Diário Íntimo (Lima Barreto)

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça; porque serão satisfeitos."

Evangelho de São Mateus. Cap. 5, v. 6.


"— Pues ¿de qué suerte los piensas honrar? — preguntó el caballero.

Con mis estudios — respondió el muchacho —, siendo famoso por ellos;
porque yo he oído decir que de los hombres se hacen los obispos."
—El licenciado Vídriera , Cervantes.

Capítulo I editar

A antipatia do Largo de São Francisco fica mais acentuada nas primeiras horas da manhã, dos dias de verão. O Sol o cobre inteiramente e se espadana por ele todo com a violência de um flagelo. Pelo ar, a poeira forma uma película vítrea que fulgura ao olhar, e do solo, com o revérbero, sobe um bafio de forja que oprime os transeuntes. Não há por toda a praça uma nesga de sombra, e as pessoas que saltam dos bondes, caminham apressadamente para a doçura amiga da Rua do Ouvidor. Vão angustiadas, e opressas, parecendo tangidas por ocultos carrascos impiedosos. Os negros chapéus-desol dos homens e as pintalgadas sombrinhas das senhoras, ao balanço da marcha, sobem e descem como se flutuassem ao sabor das ondulações de um curso d’água. São como flores, grandes flores, nenúfares e ninféias, estranhas e caprichosas, que recurvassem as imensas pétalas ao Sol causticante das nove horas da manhã. A superfície lisa da fachada da Politécnica é o espelho, onde se refletem e concentram os raios do sol que quer o Largo vazio; e o trânsito se faz para e da Rua do Ouvidor, segundo dois recurvados filetes que terminam num e noutro lado daquela fachada. À violência do Sol nada resiste. O granito da portaria da igreja de São Francisco parece estalar. Os tílburis em fileira ao centro da praça rebrilham como ágatas e as suas pilecas, a aquele calor, dormem resignadamente. De quando em quando, por entre a fileira dos tílburis, um rapazola atravessa e lépido sobe as escadas da Escola Politécnica. São os únicos transeuntes que se lançam pela praça corajosamente. As aulas começam às dez horas e eles vêm vindo meia hora antes, em pleno suplício. No começo do ano é bom de ver o pátio central por essa hora. Os novos e os velhos, os crônicos e os distintos, encontram-se e põem-se a esgrimir espiritualmente, procurando cada qual dizer as mais maravilhosas coisas. Alunos há que só aparecem na Escola durante o primeiro mês; depois, vão-se e só voltam pelo começo do ano seguinte, para conversar, discutir e “trepar”. “Trepar” é um dos prazeres mais estimados entre os rapazes. Guardase, até, a tradição dos bons “trepadores”.

— Você não conheceu o Bolsel, Costa?

— Como não? Muito!

— Que trepador, hein?

— Chi! Era feroz.

E os novatos arregalam muito os olhos e ficam em segredo desejando mais aquela glória do que os prêmios burocráticos que o regulamento promete.

“Trepar” é uma variante da maledicência nacional; mas enquanto esta, em geral, traduza sempre uma pontinha de ódio latente, a “trepação” se faz sem razão e sem causa. É um prazer, uma ginástica intelectual, uma satisfação do espírito, unicamente exigida pelo feitio mental dos rapazes e nunca provocada por qualquer ato da vítima. “Trepa-se” à toa, nos amigos, nos inimigos, nos indiferentes, nos vivos e nos mortos, em tudo e em todos.

Nos primeiros dias do ano letivo é que a trepação recrudesce. As reprovações, as desilusões nos exames e, sobretudo, a inocente vaidade dos antigos, em aparecer sobre-humanos aos novos, desenvolvem o humor agressivo dos rapazes.

— Que tal o visconde, hein?

— ? ?

— Vai publicar uma nova edição da Geodésia...

— É certo?

— É; mas tirou aquele pedacinho — “em terras como a nossa onde não há palmeiras”...

— Em compensação, indaga um outro, continuará a aconselhar que os burros não podem carregar os instrumentos de precisão, pois lhes falta delicadeza para isso?

A roda ri-se muito e um outro conta que o Santiago, o lente de Canais, não se “aperta”. Começa em Canais, continua por Cinemática, põe Geodésia, mistura Máquinas e acaba em Canais. É um gênio!

De repente, a trepação, que ia viva, descamba para a ópera italiana. A conversa se generaliza e todos se possuem de paixão. Não há que admirar: a ópera lírica é a mais alta expressão da estesia dos nossos estudantes; no meio do ano, pela quadra própria, ela os absorve completamente. Fora da ópera, mesmo na música, para a sensibilidade deles não há arte...

Há ocasiões, porém, que a conversa passa da “trepação” e do “lírico”, para as questões de metafísica matemática. Toda a gente é iniciada nela. Há questões gerais que acirram as inteligências de todos; outras há, contudo, que só interessam os alunos de um dado ano e de uma certa cadeira. A questão se “du” pode ser substituído por “su” pertence à cadeira de Mecânica, mas os problemas das geometrias agita toda a Escola. Os paradoxais (sempre os há entre rapazes) deixam se arrastar pelo vôo doirado da segunda verdade; e gostam de levar, à candura dos positivistas, dúvidas sobre a existência de uma única geometria. Discutem a questão do espaço, uma forma subjetiva da nossa intuição, independente de toda e qualquer experiência, misturam a convenção dos postulados; e, com um esforço de filosofar risível, concluem que é uma ciência apriorística, e o mundo bastante plástico, para se curvar a qualquer uma e a todas que se queira inventar

Os positivistas são inflexíveis. Contrapõem, à dialética dos metafísicos, algumas fórmulas esotéricas da doutrina, e declamam contra a anarquia mental e os sofistas anti-sociais. Há porém os euclidianos ortodoxos, positivistas ou não, que, por vezes, se opõem com vantagem aos paradoxais impetuosos.

