NA CORTE
Uma sala em casa de Pedro Alves
CENA I
editarClara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Ora, não convém por modo algum que a mulher de um deputado ministerialista vá à partida de um membro da oposição. Em rigor, nada há de admirar nisso. Mas o que não dirá a imprensa governista! O que não dirão os meus colegas da maioria! Está lendo?
CLARA - Estou folheando este álbum.
PEDRO ALVES - Nesse caso, repito-lhe que não convém...
CLARA - Não precisa, ouvi tudo.
PEDRO ALVES (levantandose) - Pois aí está; fique com a minha opinião.
CLARA - Prefiro a minha.
PEDRO ALVES - Prefere...
CLARA - Prefiro ir à partida do membro da oposição.
PEDRO ALVES - Isso não é possível. Oponho-me com todas as forças.
CLARA - Ora, veja o que é o hábito do parlamento! Opõe-se a mim, como se eu fosse um adversário político. Veja que não está na câmara, e que eu sou mulher.
PEDRO ALVES - Mesmo por isso. Deve compreender os meus interesses e não querer que seja alvo dos tiros dos maldizentes. Já não lhe falo nos direitos que me estão confiados como marido...
CLARA - Se é tão aborrecido na câmara como é cá em casa, tenho pena do ministério e da maioria.
PEDRO ALVES - Clara!
CLARA - De que direitos me fala? Concedo-lhe todos quantos queira, menos o de me aborrecer; e privar-me de ir a esta partida, é aborrecer-me.
PEDRO ALVES - Falemos como amigos. Dizendo que desistas do teu intento, tenho dois motivos: um político e outro conjugal. Já te falei do primeiro.
CLARA - Vamos ao segundo.
PEDRO ALVES - O segundo é este. As nossas primeiras vinte e quatro horas de casamento, passaram para mim rápidas como um relâmpago. Sabes por que? Por que a nossa lua de mel não durou mais do que esse espaço. Supus que, unindo-te a mim, deixasses um pouco a vida dos passeios, dos teatros, dos bailes. Enganei-me; nada em teus hábitos; eu posso dizer não me casei para mim. Fui forçado a acompanhar-te por toda a parte, ainda que isso me custasse grande aborrecimento.
CLARA - E depois?
PEDRO ALVES - Depois, é que esperando ver-te cansada dessa vida, reparo com pesar que continuas na mesma e muito longe ainda de a deixar.
CLARA - Conclusão: devo romper com a sociedade e voltar a alongar as suas vinte quatro horas de lua de mel, vivendo beatificamente ao lado um do outro, debaixo do teto conjugal...
PEDRO ALVES - Como dois pombos.
CLARA - Como dois pombos ridículos! Gosto de ouvi-lo com essas recriminações. Quem o atender, supõe que se casou comigo pelos impulsos do coração. A verdade é que me esposou por vaidade, e que quer continuar essa lua de mel, não por amor, mas pelo susto natural de um proprietário que receia perder um cabedal precioso.
PEDRO ALVES - Oh!
CLARA - Não serei um cabedal precioso?
PEDRO ALVES - Não digo isso. Protesto, sim, contra as tuas conclusões.
CLARA - O protesto é outro hábito do parlamento! Exemplo às mulheres futuras do quanto, no mesmo homem, fica o marido suplantado pelo deputado.
PEDRO ALVES - Está bom, Clara, concedo-te tudo.
CLARA (levantando-se) - Ah! vou fazer cantar o triunfo!
PEDRO ALVES - Continua a divertir-te como for de teu gosto.
CLARA - Obrigada!
PEDRO ALVES - Não se dirá que te contrariei nunca.
CLARA - A história há de fazer-te justiça.
PEDRO ALVES - Acabemos com isto. Estas pequenas rixas azedam-me o espírito, e não lucramos nada com elas.
CLARA - Acho que sim. Deixe de ser ridículo, que eu continuarei nas mais benévolas disposições. Para começar, não vou à partida da minha amiga Carlota. Está satisfeito?
