Descobrimento Prodigioso e suas Incalculaveis Consequências para o Futuro da Humanidade/Discussão

X


DISCUSSÃO

Antes do pedido do Universel, já se tinham feito muitas reflexões acerca d'este descobrimento extraordinario. Abundaram os commentarios desde a apresentação, e a cada nova experiencia choviam cada vez mais. A poesia o tomára á sua conta. O obelisco de Luxor, monumento unico no mundo, que symbolisa o mais remoto passado como o futuro o mais esplendido, tornou-se o thema classico das odes e cantatas. Como que tinha havido concordata para pedirem todos á uma que fosse substituido por outro o seu pedestal, que tivesse gravadas a data para sempre immorredoura do 1º de Junho, e menção do memoravel acontecimento. Publicaram-se acerca do assumpto em voga obras notaveis e um chuveiro de inepcias. As folhas e folhétos ressabiam geralmente ao enthusiasmo e admiração publica. Todavia, d'envolta com esses sentimentos lavrava uma opposição tacita a crescer com a reflexão e fomentada ás occultas pelo interesse das potencias que se viam ameaçadas.

A ruina das estradas de ferro era facto consumado. Os milhares empregados n'essas gigantescas emprezas iam desapparecer d'um momento para outro deixando a fortuna dos accionistas mal parada, privando de pão a um mundo de empregados, reduzindo a nada a posição de seus altos funccionarios, atirando a um canto sem mais prestimo um immenso material e arrastandona torrente da catastrophe centenares de industrias accessorias.

A marinha me cante com todas as suas respectivas industrias ia ter a mesma sorte. Não havia apparelhador ou constructor de navios que se não visse perdido. Todas as emprezas de transportes maritimos e terrestres sentiam iguaes temores. Até a marinha de guerra ia ser supprimida d'um momento para outro, ficando seus officiaes e marinheiros com a carreira perdida. Só lhes restava o recurso de atirar-se tambem a navegação aerea que apenas utilisaria um pessoal muito limitado, ou receber do thesouro publico uma pensão dada como esmola, sem mais esperança de accesso, à vista d'isso impossivel. Não mais se fariam estradas nem pontes :—para os peões bastavam caminhos e pontilhões ; nem mais canaes, excepto para abastecimento d'agua.

Acabando-se a marinha, acabavam-se os portos portanto acabavam-se os engenheiros, os conductores de pontes e calçadas, os administradores d'obras e os operarios empregados nos movimentos de terra. O uso do carvão de pedra ficava limitado ás cosinhas, desapparecendo essa importante industria. Até os fabricantes de carros, os carpinteiros emprezarios de omnibus, cocheiros, carroceiros, negociantes e creadores de cavallos estavam todos ameaçados. O commercio do mundo inteiro ia passar por uma enorme transformação. Talvez que no futuro o desenvolvimento immenso que ia ter fosse um beneficio ; mas antes que esse chegasse, iam mudar-se todas as relações, deslocar-se os centros commerciaes, todas as alfandegas e impostos urbanos iam ser abolidos de facto, o que iria matando uma infinidade de industrias incapazes de supportar tal exagêro da liberdade de commercio, comprometteria as rendas publicas e supprimiria os meios de vida de muitos empregados ; não fallando na revolução industrial que operaría o uso para as maquinas d'uma nova força motriz que arruinava todas as fabricas existentes. Em resumo, o commercio e a industria, no pé em que se achavam constituidos, iam ser radicalmente arruinados no principio, em bem da posteridade, se não fosse em mal.

Não eram só os interesses materiaes que tendiam a colligar-se contra o invento : Os partidos politicos viam-n'o com olhos desconfiados. O primeiro impeto dos liberaes foi para applaudir com jubilo, como portador da liberdade ao mundo, da liberdade obsoluta e sem tropeços. Mas entraram logo após a duvidar si não seria, ao envez d'isso, formidavel instrumento para a tyrannia. O povo não podia levar a vida no ar para livrar-se dos ataques dos despotas, ao passo que estes poderiam organisar exercitos aereos e monopolisar esse modo de locomoção em puro proveito seu, por meio de leis rigorosas e penas severas. A attitude tomada pelo inventor contribuia para prevalecerem sobre a sympathia a antypathia e a desconfiança. Fallára das autoridades com um respeito de máo agouro. Parecia disposto a revelar o segredo ao governo assim que este houvesse tomado as precauções necessarias para monopolisal-o. Não mostrava quasi desejo de o tornar util à liberdade.

Temores contrarios trariam indecisos aos governistas e os autoritarios. Mas desses havia que não hesitavam em considerar invento uma inspiração de Satanaz, prestes a desenfrear pelo mundo os mais abominaveis crimes e toda a casta de desgraças, contra os quaes seriam poucas todas as penas divinas e humanas.