Quando se contempla — iluminados pelo Sol vitorioso de março, que esbraseia as telhas do edifício e vem dar, aos descorados arbustos do jardinzito do pátio, um beijo escaldante de vida — quando se contempla aquela porção de rapazes, cujas inteligências moças ainda, no indivíduo e na raça, agitam-se tumultuáriamente ao influxo da filosofia européia, surge-nos aquela quadra espiritual da Europa pelo XII século, quando chegou às suas universidades a Enciclopédia de Aristóteles traduzida. As palavras com que Taine nos dá esse quadro remoto, poderiam ser empregadas para descrever este contemporâneo. É com a mesma sofreguidão, é com a mesma teima sombria, é com o mesmo tropel bárbaro que aqueles moços invadem, tomam de assalto, e varam as muralhas das difíceis abstrações e das fugitivas filigranas da metafísica européia. Talvez, como no XII século, daquele trabalho encarniçado, nenhuma idéia nova se venha juntar ao patrimônio humano.

Será, quiçá, um obscuro trabalho de disciplina mental, a que a raça infante se impõe para aproveitar quando adulta.

No começo desse ano, pelo meado de março, ainda funcionavam algumas mesas de exames; as aulas, contudo, já estavam abertas e seguiam o trilho do horário. Como no início dos anos anteriores, os bancos do pátio estiveram povoados até às dez horas, tempo em que a maioria retirara-se para assistir as preleções. Um grupo pequeno ficara. Conheciam já a matéria das primeiras aulas — para que ir?

Fernando Amoreira, que estava em estado de graça — como ele dizia — durante a manhã toda, continuava a expandir a sua verve. Sob o olhar desdenhoso de Osvaldo Litichart de Guimarães, rapaz do Norte, que na prosápia contava como antecedente um general holandês do tempo da ocupação, Fernando Amoreira discorria desembaraçadamente, de pé, com a mão esquerda no bolso da calça e a direita agitando o cigarro aceso. Osvaldo quase não sorria, a roda, porém, ria-se a bom rir das coisas do Fernando. O seu temperamento singular fazia as delícias dos colegas. Nada o alterava, nem mesmo as reprovações. Ria-se sempre dos acontecimentos e imaginava uma teoria risonha para justificá-los. Ninguém como ele seguia as nuances de uma idéia, ninguém como ele buscava com tanto afinco a contradição entre duas opiniões respeitáveis; por isso, quando lhe caiu em mãos aquele sutil livro de Poincaré, La Science et 1’ Hypothés, todo ele vibrou satisfeito, ébrio de contentamento — podia duvidar também da geometria! Era um espírito livre e solto, desapegado de todas as certezas, inclusive a científica. Para nós, era uma espécie de Chamfort, de Rivarol; para outros, um palhaço com uma graça difícil e meditada. Seu prazer era conversar. Vivia a palestrar, durante o dia, nos corredores da Escola; à tarde, nos cafés

— Hoje, tive uma idéia.

— Qual foi, Fernando?

Se as coisas continuam nesse caminho, respondeu ele indiretamente, dentro de dois séculos o estudo da geometria terá alguma coisa de parecido com a compra de fitas.

— Como?

— Eu explico. Você quer comprar fitas e vai à casa de armarinho. O caixeiro pergunta: “De que quer, de seda, de gorgorão, ou... ?” Você responde: “De chamalote”. “De que cor?” “Azul”, responderá você. Dentro de dois séculos, o pai leva o filho ao professor de geometria. Este pergunta a aquele: “Que espécie de geometria quer que eu ensine? A euclidiana, a russa, a de Riemann...?” O pai pensa um pouco e diz: “A melhor”. “Todas são boas”, retruca o professor, “pois todas são certas”. “Então ensine ao menino a russa, deve ser mais esquisita”. Eis aí.

Houve um sorriso fino no grupo. O Fernando, muito contente, tirou uma longa fumaça do cigarro, andou até ao gradil e olhou a praça em frente e exclamou:

— Lá vem o Brandão, o Spinosa... — O príncipe negro, fêz um.

O riso, provocado pela última pilhéria do Fernando, não se interrompera de todo e recrudesceu a aquele epigrama do Sodré. Litichart, que até ali estivera calado, resolveu-se a falar.

— Porque vocês não gostam do Tito?

— Não, eu gosto muito dele. É inteligente, honesto, respondeu o Fernando.

— Com franqueza, acho-o muito orgulhoso, respondeu o Sodré, que lançara o epigrama.

— Que tem isso, Sodré? O seu orgulho é a força motriz de sua máquina viva... É a sua arma de defesa contra o mundo que lhe é hostil... É o escudo que o defende... É o impulso que o fará ir para frente e para cima...

Osvaldo dissera aquelas palavras ardentemente, sem refletir, e nelas acentuara tanta paixão, que parecia que se defendia e não ao amigo.

— Mas podemos levar a vida pelos meios comuns.

— Qual, Sodré, depende de onde se parta, quer se ir e onde se quer chegar.

— O orgulho é um pendor egoísta, sentenciou um positivista. O aperfeiçoamento moral tem por fim reprimir os nossos pendores egoístas.

