram os receios de logro. Lavrava em todos um descontentamento prestes a transformar-se em raiva. Os mais calmos já estavam furiosos, os mais brandos ferozes, pensando terem sido logrados.

O sol sahira d'entre as nuvens cada vez mais raras e brilhava no zemith, n'um espaço azul do céo. De repente ouviram-se gritos : Olhem !... Os melhores olhos tinham avistado um ponto negro muito distante no espaço. O ponto augmentava sensivelmente.Ao cabo de alguns segundos, distinguiram como que uma forma humana descendo a prumo sobre o obelisco. Rompeu uma estrondosa acclamação, quebrando o silencio como o raio fende as nuvens ; ainda repercutia e já se via um homem com o rosto metade encoberto, em pé sobre o obelisco. Novo clamor subiu aos ares por entre os applausos e bravos. O homem tirou o chapéo baixo que trazia, e voltando-se successivamente para os quatro pontos cardeaes, comprimentou a multidão. Tirou depois o relogio e apontou para elle com o dedo ; todos tiraram os seus e olharam : faltava um minuto para meio-dia. Os applausos e gritos redobraram. O homem metteu o relogio na algibeira,e puzeram-se todos a observal-o attentamente.

Estava vestido de preto. Uma especie de casaco ou sobretudo abotoado envolvia-o do pescoço até quasi os joelhos ; as abas prendiam-se á calçapara não fluctuarem ; as pernas e a calça mettidas em grandes botas finas,cujo pé por grande de mais denunciava outro calçado por baixo ; a gola do sobretudo levantada deixava apparecer uma gravata de cachemira branca. O pescoço parecia inchado e como que tolhido de movimentos, como tambem os hombros. Uma cabelleira loura, basta, mas não muito comprida escondia a nuca e as orelhas. Passapilho fechado e bigode mais louros que os cabellos cobriam-lhe as faces, labios e barba.

A parte superior do rosto, coberta por uma meia mascara,como as que se uzam nos bailes mascarados. O chapéo, baixo, e preto como o demais, tinha barbella. Calçava luvas grossas, que pareciam acolchoadas. Via-se que apesar da estação o homem se tinha prevenido contra o frio. A mão esquerda vinha mettida debaixo do sobretudo donde só a tirara para indicar a hora, no seu relogio, e logo a tornara a metter em postura semelhante á que dão ordinariamente a Napoleão 1.º e certos oradores.

Fez um gesto e ao meio dia em ponto subiu verticalmente com a rapidez de uma flexa.

Tendo subido muito alto, parou e começou a pairar por cima do povo descrevendo lentamente um circulo, que ia augmentando em espiral. Parecia estar quasi em pé, um tanto inclinado para traz e com as pernas levemente dobradas. A mão esquerda, trazia-a sempre debaixo da roupa. Depois o eircalo foi diminuindo pouco a pouco, ao mesmo passo que augmentava progressivamente a rapidez do navegante, ou antes nadador aereo, e elle tornava a descer. Chegando um pouco acima da ponta do obelisco, descreveu com rapidez vertiginosa alguns circulos muito pequenos, retomou a primeira attitude e comprimentou de novo a multidão, como fizera da primeira vez.

E' cousa impossivel contar aqui os bravos, applausos,acclamações,gritos, tripudios,chapéos atirados ao ar, etc. Uns pareciam loucos de enthusiasmo. Os mais impressionados limparam lagrimas que não tinham podido conter.

A noticia já tinha voado rapida como a electricidade até os ultimos extremos do povo agglomerado em Pariz. E' um homem no ar ! era o dito que passava de bocca em bocca. Por pouco que o aperto na praça da Concordia não produziu uma suffocação geral. Debalde gritavam as pessoas sensatas, que o homem havia de vir como promettera, e donde estava cada qual o veria. A curiosidade tocara ao delirio e não attendia a nada Os policiaes e guardas de Pariz começavam de recuar cedendo á pressão do povo, apesar de que foram reforçados de tropa de linha quando se vio augmentar a affluencia a tal ponto. O primeiro resultado do prodigioso descobrimento quasi que foi uma hecatombe immensa de gente asphyxiada, esmagada a pés.

Por fortuna o homem aereo não se demorou muito tempo sobre o obelisco. Remontou-se até cerca da altura de um ter andar e metteu-se pela rua Real, passando depois aos boulevards. Seguia com velocidade moderada, pouco mais ou menos á de um bom cavallo a galope, quanto era bastante para que o podessem observar á vontade sem com tudo querer seguil-o, o que causaria na multidão um refluxo temivel. Foi seguindo assim pelos boulevards atė a praça da Bastilha ; acompanhou o curso do Sena até a ponte de Iêna ; chegou ao arco triumphal de l'Etoile, voltou pela avenida dos Campos Elyseos até a praça da Concordia ; percorreu a rua de Revoli até a casa da camara ; foi pelo caes até a ponte do Cambio ; atravessou-a, passou pela Cité ; entrou o boulevard de S. Miguel, indo até o jardim do Luxembourg, onde fez algumas evoluções : percorreu os boulevards exteriores até os Invalidos e arripiando o curso do Senna até a ponte de Solferino, veiu peneirar por sobre os castanheiros do jardim das Tulherias.