PEDRO ALVES - Estou.
CLARA - Bem. Não se esqueça de ir buscar minha filha. É tempo de apresentá-la à sociedade. A pobre Clarinha deve estar bem desconsolada. Está moça e ainda no colégio. Tem sido um descuido nosso.
PEDRO ALVES - Irei buscá-la amanhã.
CLARA - Pois bem. (Sai).
CENA II
editarPedro Alves e um criado
PEDRO ALVES - Safa! que maçada!
O CRIADO - Está aí uma pessoa que
quer lhe falar.
PEDRO ALVES - Faze-a entrar.
CENA III
editarPedro Alves, Luiz de Mello
PEDRO ALVES - Que vejo!
LUIZ - Luiz de Mello, lembra-se?
PEDRO ALVES - Muito. Venha um abraço! Então como está? Quando chegou?
LUIZ - Pelo último paquete.
PEDRO ALVES - Ah! não li nos jornais.
LUIZ - O meu nome é tão vulgar que facilmente se confunde com os outros.
PEDRO ALVES - Confesso que só agora sei que está no Rio de Janeiro. Sentemo-nos. Então andou muito pela Europa?
LUIZ - Pela Europa quase nada; a maior parte do tempo gastei em atravessar o Oriente.
PEDRO ALVES - Sempre realizou a sua idéia?
LUIZ - É verdade, vi tudo o que a minha fortuna podia oferecer aos meus instintos artísticos.
PEDRO ALVES - Que de impressões havia de ter! muito turco, muito árabe, muita mulher bonita, não? Diga-me uma coisa, há também ciúmes por lá?
LUIZ - Há.
PEDRO ALVES - Contar-me-á a sua viagem por extenso.
LUIZ - Sim, com mais descanso. Está de saúde a Sra. D. Clara Alves?
PEDRO ALVES - De perfeita saúde. Tenho muito que lhe dizer respeito ao que se passou depois que se foi embora.
LUIZ - Ah!
PEDRO ALVES - Passei estes cinco anos no meio da mais completa felicidade. Ninguém melhor saboreou as delícias do casamento. A nossa vida conjugal pode-se dizer que é um céu sem nuvens. Ambos somos felizes, e ambos nos desvelamos por agradar um ao outro.
LUIZ - É uma lua-de-mel sem ocaso.
PEDRO ALVES - E lua cheia.
LUIZ - Tanto melhor! Folgo de vê-los felizes. A felicidade na família é uma cópia, ainda que pálida, da bem-aventurança celeste. Pelo contrário, os tormentos domésticos representam na terra o purgatório.
PEDRO ALVES - Apoiado!
LUIZ - Por isso estimo que acertasse com a primeira.
PEDRO ALVES - Acertei. Ora, do que eu me admiro não é do acerto, mas do modo por que de pronto me habituei à vida conjugal. Parece-me incrível. Quando me lembro da minha vida de solteiro, vida de borboleta, ágil e incapaz de pousar definitivamente sobre uma flor...
LUIZ - A coisa explica-se. Tal seria o modo por que o enredaram e pregaram com o competente alfinete no fundo desse quadro chamado lar doméstico!
PEDRO ALVES - Sim, creio que é isso.
LUIZ - De maneira que hoje é pelo casamento?
PEDRO ALVES - De todo o coração.
LUIZ - Está feito, perdeu-se um folgazão, mas ganhou-se um homem de bem.
PEDRO ALVES - Ande lá. Aposto que também tem vontade de romper a cadeia do passado?
LUIZ - Não será difícil.
PEDRO ALVES - Pois é o que deve fazer.
LUIZ - Veja o que é o egoísmo humano. Como renegou da vida de solteiro, quer que todos professem a religião do matrimônio.
PEDRO ALVES - Escusa moralizar.
LUIZ - É verdade que é uma religião tão doce!
PEDRO ALVES - Ah!... Sabe que estou deputado!
LUIZ - Sei e dou-lhe os meus parabéns.