Tito Brandão entrava. Cortejou polidamente a todos, sentou-se e o Fernando ex aperto lhe indagou:

— Como se deve levar a vida, Brandão?

— Como quem quer subir aos céus... A vida é uma escalada de Titã.

§ § §

1903 editar

Um Diário Extravagante

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade.

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Nasci em segunda-feira, 13-5-81.

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O meu decálogo:

  1. — Não ser mais aluno da Escola Politécnica.
  2. — Não beber excesso de coisa alguma.
  3. — E...
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Dia 12 de junho de 1903.

Acordei-me da enxerga em que durmo e difícil foi recordar-me que há três dias não comia carne. Li jornais e lá fui para a sala dar as aulas, cujo pagamento tem sido para mim sempre uma hipótese. Tomei café. Escrevi o memorial para o Serrado. Não o achou bom e eu sou da opinião dele.

Continuo a pensar onde devo comer. Há chance de ser com o Ferraz. Ah! Santo Deus, se depois disso não vier um futuro de glória, de que me serve viver? Se, depois de percorrido esse martirológio, eu não puder ser mais alguma coisa do que o idiota Rocha Faria — antes morrer.

E os dez mil-réis! Idiota.

Noite. Ainda não jantei. Às seis horas, com um tostão, comi uma empada. Que delícia! Ah! se o futuro...

E os dez mil-réis do tal visconde! Idiota.

Os protetores são os piores tiranos.

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Dia 12.

Na eleição. Que bobo é o Everardo; pois não é que ele deixou perceber que exigia do diretório aquele ofício, para disfarçar a sua nula influência junto aos estudantes.

E o Ribeiro? Presidente! Hein? Quem o diria!

E o Carneiro? Distinguiu-se: nem votou.

Todos que somos apegados àquilo e eu... que besta sou! Enfim, o Orlando inda o é maior. Bem, está dito.

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Ainda e sempre: sem dinheiro.

Moses furibundo, Justo idem. Levi no centro trabalha para paz. Ribeiro furioso. Tudo em guerra!

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O meu concurso. Lá o fiz. Fui de prova em prova num crescendo medonho... como eu sei, hein! E o nomeado foi o Milanes! Com certeza, o bom-bocado não é para quem o faz e sim para quem o come.

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O Moses diz que os auxílios dos outros são platônicos

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Aflar — ação do vento contra as folhas — José de Alencar. Palejar — empregado por esse mesmo escritor no sentido da luz a lançar reflexos ou ondulações, tornando uma fronte pálida. Exale, adjetivo, do mesmo autor. Gárceo — de garça, à laia de garça — perfil gárceo José de Alencar. Elance — eflúvio — elance de ternura. Rubescência — gradação da cor que se vai ascendendo às faces até chegar rubor.

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O Sol ia alto e, pelas encostas do serro, o verde, sob aquela luz, variava de tons; aqui, esmeralda; ali, musgo; e todos, num coro, se confundiam num só, multivirescendo, irisado de azul.

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Sem data

“No esforço voluntário, a reflexão interior se apercebe de um ‘eu’ que quer e de um ‘não-eu’ que resiste.” Maine de Biran.

Curso de filosofia feito por Afonso Henriques de Lima Barreto para Afonso Henriques de Lima Barreto, segundo artigos da Grande Encyclopédie Française du Siécle XIXéme, outros dicionários e livros fáceis de se obter.

O curso será feito segundo a história do pensamento filosófico, devendo cada época ser representada pela opinião dos seus mais notáveis filósofos. Na passagem de uma época para outra, constituirá o grande objetivo do curso estabelecer a ligação dos dois pensamentos, as suas modificações e o que se eliminou de um e porque essa eliminação foi feita, assim como as reações da ciência e da arte. Dessa maneira, o curso será dividido em quatro partes:

1 ) Filosofia em geral. Modo antigo de entendê-la e modo moderno de encará-la. Definição. Divisões. Lógica. Metafísica. Teodicéia. Filosofias particulares das ciências e das artes. O lugar que lhes compete. Fim da filosofia. Utilidade (2 lições).

2 ) Filosofia antiga.

a) Filosofia grega (3 lições);
b) Filosofia alexandrina (2 lições);
c) Filosofia romana (2 lições);
d) Pensamento antigo.

3 ) Filosofia na Idade Média. Filosofia árabe. Escolástica. Pensamento medievo (4 lições).

4 ) Filosofia moderna. Escolas Filosofias (5 lições).

5 ) Filosofia contemporânea. Sociologia. Estudo de raças. Teorias (4 lições). Pensamento atual (1 lição).

6 ) Filosofia chinesa (1 lição).

7 ) Filosofia hindu (1 lição).

8 ) Religiões. Crenças religiosas. Animismo. Fetichismo. Politeísmo e monoteísmo. Panteísmo e materialismo ( 3 lições )

Programa.

1a Parte.

objeto da Filosofia (I e II). III — Método. IV —Definição e divisões. Psicologia. Lógica. Teodicéia. Moral. Metafísica e Estética. Modos de encará-la; contribuições diversas do socialismo (estudos sociais), donde modificação de sua significação primitiva.

O resto se fará pelo programa do antigo Colégio Pedro II (está no Paul Janet).

I — A filosofia tem por fim explicar até nos seus últimos fundamentos a existência do mundo, devendo formar um conjunto de nossos conhecimentos particulares a convergir para uma concepção do mundo, do homem e da vida, que satisfaça às necessidades do entendimento e às exigências do espirito humano. Deve ser uma espécie de ciência geral, destinada a constituir, isenta de contradições, um edifício construído com os conhecimentos gerais desvendados pelas ciências particulares.