Foi isto sufficiente para acalmar os excessos e em botar o aguçamento da curiosidade publica. Comprehenderam que era impossivel accompanhar aquellas evoluções, e que, ficando cada um em seu logar tinha mais probabilidade de tornar a ver o que aliás já tinha visto. A multidão em si augmentou, porque em casa não ficou pessoa sã, salvo as que se acotovelavam nas janellas das ruas principaes ; mas espalhando-se mais, o aperto diminuiu ; com isso ninguem perdeu, pois cada qual poude ver bem a gosto todos os incidentes d'esse inaudito espectaculo.

No jardim das Tulherias o nosso homem baixou sobre um castanheiro e espantou dois pombos, pondo-se então a perseguil-os. Bem se via que ia mais rapido do que elles, mas parecia não poder voltar-se com tanta facilidade para acompanhar os zig zags que as aves espantadas descreviam. Notaram tambem que só tentava apanhal-as com a mão direita, conservando a esquerda sempre debaixo do casaco. O povo divertia-se immenso em acompanhar as peripecias d'essa caçada de nova especie. D'ahi a pouco estava seguro um pombo e pouco depois o outro. E' bem de avaliar que de applausos e gritos não choveram. O caçador victorioso foi assentar-se no braço horisontal da estatua de Alexandre, perto do tanque fronteiro ao castello ; desembaraçou a esquerda, tirou a luva, puxou do bolso um cordãosinho e atou n'um so molho os quatro pés dos pombos. Depois calçou as luvas, tornou a pôr a mão esquerda na posição ordinaria, levantou o vôo e veiu pairar a um metro acima de uma elegante senhora a cujos pés deixou cahir com galanteria a presa. Continuou o passeio por cima do Senna, dos passeios publicos, boulevards e ruas largas, mas com marcha variada e irregular. Subia, descia, tomava ora para a direita, ora para a esquerda,descrevia espiraes umas ascendentes, outras descendentes,já conservando-se quasi immovel, espectaculo ainda mais admirado do que as evoluções rapidas, já correndo em linha recta com velocidade incrivel. Cerca do Chateau d'Eau,apanhou por divertimento uma andorinha a voar e outra na praça do Pantheon. No jardim das plantas desceu com o maior desplante aos terraços reservados, colheu flôres e formou um ramalhête antes que os guardas, hesitando sobre o que deviam fazer, tivessem tido tempo de tentar impedir-lh'o.

Pouco depois o offerecia a um grupo de moças que o estavam observando d'uma agua furtada do boulevard de Sebastopol. A mais desembaraçada, mais prompta em recebe-lo de que suas companheiras, agradeceu com o riso mais jovial e um atrevido beijo atirado com a ponta dos dêdos. No café do Grand-Balcon no boulevard dos Italianos estava reunida muita gente : chegou-se de repente ao balcão, tomou um cópo cheio de cerveja, subio a um metro ou dois, esvasiou-o d'um trago, tornou a colloca-lo onde estava, atirou á mesa um luiz, comprimentou e retirou-se. Na praça do Palais Royal, pedio com um gesto lume a um individuo que fumava na janella d'um terceiro andar ; parou, peneirou um momento, tirou do bolso um charuto, approximou-se, tomou com toda delicadesa o do individuo, restituiu depois de ter accendido o seu, comprimentou e agradeceu e tornou a partir fumando. Foi assentar-se para acabar o charuto no pára-raio da torre meridional de Notre-Dame, pelo que disseram os gaiatos que não devia estar muito à vontade. Os homens serios responderam que não se sabia que couraça traria escondida, e que, tendo a faculdade de sustentar-se no ar, não devia fazer peso sobre a ponta. Outros disseram que o tinham visto collocar um objecto qualquer sobre ella, sem duvida para que lhe não furasse a roupa.

O que parecia ainda mais admiravel é que, depois de tantas idas e voltas ainda, não eram quatro horas. Era tempo de apparecerem as folhas da tarde. E' bem de ver que não podiam fallar d'outra cousa senão do acontecimento que trazia toda a gente de Pariz em desassocego.

Tinham-se decidido a submetter-se á adversidade, e procurado resalvar com algumas capciosidades a falsa posição em que os collocara sua incredulida le passada. Só o Universel tinha o direito de cantar victoria.

Toda a redacção, reunida no escriptorio, proclamava enthusiasmada o triumpho do seu redactor principal. Este trabalhava ordinariamente n'um gabinete elegante e pequeno, ao qual precedia a bibliotheca e a sala da redacção, onde havia uma mesa em torno da qual se assentavam muitos redactores. Sendo de canto a casa, ficava o gabinete no segundo andar e dava para duas ruas largas. Logo que o jornal estava cheio, conversava-se. N'este dia, pouco antes das quatro horas, conversava o redactor principal no seu gabinete com duas ou tres pessoas, e, pelas portas abertas, com os collaboradores reuni los na bibliotheca e sala da redacção. De repente ouviu-se um grito : Là està elle ! là vai ! Correram todos às janellas e viram o homem aereo descendo em espiral. Trazia na mão um maço de papeis. Chegou-se à janella, entregou os papeis em mão do redactor, que lh'a estendia, saudou e foi-se.

Foi visto continuando as suas evoluções até quasi às cinco horas. Tornou a vir descançar no obelisco, tirou o relogio e mostrou-o à multidão compacta que o esperava na praça. Verificaram faltarem cinco minutos para cinco horas. Assentou-se no alto do obelisco como quem espera. Poucos segundos antes das cinco poz-se em pé, saudou nas quatro direcções dos ventos, subiu verticalmente ás cinco horas em ponto e desappareceu no espaço com prodigiosa rapidez.

Estava feita a appresentação. Todos concordaram em que foi o que promettera e muito mais do que se esperava.