PEDRO ALVES - Alcancei um diploma na última eleição. Na minha idade ainda é tempo de começar a vida política, e nas circunstâncias eu não tinha outra a seguir mais apropriada. Fugindo às antigas parcialidades políticas, defendo os interesses do distrito que represento, e como o governo mostra zelar esses interesses, sou pelo governo.
LUIZ - É lógico.
PEDRO ALVES - Graças a esta posição independente, constituí-me um dos chefes da maioria da câmara.
LUIZ - Ah! ah!
PEDRO ALVES - Acha que vou depressa! Os meus talentos políticos dão razão da celeridade da minha carreira. Se eu fosse a nulidade, nem alcançaria um diploma. Não acha!
LUIZ - Tem razão...
PEDRO ALVES - Por que não tenta a política!
LUIZ - Porque a política é uma vocação, e quando não é vocação é uma especulação. Acontece muitas vezes que, depois de ensaiar diversos caminhos para chegar ao futuro, depara-se finalmente com o da política para o qual convergem as aspirações íntimas. Comigo não se dá isso. Quando mesmo o encontrasse juncado de flores, passaria por ele para tomar outro mais modesto. Do contrário, seria fazer política de especulação.
PEDRO ALVES - Pensa bem.
LUIZ - Prefiro a obscuridade ao remorso que me ficaria de representar um papel ridículo.
PEDRO ALVES - Gosto de ouvir falar assim. Pelo menos é franco e vai logo dando o nome às coisas. Ora, depois de uma ausência de cinco anos parece que há vontade de passar algumas horas juntos, não? Fique para jantar conosco.
LUIZ - Fico, mas vou antes deixar um cartão de visita à casa do seu vizinho comendador. Já volto.
CENA IV
editarClara, Pedro Alves, Luiz
PEDRO ALVES - Clara, aqui está um velho amigo que não vemos há cinco anos.
CLARA - Ah! o Sr. Luiz de Mello!
LUIZ - Em pessoa, minha senhora.
CLARA - Seja muito bem vindo! Causa-me uma surpresa agradável.
LUIZ - V. Excia. honra-me.
CLARA - Venha sentar-se. O que nos conta?
LUIZ (conduzindo-a para uma cadeira) - Para contar tudo fora preciso um tempo interminável.
CLARA - Cinco anos de viagem!
LUIZ - Vi tudo quanto se pode ver nesse prazo. Diante de V. Excia. está um homem que acampou ao pé das pirâmides.
CLARA - Oh!
PEDRO ALVES - Veja isto!
CLARA - Contemplado pelos quarenta séculos!
PEDRO ALVES - E nós que o fazíamos a passear pelas capitães da Europa.
CLARA - É verdade, não suponhamos outra coisa.
LUIZ - Fui comer o pão da vida errante dos meus camaradas árabes. Boa gente! Podem crer que deixei saudades de mim.
CLARA - Admira que entrasse no Rio de Janeiro com esse lúgubre vestuário da nossa prosaica civilização. Devia trazer calça larga, alfange e burnou. Nem ao menos burnou! Aposto que foi Kadi?
LUIZ - Não, minha senhora; só os filhos de Islã têm direito a esse cargo.
CLARA - Está feito. Vejo que sacrificou cinco anos, mas salvou a sua consciência religiosa.
PEDRO ALVES - Teve saudades de cá?
LUIZ - À noite, na hora de repouso, lembrava-me dos amigos que deixara, e desta terra onde vi a luz. Lembrava-me do Club, do Teatro Lírico, de Petrópolis e de todas as nossas distrações. Mas vinha o dia, voltava-me eu à vida ativa, e tudo desvanecia-se como um sonho amaro.
PEDRO ALVES - Bem lhe disse eu que não fosse.
LUIZ - Por que? Foi a idéia mais feliz da minha vida.
CLARA - Faz-me lembrar o justo de que fala o poeta de Algiato, que entre rodas de navalhas diz estar em um leito de rosas.
LUIZ - São versos lindíssimos, mas sem aplicação ao caso atual. A minha viagem foi uma viagem de artista e não de peralvilho; observei com os olhos do espírito e da inteligência. Tanto basta para que fosse uma excursão de rosas.