O seu fim é, portanto, organizar um conhecimento, uma disciplina em métodos seus, teorias organizadas e um plano geral, sendo, pois, arbitrário qualificar de filosóficos os modos de atividade intelectual que consistem em pontos de vista espontâneos, em reflexões sem técnica e sem método, em representações místicas e em crenças. Essas organizações, essa espécie de atividade mental, só pode entrar na verdadeira filosofia como dados, como meros auxiliares, talvez mesmo como fatos, a examinar à luz do critério filosófico. A filosofia é essencialmente uma teoria intelectual organizada. (Artigo Filosofia, da Grande Encyclopédie).

II — Cada órgão de conhecimentos tem um objeto nitidamente marcado pela realidade, pelo fato científico a estudar, e bastante poderoso para esgotar a noção dele. As ciências, portanto, entre si, dividem os objetos primitivamente ou capazes de ser concebidos primitivamente; contudo, sem sair do domínio da ciência, nota-se que o mesmo objeto, que o mesmo fato, que a mesma idéia podem ser examinados de várias maneiras, recebendo explorações diferentes, todas aceitáveis e necessárias. O espaço, por exemplo, é o lugar ideal em que se passam os fenômenos geométricos e mecânicos, para o geômetra; pode ser também — uma idéia sempre presente ao nosso espírito; pode ser ainda — a condição para que possa existir a faculdade de perceber. De maneira que, por tão vários modos de encará-lo, vai fazer parte de disciplinas intelectuais diversas. Seria ocioso mostrar o fato da cor ter significações diversas para o físico, para o químico e para o biólogo, e exemplos seriam não fáceis de encontrar, mas inúteis para a certeza. O que define uma ciência não é o objeto que ela considera, é o ponto de vista em que ela o considera. Se se propõe definir uma ciência pelo seu objeto, é preciso dizer-se que esse objeto não é tal qual existe nas coisas, mas tal qual ele é para a ciência. A ciência vem a ser, portanto, um ponto de vista sobre as coisas. Segue-se, daí, que, sendo as ciências extensivas sobre as coisas, a filosofia a bom título pode constituir um conhecimento, constituindo como que um resíduo, que se vai alterando sem cessar, para se perder finalmente no sistema de ciências. A unidade relativa das ciências, a conexão entre a inteligência e as coisas, a natureza dos princípios científicos, a validade deles, a legitimidade e ilegitimidade das interrogações ‘que se apõem às ciências, e que, às vezes, são postas por elas mesmas, nem respondendo à solução, constituem o objeto da filosofia, donde partirá uma concepção rígida das coisas e da vida, e da sua harmonia geral.

É mais ou menos o artigo de Victor Delbos.

III — O método filosófico, isto é, o processo de que a filosofia se serve para chegar ao pleno conhecimento do objeto de seus estudos, não se distingue absolutamente dos métodos empregados nas demais ciências. Usa da abstração, da determinação, da síntese e da análise, da indução e da dedução. Mas, sendo assim, o seu método possui caracteres específicos, tanto mais que o filósofo sabe que, além de tais processos de chegar à verdade, a inteligência possui outros que o cientista não admite nem emprega, o sentimento, a intuição.

Portanto, fora das teorias a estudar, seria difícil caracterizar perfeitamente o método da filosofia; só no estudo de suas doutrinas pode-se completamente compreendê-lo

1904 editar

Janeiro.

Dolorosa vida a minha! Empreguei-me há 6 meses e vou exercendo as minhas funções. Minha casa ainda é aquela dolorosa geena pra minh’alma. É um mosaico tétrico de dor e de tolice.

Meu pai, ambulante, leva a vida imerso na sua insânia. Meu irmão, C..., furta livros e pequenos objetos para vender. Oh! Meu Deus! Que fatal inclinação desse menino!

Como me tem sido difícil reprimir a explosão. Seja tudo que Deus quiser!

A Prisciliana e filhos, aquilo de sempre. Sem a distinção da cultura nossa, sem o refinamento que já conhecíamos, veio em parte talvez prender o desenvolvimento superior dos meus. Só eu escapo!

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Orçamento:
Ordenado 184
Doutor Araújo 40
224
Despesas:
Casa 120
Venda 80
Médico 10
M. de Oliveira 4
Café 3
217
Orçamento definitivo:
Eu 200$000
Papai 140$000
Carlindo 20$000
340$000
Despesas 120$000
Armazém 100$000
220$000