Bem se vê que fallamos de um certo catholicismo, tal qual era comprehendido nessa remota epocha por alguns. Em rigor podia-se admittir que os governos e a sociedade achariam meios de livrar-se da anarchia material e as desordens externas ; mas as sãs doutrinas ficariam atadas de pés e mãos e sem nenhuma protecção contra a anarchia intellectual, por tantos outros motivos temivel. A liberdade de pensamento, a liberdade de imprensa, a liberdade de propaganda, essas cousas do demonio, tinham um instrumento invencivel. A imprensa não tinha feito a decima parte do mal que ia produzindo a locomoção aerea. Da imprensa tinham podido se defender fosse como fosse emquanto havia fronteiras e possibilidade de policia ; mas agora, como se livrariam do commercio livre de ideias travado pelo espaço com mais facilidade ainda que o commercio das mercadorias? O Index, a inquisição, a repressão dos abusos da imprensa, os regulamentos da profissão de impressor eram armas enferrujadas, curiosidades de antiquario, inuteis contra a liberdade de pensamento como os escudos dos gregos e romanos contra a metralha. Seria o mesmo que lançar o anathema contra a liberdade de andar. O poder dos factos supplantaria as mais solemnes excommunhões, e a religião estava perdida, salvo si o aeronauta fosse o Antichristo em pesssoa e sua invenção annunciasse o fim domundo, o que não era para admirar.

Os clericaes estavam tanto mais dispostos a adoptar essas ideias quanto desconfiavam que o inventor anonymo era um descrente, por certas circumstancias observadas com os olhos da prevenção. Escolhera, por exemplo, sem necessidade alguma o domingo para fazer as suas experiencias publicas, dando assim prova de que bem pouco se lhe dava não só de menosprezar por si os deveres religiosos, como de distrahir delles o povo. E aconteceu n'esse anno cahir justamente no dia 1 de Junho a festa de Petencostes, da qual nem ao menos fallou por alto no seu annuncio. Não pediu para a sua barca as bençãos da igreja, nem reservou lugar para um dos seus magnatas, como obrara com as autoridades, as sciencias e até com a imprensa. Accusavam-n'o do irreverente desplante com que, sem o minimo respeito ao lugar santo, se asssentara fumando no páraraio de Notre-Dame. Não havia duvida, era um livre pensador, e não se podia hesitar em consideral-o inimigo e seu invento um flagello.

A tudo isto se vinham juntar certos sentimentos menos-nobres, não declarados mas que nem por isso deixavam de concorrer á socapa para avigorar essas differentes causas de receio e antipatia. Incommodava que o inventor se conservasse com tanta insistencia incognito. Increpavam-no zombar da gloria como uma moça garrida zomba do amôr, e mercadejar demasiado com as suas revelações. Queriam-lhe mal porque lhe não podiam descobrir o segredo apesar das mais aturadas pesquizas em que lidavam com mais ou menos mysterio os sabios, os inventores e os homens practicos da industria. Sentiam-se humilhados pela insurportavel superioridade que conservava esse desconhecido. Tanto poder em um homem, em cujas mãos se via o futuro do mundo, custava como uma usurpação. Na terra não havia pessoa por mais alto collocada cuja importancia não fosse offuscada pela delle. Era o centro, centro unico dos olhares do Universo.

Nada obstante, ninguem se attrevia a affrontar abertamente o sentimento do povo em quem a admiração estava superior a todo o mais : Os espectaculos a que tinha assistido produziram profunda impressão. Começaram usando de insinuação. As consequencias provaveis da invenção foram estudadas por todas as faces. Não se lhe podia escurecer a grandesa. mas abarrotaram-na de mas e porém, de objecções e apprehensões. Veio turvar a admiração do povo um verdadeiro terror. Quando mais se pensava, mais difficil parecia futurar das sendas em que ia entrar o mundo. Seria o caminho da perdição? Não iria recomeçar o imperio da violencia cem vezes peior do que nos peiores dias da idade media ? Não estaria a humanidade prestes a afundar-se em um medonho cahos ?

O navegante aereo não se metteu n'essa discussão; mas o Universel, cujos redactores tinham fé profunda, fez foente com galhardia aos adversarios do grande descobrimento. Arrancou a mascara aos interesses disfarçados que o assaltavam. Convenceu a maioria dos liberaes mostrando-lhe que d'elle só podia resultar progresso, e que nhenhuma potencia do mundo poderia monopolisa-lo, logo que fosse divulgado; forçou os ultra-clericaes a se declararem abertamente adversarios e appresentarem seus argumentos, que tiveram mediocre acceitação ; provou que a guerra seria impossivel ; que as nações se confundiriam de modo que viriam a formar um só povo ; que as riquesas de cada paiz se espalhariam por todo globo. vendo a facilidade de emigrar para os vastos territorios incultos e ferteis acabar com o pauperismo e augmentar o bem geral ; a mesmo passo que a propagação da instrucção e o commercio das ideias viria a acabar com a ignorancia e barbaria. Proclamou, sustentou e deffendeu este axioma : que nunca do bem sahe o mal, do progresso a desgraça, nem d'um invento catastrophes. Pelo só facto, dizia elle, de que Deus, inspira ao homem a ideia d'um grande descobrimento, devemos acceita-lo com tanta fé quanto reconhecimento, certos de que estava escripto no livro do destino da humanidade e de que todo o progresso é para ella uma nova de paz e felicidade.

Teve em resposta de um de seus artigos um escripto dos mais extravagantes. Vinha d'uma folha, cujo redactor principal era o homem mais excentrico da imprensa parisiense, que tratava todos os assumptos pelo lado paradoxal, sustentando com grande divertimento do publico as theses mais absurdas, não obtendo adeptos, é certo, mas tão habil no emprego da capciosidade que era sempre o ultimo a responder e tenha invariavelmente por si os amadores da galhofa.

Foi este o artigo que publicou acerca da locomoção aerea.