CLARA - Vale então a pena perder cinco anos?
LUIZ - Vale.
PEDRO ALVES - Se não fosse o meu distrito sempre quisera ir ver essas coisas de perto.
CLARA - Mas que sacrifício! Como é possível trocar os conchegos do repouso e da quietação pelas aventuras de tão penosa viagem?
LUIZ - Se as coisas boas não se alcançassem à custa de um sacrifício, onde estaria o valor delas? O fruto maduro ao alcance da mão do bem-aventurado a quem as huris embalam, só existe no paraíso de Maomé.
CLARA - Vê-se que chega de tratar com árabes?
LUIZ - Pela comparação? Dou-lhe outra mais ortodoxa: o fruto provado por Eva custou-lhe o sacrifício do paraíso terrestre.
CLARA - Enfim, ajunte exemplo sobre exemplo, citação sobre citação, e ainda assim não me fará sair dos meus cômodos.
LUIZ - O primeiro passo é difícil. Dado ele, apodera-se da gente um furor de viajar, que eu chamarei febre de locomoção.
CLARA - Que se apaga pela saciedade?
LUIZ - Pelo cansaço. E foi o que me aconteceu: parei de cansado. Volto a repousar com as recordações colhidas no espaço de cinco anos.
CLARA - Tanto melhor para nós.
LUIZ - V. Excia. honra-me.
CLARA - Já não há medo de que o pássaro abra de novo as asas.
PEDRO ALVES - Quem sabe?
LUIZ - Tem razão; dou por findo o meu capítulo de viagem.
PEDRO ALVES - O pior é não querer abrir agora o da política. A propósito: são horas de ir para a câmara; há hoje uma votação a que não posso faltar.
LUIZ - Eu vou fazer uma visita na vizinhança.
PEDRO ALVES - À casa do comendador, não é? Clara, o Sr. Luiz de Mello faz-nos a honra de jantar conosco.
CLARA - Ah! quer ser completamente amável.
LUIZ - V. Excia. honra-me sobre maneira... (a Clara) Minha senhora! (a Pedro Alves) Até logo, meu amigo!
CENA V
editarClara, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Ouviu como está contente? Reconheço que não há nada para curar uma paixão do que seja uma viagem.
CLARA - Ainda se lembra disso?
PEDRO ALVES - Se me lembro!
CLARA - E teria ele paixão?
PEDRO ALVES - Teve. Posso afiançar que a participação do nosso casamento causou-lhe a maior dor deste mundo.
CLARA - Acha?
PEDRO ALVES - É que o gracejo era pesado demais.
CLARA - Se assim é, mostrou-se generoso, porque mal chegou, já nos vem visitar.
PEDRO ALVES - Também é verdade. Fico conhecendo que as viagens são um excelente remédio para curar paixões.
CLARA - Tenha cuidado.
PEDRO ALVES - Em quê?
CLARA - Em não soltar alguma palavra a esse respeito.
PEDRO ALVES - Descanse, porque eu, além de compreender as conveniências, simpatizo com este moço e agradam-me as suas maneiras. Creio que não há crime nisto, pelo que se passou há cinco anos.
CLARA - Ora, crime!
PEDRO ALVES - Demais, ele mostrou-se hoje tão contente com o nosso casamento, que parece completamente estranho a ele.
CLARA - Pois não vê que é um cavalheiro perfeito? Obrar de outro modo seria cobrir-se de ridículo.
PEDRO ALVES - Bem, são onze horas, vou para a câmara.
CLARA (da porta) - Volta cedo?
PEDRO ALVES - Mal acabar a sessão. O meu chapéu? Ah! (vai buscá-lo a uma mesa. Clara sai). Vamos lá com esta famosa votação.
CENA VI
editarLuiz, Pedro Alves
PEDRO ALVES - Oh!
LUIZ - O comendador não estava em casa, lá deixei o meu cartão de visita. Aonde vai?