Sem data Dom João VI no Brasil Estado geral do Brasil nos começos do século XIX. Causas que obrigaram Dom João VI a partir para o Brasil. Desembarque. A cidade do Rio de Janeiro. Seu governo. Seus habitantes. Ruas e praças. Fisionômica. Em relação aos destinos do Brasil, medidas tomadas logo pelo Regente. Escolas superiores. A colônia artística. A cultura musical. José Maurício. Criações políticas. Secretarias de Estado. Ministros. Construções. Criações de novas capitanias. Regime das minas. Revoluções e guerra. A sedição de 1817 em Pernambuco. Expedição de Caiena. Modificações na vida comum. Aumento de esplendor. Teatros. Festas religiosas. Trajes. Arrabaldes. Vilegiaturas. Santa Cruz, Ilha do Governador, São Domingos. Caráter da edificação. Antes e pós Dom João VI. Monumentos deixados. Quinta da Boa Vista. Transformação. Museu Nacional. Relações com o vice-reinado de Buenos Aires. A família real. Os fidalgos, seu caráter. P. R. A escravatura. Leis relativas. Aumento progressivo. Relações entre senhores e escravos. Tronco. Bacalhau. Cantos de senzala. Caráter dos negros. Mulatos. O banzo. Viajantes estrangeiros. Capacidade dessa gente pra civilizar-se. Modo de proceder do rei. Sem data No curso da vida e das leituras *** ... pôr mão no sagrado das vontades e dos corações — Castelo Branco, Paço de Ninães. *** Vezar-se. Vezou-se a luzir. Idem. Resquícios (da almofada) — restos ou frestas. *** abra em páginas. Castelo Branco. *** No tempo da “bolsa” um oficial entrara no quartel-general num luxuoso carro com cavalos. Do cabo. *** “Toute idée fausse est dangereuse. On croit que les rêveurs ne font point de mal, on se trompe, ils en font beaucoup. Les utopies les plus inoffensives en apparence exercent réellement une action nuisible. Elles tendent à l’inspirer le dégoüt de la réalité”. Anatole France, Le Lys Rouge. Podemos muito bem explicar assim a constante irritabilidade dos neófitos e adeptos de utopias e reformas sociais. Vêde Barbosa Lima, a quem eu creio sincero, entre nós, pois que todas as reformas da atualidade, no nosso meio, se vão polarizando no positivismo religioso. *** 28 de outubro. O Barbosa Lima descompôs o Medeiros ; não há negar que o Medeiros é vil como uma serpente, mas o Barbosa tem sido de uma felicidade pasmosa, tendo sempre como adversário fofos 1iteratos (no mau sentido!), que não podem arrancar-lhe aquela máscara de matemático e de filósofo. É um péssimo espírito esse Barbosa Lima, utópico, granítico, recheado de positivismo, cheio de idéias sentimentais, mas no fundo cruel e covarde moral. É uma das mais belas flores do bacharelismo do Exército, bacharelismo cheio de espírito de casta de fofa ciência. Convém debilita-lo. *** O Corinto e o Gil perguntaram-me se lia revistas e escrevia paródias! Bem idiotas! Que dois! *** A ninguém insultes; fala sempre a verdade e, quando a pronunciares, cuida em agradar. *** Sem data Estrada de rodagem construída pelo coronel Joaquim Ribeiro da Silva Peixoto, direto, da colônia de Itapura, para ligação da mesma e Avanhandava ou Uberaba. *** Sem data David C..., baiano, homem insinuante; vivo; de escrúpulos reduzidos, honestidade relativa. Intermediário de agiotas. Agenciador de casas de jogo. De qualquer modo generoso. Poucas letras. Pelas mãos, no seu dizer, tem passado a flor da literatura e da ciência pátria. Tísico. Moreno pálido. Meão de altura. Olhos vivos e grandes, inquietos. Meio calvo. Bigode farto. Arcadas superciliares fundas. Sobrancelhas espessas. Vagamente mulato. Sem família. *** Máximo Kovéski, russo ou polaco, doutor à última hora. Atrapalhado na colocação de sua tradução em fascículos do romance do autor turquestânico Ralgoff. Vendeu um exemplar ao ministro russo. *** Há uma peça de Calderón de la Barca intitulada: Tudo é mentira e tudo é verdade. Ver filosofia do trem. Castor e Pólux — São Cosme e Damião — Dois-Dois. *** Quando eu fui amanuense da Secretaria da Guerra, pintou-se (em 904) a secretaria e dependência; pois bem, o encarregado de fiscalizar isso, essa pintura e ligeiros retoques na escada e no calçamento da entrada, era um capitão do Exército, doutor em ciências físicas e matemáticas etc. etc. *** Sem data Durante o meu primeiro ano de amanuense da Secretaria da Guerra, foi reclamada a baixa de quatro soldados que eram peruano, italiano, oriental e português. Eram freqüentes os decretos declarando sem efeito as promoções de alferes a tenente, por não existirem no Exército oficiais com aqueles nomes. *** Exmo Sr Marechal etc. pedir a V. Exa se digneis (beleza) R.Cl. Teles Pires *** Hoje, o caso mais curioso foi o coronel P... É um tipo de militar sul-americano. Fanfarrão, sem ser valente, nem generoso. Ignorante. Jogador. Sempre indo atrás do ministro para arranjar um adiantamento. Aconteceu que o tal que falei que vi a passear com a mulher em São Francisco é um estradeiro, e o P... o teme, pois a mulher com quem ele casou é sua parente e tem a receber algum dinheiro do pai, que morreu. *** 6 de novembro. Hoje (6 de novembro) fui à ilha , pagar dívidas de papai (490); paguei-as uma a uma; entretanto, na volta, estava triste; na estação de São Francisco (vim pela Penha), ao embarcar, me invadiu tão grande melancolia, que resolvi descer à cidade. Que seria? Foi o vinho? Sim, porque tenho observado que o vinho em pequenas doses causa-me melancolia; mas não era o sentimento; era outro, um vazio n’alma, um travo amargo na boca, um escárnio interior. Que