PEDRO ALVES - À câmara.
LUIZ - Ah!
PEDRO ALVES - Venha comigo.
LUIZ - Não se pode demorar alguns minutos?
PEDRO ALVES - Posso.
LUIZ - Pois conversemos.
PEDRO ALVES - Dou-lhe meia hora.
LUIZ - Demais o seu boleeiro dorme tão a sono solto que é uma pena acordá-lo.
PEDRO ALVES - O tratante não faz outra coisa.
LUIZ - O que lhe vou comunicar é grave e importante.
PEDRO ALVES - Não me assuste.
LUIZ - Não há de quê. Ouça, porém. Chegado há três dias, tive eu tempo de ir ontem mesmo a um baile. Estava com sede de voltar à vida ativa em que me eduquei, e não perdi a oportunidade.
PEDRO ALVES - Compreendo a sofreguidão.
LUIZ - O baile foi na casa do colégio da sua enteada.
PEDRO ALVES - Minha mulher não foi por causa de um leve incômodo. Dizem que esteve uma bonita função.
LUIZ - É verdade.
PEDRO ALVES - Não achou a Clarinha uma bonita moça?
LUIZ - Se a achei bonita? Tanto que venho pedi-la em casamento.
PEDRO ALVES - Oh!
LUIZ - De que se admira? Acha extraordinário?
PEDRO ALVES - Não, pelo contrário, acho natural.
LUIZ - Faço-lhe o pedido com franqueza; peço-lhe que responda com igual franqueza.
PEDRO ALVES - Oh! da minha parte a resposta é toda afirmativa.
LUIZ - Posso contar com igual resposta da outra parte?
PEDRO ALVES - Se houver dúvida, aqui estou eu para pleitear a sua causa.
LUIZ - Tanto melhor.
PEDRO ALVES - Tencionávamos trazê-la amanhã para casa.
LUIZ - Graças a Deus! Cheguei a tempo.
PEDRO ALVES - Com franqueza, causa-me com isso um grande prazer.
LUIZ - Sim?
PEDRO ALVES - Confirmaremos pelos laços de parentesco os vínculos da simpatia.
LUIZ - Obrigado. O casamento é contagioso, e a felicidade alheia é um estímulo. Quando ontem saí do baile trouxe o coração aceso, mas nada tinha ainda assentado de definitivo. Porém tanto lhe ouvi falar de sua felicidade que não pude deixar de pedir-lhe me auxilie no intento de ser também feliz.
PEDRO ALVES - Bem lhe dizia eu há pouco que havia de me acompanhar os passos.
LUIZ - Achei essa moça, que apenas sai da infância, tão simples e tão cândida, que não pude deixar de olhála com o gênio benfazejo da minha sorte futura. Não sei se ao meu pedido corresponderá a vontade dela, mas resigno-me às conseqüências.
PEDRO ALVES - Tudo será feito a seu favor.
LUIZ - Eu mesmo irei pedi-la à Sra. Clara. Se por ventura encontrar oposição, peço-lhe então que interceda por mim.
PEDRO ALVES - Fica entendido.
LUIZ - Hoje, que volto ao repouso, creio que me fará bem a vida pacífica, no meio dos afagos de uma esposa terna e bonita. Para que o pássaro não torne a abrir as asas, é preciso dar-lhe gaiola e uma linda gaiola.
PEDRO ALVES - Bem; eu vou para a câmara, e volto apenas acabada a votação. Fique aqui e exponha a sua causa à minha mulher que o ouvirá com benevolência.
LUIZ - Dá-me esperanças?
PEDRO ALVES - Todas. Seja firme e instante.
CENA VII
editarClara, Luiz
LUIZ - Parece-me que vou entrar em uma batalha.
CLARA - Ah! não esperava encontrá-lo.
LUIZ - Estive com o Sr. Pedro Alves. Neste momento foi ele para a câmara. Ouça: lá partiu o carro.
CLARA - Conversaram muito?
LUIZ - Alguma coisa, minha senhora.
CLARA - Como bons amigos?
LUIZ - Como excelentes amigos.
CLARA - Contou-lhe a sua viagem?
LUIZ - Já tive a honra de dizer a Vossa Excia. que a minha viagem pede muito tempo para ser narrada.
CLARA - Escreva-a então. Há muito episódio?
LUIZ - Episódios de viagem, tão somente, mas que trazem sempre a sua novidade.
CLARA - O seu escrito brilhará pela imaginação, pelos belos achados da sua fantasia.
LUIZ - É o meu pecado original.
CLARA - Pecado?
LUIZ - A imaginação.
CLARA - Não vejo pecado nisso.
LUIZ - A fantasia é um vidro de cor, um óculo brilhante, porém, mentiroso...
CLARA - Não me lembra de lhe ter dito isso.
LUIZ - Também eu não digo que Vossa Excia. mo tenha dito.
CLARA - Faz mal em vir do deserto, só para recordar algumas palavras que me escaparam há cinco anos.
LUIZ - Repeti-as como de autoridade. Não eram a sua opinião?
CLARA - Se quer que lhe minta, respondo afirmativamente.
LUIZ - Então deveras vale alguma coisa elevar-se acima dos espíritos vulgares, e ver a realidade das coisas pela porta da imaginação?
CLARA - Se vale! A vida fora bem prosaica se lhe não emprestássemos cores nossas e não a vestíssemos à nossa maneira.
LUIZ - Perdão, mas...
CLARA - Pode averbar-me de suspeita, está no seu direito. Nós outras, as mulheres, somos as filhas da fantasia; é preciso levar em conta que eu falo em defesa da mãe comum.
LUIZ - Está-me fazendo crer em milagres.
CLARA - Onde vê o milagre?
LUIZ - Na conversão de V. Excia.
CLARA - Não crê que eu esteja falando a verdade?
LUIZ - Creio que é tão verdadeira hoje, como foi há cinco anos, e é nisso que está o milagre da conversão.
CLARA - Pois será conversão. Não tem mais que bater palmas pela ovelha rebelde que volta ao aprisco. Os homens tomaram tudo e mal deixaram às mulheres as regiões do ideal. As mulheres ganharam. Para a maior parte o ideal da felicidade é a vida plácida, no meio das flores, ao pé de um coração que palpita. Elas sonham com o perfume das flores, com as escumas do mar, com os raios da lua e todo o material da poesia moderna. São almas delicadas, mal compreendidas e muito caluniadas.
LUIZ - Não defenda com tanto ardor o seu sexo, minha senhora. É de uma alma generosa, mas não de um gênio observador.
CLARA - Anda assim mal com ele?
LUIZ - Mal por que?
CLARA - Eu sei!
LUIZ - Aprendi a respeitá-lo, e quando assim não fosse, sei perdoar.
CLARA - Perdoar, como os reis, as ofensas por outrem recebidas.
LUIZ - Não, perdoar as próprias.
CLARA - Ah! foi vítima! Tinha vontade de conhecer o seu algoz. Como se chama?
LUIZ - Não costumo a conservar tais nomes.
CLARA - Reparo uma coisa.
LUIZ - O que é?
CLARA - É que em vez de voltar mouro, voltou profundamente cristão.
LUIZ - Voltei como fui: fui homem e voltei homem.
CLARA - Chama ser homem o ser cruel?
LUIZ - Cruel em quê?
CLARA - Cruel, cruel como todos são! A generosidade humana não para no perdão das culpas, vai até o conforto do culpado. Nesta parte não vejo os homens de acordo com o evangelho.
LUIZ - É que os homens, que inventaram a expiação legal, consagram também uma expiação moral. Quando esta não se dá, o perdão não é um dever, porém, uma esmola que se faz à consciência culpada, e tanto basta para o desempenho da caridade cristã.
CLARA - O que é essa expiação moral?
LUIZ - É o remorso.
CLARA - Conhece tabeliães que passam certificados de remorso? É uma expiação que pode não ser acreditada e existir entretanto.