seria? Entretanto, eu o quero atribuir ao seguinte: Na estação, passeava como que me desafiando o C. J. (puto, ladrão e burro) com a esposa ao lado. O idiota tocou-me na tecla sensível, não há negá-lo. Ele dizia com certeza: — Vê, “seu” negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres, não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talhe aristocrático. Suportei o desafio e mirei-lhe a mulher de alto a baixo e, dentro de alguns anos, espero encontrar-me com ela em alguma casa de alugar cômodos por hora. *** Sem data. Contou-me o Conceição que, a convite de uma preta de fortuna, ia tocar por setembro em casa dela. Era a festa de Cosme e Damião, por ela denominada — “Dois Dois”. *** Hoje observei uma mulata que parecia amigada a um português; viajavam no bonde separados. *** Tomei um alvitre: quando no bonde entregar uma nota, devo olhar o número. Dez minutos depois! Entretanto, recordei-me, se passa a nota adiante, e eu com ares de vencedor digo-lhe o número, que rata se ele a não tem. *** Sem data O doutor Lund viveu na Lagoa Santa de 1835 a 1880. Lund descobriu fósseis em cavernas calcárias nas proximidades da vila de Curvelo. Quanto a isso, convém ler o artigo da Revista Brasileira. Secretário de Lund, Warnung. *** Um leitor de Balzac. Era um meio velho, que encontrava sempre com um volume da Comédia Humana. (Conto). *** O primeiro de Voluntários da Pátria saiu do Rio de Janeiro, comandado pelo coronel Pinheiro Guimarães. É´ preciso saber se esse batalhão foi para Corrientes ou para o Rio Grande do Sul, quando foi o cerco de Uruguaiana. *** Sem data. Durante as mazorcas de novembro de 1904, eu vi a seguinte e curiosa coisa: um grupo de agentes fazia parar os cidadãos e os revistava. O governo diz que os oposicionistas à vacina, com armas na mão, são vagabundos, gatunos, assassinos, entretanto ele se esquece que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que mantêm a opinião dele, é da mesma gente. Essa mazorca teve grandes vantagens: 1 ) demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendê-la com armas na mão; 2 ) diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3 ) desmoralizar a Escola Militar. Pela vez primeira, eu vi entre nós não se ter medo de homem fardado. O povo, como os astecas ao tempo de Cortez, se convenceu de que eles também eram mortais. O Argolo , parece, queria nesse movimento resgatar a pouca bravura que teve em 9 de fevereiro. *** Quando eu fui amanuense da Secretaria da Guerra, havia um tal B... coronel ou coisa que valha, que era um tipo curioso de idiota. Ignorante até à ortografia; jactancioso. A coragem dele e sua vibração pessoal só surgem quando veste a farda. É conveniente mesmo escrever alguma coisa a esse respeito. O Exército, ou antes, os oficiais generais de mar e terra escaparam, pelas mazorcas de novembro, de serem tomados de terror pânico. Gente habituada à guerra, e familiarizada com seus instrumentos, tomou como sendo canhão, em Porto Artur (Saúde), um tubo de poste telefônico quebrado e assestado. Bombas eram inofensivas peças de madeira, envolvidas pacificamente em fio de ferro. Almas doutro mundo ! *** Profecia. Dos militares mais ou menos envolvidos nas mazorcas, nenhum sofrerá pena; dos civis, alguns se suicidarão na prisão. *** É notório que aos governos da República do Brasil faltam duas qualidades essenciais a governos: majestade e dignidade. Vimos durante a mazorca um ministro, o da Guerra, e um general, o Piragibe, darem ordens de simples inspetores em altas vozes e das sacadas de duas Secretarias de Estado. Eis a narrativa do que se fez no sítio de 1904. A polícia arrepanhava a torto e a direito pessoas que encontrava na rua. Recolhia-as às delegacias, depois juntavam na Polícia Central. Aí, violentamente, humilhantemente, arrebatava-lhes os cós das calças e as empurrava num grande pátio. Juntadas que fossem algumas dezenas, remetia-as à ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedadamente. Eis o que foi o terror do Alves; o do Floriano foi vermelho; o do Prudente, branco, e o Alves, incolor, ou antes, de tronco e bacalhau. *** Sinal dos tempos. Na quinta-feira (10 de novembro), eu vi o Argolo risonho, sorridente, apresentar ao repórter a esposa, de que vinha acompanhado. No 19, pleno estado de sítio, vi o mesmo Argolo não corresponder, a dois passos de distância, o cumprimento do mesmo repórter. *** Este caderno esteve prudentemente escondido trinta dias. Não fui ameaçado, mas temo sobremodo os governos do Brasil. Trinta dias depois, o sítio é a mesma coisa. Toda a violência do governo se demonstra na ilha das Cobras. Inocentes vagabundos são aí recolhidos, surrados e mandados para o Acre. Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser preciso estado de sítio; o Brasil já estava habituado a essa história. Durante quatrocentos anos não se fez outra coisa pelo Brasil. Creio que se modificará o nome: estado de sítio passará a ser estado de fazenda. De sítio para fazenda, há sempre um aumento, pelo menos no número de escravos. *** 22 de novembro. Hoje acabo de ir cumprimentar o Argolo, marechal e ministro da Guerra. É um tipo simples. Sem olhar e sem fisionomia. Recebeu-nos num pequeno gabinete. Ouviu algumas palavras do barão e disse outras. Apertou-nos a mão um a um. Se pela sua fisionomia nada se lhe pode descobrir de elevado ou de mau, pelo seu aperto de mão também. É um aperto de mão burguês, indiferente. Não tem o forte sacolejo de um violento, nem a frieza de um astuto. Aperta mão como um funcionário bom e probo, e às vezes tolerante, que ele é. Houve depois recepção de oficiais e funcionários. Uma mó de gente em brilhantes e garridos (alguns) uniformes desfiou aos meus olhos. De todos os corpos de honorários, uniformes eu vi. Os oficiais generais repletos de bordados lembram alguma coisa dos uniformes vistosos de corporações científicas, artísticas e palacianas. Sobre o dolmã preto bordam filigranas caprichosas, e as platinas franjadas descaem sobre os ombros negligentemente. Esses uniformes brilhantes bem demonstram que são de generais de paz; quem conhece os discretos uniformes dos generais da revolução, e mesmo o clássico de Napoleão, fica abismado com o brilho dos nossos. A farda negra do Corpo de Saúde e dos honorários misturava-se sem se dissolver nos vermelhos das outras armas, e, como pontos de fraca saturação, apareciam as fardas dúbias dos oficiais do Estado-Maior. Havia cerca de seiscentos oficiais e suponho que quatrocentos houvessem deixado de comparecer; dá um total de mil, que, na proporção média de um para quinze soldados, à vista da variedade de postos, calcular-se-ia oficialidade de uma força de quinze mil. Eis aí como a matemática erra, ou antes, como, para aquém da linha equinocial, variam as coisas mais firmemente assentadas na Europa, porquanto, no Brasil, a proporção de oficiais, entremeando generais, etc., não é de um para quinze, mas sim, de um para dois, que é a da guarnição da cidade do Rio de Janeiro. Esses oito dias, depois da mazorca do Lauro (15) gorado, têm sido de um aspecto encantador. O poltrão do Cardoso de Castro, a humílima autoridade que recebeu o deputado Varela, é agora das mais enérgicas, e o símplice Rodrigues Alves, grave conselheiro, secundária figura do Império, é estrênuo defensor da República. Rui, o letrado beneditino das coisas de gramática, artificiosamente artista e estilista, aconselha pelos jornais condutas ao governo. Há dias, ele, no auge da retórica, perpetrou uma extraordinária mentira. Referindo-se ao dia 14, que fora cheio de apreensões, de revoltas e levantes, e à nota trazida a 15, da vitória da “legalidade”, disse assim, da manhã de 15: “fresca, azulada e radiante”, quando toda a gente sabe que essa manhã foi chuvosa, ventosa e hedionda. Eis até onde leva a retórica; e depois... *** Sem data. Eu tinha um colega na secretaria que, em face a mim, desperta-me um estranho sentimento. Era uma espécie de repulsa misturada com enjôo que eu sentia quando ele vinha conversar comigo. Não sei a que atribuir isso. Penso que seja pela sua completa linfacidade; pela sua estupidez. Entretanto, bem analisando, eu tenho conhecimentos que são dessa espécie de gente, pelos quais, entretanto, eu não sinto esse sentimento. Em mim, eu já agora tenho observado, há uma série chocante de incongruência de sentimentos desacordes, de misteriosas repulsas. Não sei! Não sei! O futuro elucidará. *** Os oficiais do Exército do Brasil dividem com Deus a omnisciência e com o Papa a infalibilidade. *** 26 de dezembro. Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para que não desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal, e nisso creio ver um formal desmentido ao professor Broca (de memória). Parece-me que esse homem afirma que a educação embeleza, dá, enfim, outro ar à fisionomia. Porque então essa gente continua a me querer contínuo, porque? Porque... o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande. Era de perguntar se o Argolo, vestido assim como eu ando, não seria tomado por contínuo; seria, mas quem o tomasse teria razão, mesmo porque ele é branco. Quando me julgo — nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo. *** 27 de dezembro. Hoje, no trem, vim com o Apocalipse. É um sujeito magro, esgrouviado, sempre com a barba por fazer. As calças sujas e curtas dão o talhe exato de suas pernas, que são finas, parecendo somente de ossos. O curioso é que o Apocalipse, de fisionomia de símio velho domesticado, bondoso, etc. etc., tem três filhos: um está na Escola do Realengo; outro no ginásio, e o outro, no mosteiro de São Bento. Praticante da Secretaria da Polícia, vivendo de um ordenado exíguo e fornecendo aos seus filhos essa educação exagerada, ele criará ou aduladores vis, ou desgraçados descontentes. Entretanto, ele me dizia isso com grande satisfação: “Três filhos doutores! Que honra, que nobreza!” O dia continuou morno, sem atrativo nem novidade. A secretaria, em geral tão pitoresca para despertar reflexões, esteve de uma pobreza franciscana. O ministro esteve ausente. Tenho reparado que, o ministro presente, vive o edifício. Não sei donde lhe vem isso, mas é verdade que verifico. O Lopes, médium “curador”, convidou-me a ir assistir os serões musicais na casa dele. A filha toca piano, e dizem que bem; há uma outra vizinha que executa ao violino, e a elas acompanhará dona Maria José de Brito, primeiro prêmio de flauta do Instituto. Ansioso espero a coisa, tanto mais que me será deveras novo ouvir uma moça tocar flauta. Oh! Que dia! Infame, não vale dois caracóis! Sem data. Na secretaria, eu tive um companheiro primeiro oficial, o M... T... C..., que era dos poucos que lá havia tendo algum destaque. Ele era duma avareza excepcional e duma estupidez de carneiro. Habituado há quarenta anos a escriturar o protocolo, era incapaz de fazer outra qualquer coisa. Pelas relações da família da mulher, veio a ele alguns cobres