LUIZ - É verdade. Mas para os casos morais há provas morais.
CLARA - Adquiriu essa rigidez no trato com os árabes?
LUIZ - Valia a pena ir tão longe para adquiri-la, não acha?
CLARA - Valia.
LUIZ - Posso elevar-me assim até ser um espírito sólido.
CLARA - Espírito sólido? Não há dessa gente por onde andou?
LUIZ - No Oriente tudo é poeta, e os poetas dispensam bem a glória de espíritos sólidos.
CLARA - Predomina lá a imaginação, não é?
LUIZ - Com toda a força do verbo.
CLARA - Faz-me crer que encontrou a suspirada exceção que... lembra-se?
LUIZ - Encontrei, mas deixei-a passar.
CLARA - Oh!
LUIZ - Escrúpulo religioso, orgulho nacional, que sei eu?
CLARA - Cinco anos perdidos!
LUIZ - Cinco anos ganhos. Gastei-os a passear, enquanto a minha violeta se educava cá num jardim.
CLARA - Ah!... viva então o nosso clima!
LUIZ - Depois de longos dias de solidão, há necessidade de quem nos venha fazer companhia, compartir as nossas alegrias e mágoas, e arrancar o primeiro cabelo que nos alvejar.
CLARA - Há.
LUIZ - Não acha?
CLARA - Mas quando, pensando encontrar a companhia desejada, encontra-se o aborrecimento e a insipidez encarnadas no objeto da nossa escolha?
LUIZ - Nem sempre é assim.
CLARA - As mais das vezes é. Tenha cuidado.
LUIZ - Oh! por esse lado, estou livre de errar.
CLARA - Mas onde está essa flor?
LUIZ - Quer saber?
CLARA - Quero, e também o seu nome.
LUIZ - O seu nome é lindíssimo. Chama-se Clara.
CLARA - Obrigada! E eu conheço-a?
LUIZ - Tanto como a si própria.
CLARA - Sou sua amiga?
LUIZ - Tanto como o é de si.
CLARA - Não sei quem seja.
LUIZ - Deixemos os terrenos das alusões vagas; é melhor falar francamente. Venho pedir-lhe a mão de sua filha.
CLARA - De Clara!
LUIZ - Sim, minha senhora. Vi-a há dois dias; está bela como a adolescência em que entrou. Revela uma expressão de candura tão angélica que não pode deixar de agradar a um homem de imaginação, como eu. Tem além disso uma vantagem: não entrou ainda no mundo, está pura de todo contato social; para ela os homens estão na mesma plana e o seu espírito ainda não pode fazer distinção entre o espírito sólido e o homem do ideal. É-lhe fácil aceitar um ou outro.
CLARA - Com efeito, é uma surpresa com que eu menos contava.
LUIZ - Posso considerar-me feliz?
CLARA - Eu sei! Por mim decido, mas eu não sou a cabeça do casal.
LUIZ - Pedro Alves já me deu seu consentimento.
CLARA - Ah!
LUIZ - Versou sobre isso a nossa conversa.
CLARA - Nunca pensei que chegássemos a esta situação.
LUIZ - Falo como um parente. Se V. Excia. não teve bastante espírito para ser minha esposa, deve tê-lo, pelo menos, para ser minha sogra.
CLARA - Ah!
LUIZ - Que quer? todos temos um dia de desencantos. O meu foi há cinco anos, hoje o desencantado não sou eu.
CENA VIII
editarLuiz, Pedro Alves, Clara
PEDRO ALVES - Não houve sessão; a minoria fez gazeta. (A Luiz) Então?
LUIZ - Tenho o consentimento de ambos.
PEDRO ALVES - Clara não podia deixar de atender ao seu pedido.
CLARA - Peço-lhe que faça a felicidade dela.
LUIZ - Consagrarei nisso minha vida.
PEDRO ALVES - Por mim, hei de sempre ver se posso resolvê-lo a aceitar um distrito nas próximas eleições.
LUIZ - Não será melhor ver primeiro se o distrito me aceitará?