que junto à avareza dele davam com que ele manter um filho no Colégio Paula Freitas, uma filha no Instituto de Música. Não comprando os jornais, filava-os dos outros, e isso lhe valia as maiores “molecagens”. Às vezes, ao ele aparecer, um relatava ao outro um caso extravagante, vindo em tal jornal, e, zás, corria a procurar o jornal mencionado. Outras vezes, muito antes de ele chegar, colavam em jornais velhos datas dos novos e ele os lia tal qual como se fossem do dia. A sua estupidez muito concorria para isso e ele leu em 1903 ou 4 um jornal do tempo da Revolta de 93. Ao acabar se lhe perguntou: “Que tal as notícias?” Então, respondeu: — Poucas novidades, mas que havia um romance da Revolta muito bom. A sua avareza era tal que ele procurava de mesa em mesa jornais e os juntava para vender aos quilos. Homem feliz. Hei de me aproximar dele para observá-lo no interior. *** Dezembro. Doutor Laranjinha. Médico. Bebedor de parati. *** O secretário do ministro, por cuja influência eu fui nomeado, tomou-se de aborrecimento mortal por mim . É o que não explico e para motivar o que eu procuro razão. Hoje, encontrei-me com ele no gabinete do diretor e ele nem sequer olhou-me. Porque foi, meu Deus? Talvez a falta de um cartão de pêsames, que não lhe mandei por morte do irmão dele. Só sé isso... Se o nariz de Cleópatra etc. *** Sem data. Tito Brandão da Silva nascera no Rio de Janeiro, de uma dessas famílias da pequena burguesia carioca. Sua mãe “criara-se” na casa dos Brandões, como eram conhecidos na Rua de São Pedro, onde moravam. Vindos de Inhomirim, pelos primeiros anos da Independência, o capitão de milícias José Manuel Brandão, com seus filhos e escravos mais chegados, estabelecera-se na corte, tomando parte ativa na agitação do primeiro reinado. Com a retirada de Pedro I, recolheu-se à vida privada, entretendo as longas horas, passadas nas sombrias salas do seu casarão da Rua de São Pedro, com a leitura dos clássicos latinos e dos poetas portugueses. Morrera de desgosto. Seu filho José Luís, oficial de engenharia, com curso da Academia Militar, batalhando no Rio Grande do Sul, foi ferido em Ponche Verde e veio a falecer em conseqüência de ferimentos. Os seus filhos restantes, ainda adolescentes, sob a vigilância da irmã mais velha, dona Rosa, continuaram no sobrado solarengo. O mais velho dos dois, Heliodoro, cursando a Escola Médico-Cirúrgica, e o outro, a de Belas Artes, freqüentava a aula de arquitetura. Heliodoro alcançou uma grande fama de cirurgião e seu irmão, embora estimado e considerado pelos colegas, nada fizera, morrendo em avançada idade, cheio de misantropia e professando um amargo nirvanismo desesperador. Murmurava-se que Clara, mãe de Tito, era filha deste Brandão, César. De fato, sua mãe Engrácia, uma cria da casa, nascida e libertada por ocasião da vinda de Inhomirim, era provida da precisa beleza para interessar o seu jovem senhor, tanto mais que isso estava nos costumes do tempo, quase sem prostituição pública e de aventuras amorosas difíceis. A ternura de dona Rosa encaminhou-se toda para essa e outras raparigas e rapazes, nascidos em casa, em cujas veias corria uma forte dose do seu sangue; e, à indiferença, mais ou menos formalística, dos irmãos, com eles, ela sempre opôs um cuidado, uma atmosfera carinhosa quase maternal. Era médico, botica, roupas, colégio... tudo ela dava àqueles seus sobrinhos inconfessados. Clara freqüentara o colégio e tivera a educação comum das moças do seu tempo. Era essa a origem da mãe de Tito; a de seu pai, Miguel da Costa, não era menos complicada, embora mais obscura. Nascera ele da mancebia de uma “cabrocha” com um português, minhoto tenaz e paciente, estucador de ofício, que chegou à fortuna pelas suas qualidades de caráter. Miguel herdara essas qualidades do pai; assim é q e, aos quatorze anos, quando ele abandonou sua mãe u (estava nos costumes do tempo), pôs-se em campo com decisão e, em breve, fez-se um operário litógrafo estimado e respeitado. Perdendo sua mãe, o foco concentrador de sua mãe, não se entregou absolutamente à ociosidade dissolvente habitual nos de sua classe. Adquiriu uma pequena instrução, mas segura, com a qual, pelos vinte e cinco anos, protegido por uma influência do tempo, pôde exercer um emprego público numa repartição que se fundou. Casou-se por essa época. Os primeiros anos foram difíceis. O seu primeiro filho, Jônatas, de um natural selvagem e independente, criou-se quase à toa pelo arrabalde em que moravam. Aos doze anos, era um rapagão nédio, “desembolado”, forte, valente, que já metia medo com a sua destra capoeiragem aos mais velhos de sua vizinhança. Era uma perdição, como dizia uma preta velha dos arredores. O segundo, porém, seis anos mais moço que esse, nascera em horas melhores. O velho César, ao morrer, deixara à Clara obra de sessenta contos, restos da fortuna que o velho Brandão trouxe de Inhomirim, e que o excêntrico César, pela sua longevidade, fora recolhendo. Clara não gozou muito da herança. Um ano depois morreu. Senhor de um tal pecúlio, com três filhos apenas, Jônatas, Tito e Clara, o antigo litógrafo tratou de consubstanciar seu sonho: formar um filho. Mandou Tito ao colégio, seguiu os seus estudos, animou-o, mas não pôde vê-lo formado, pois, quando o filho acabava os preparatórios, morreu do fígado, muito moço ainda. Tinha dezenove anos, Tito, e seu irmão, Jônatas, intermitentemente empregado nisso e naquilo, ficou como tutor, tutor singular que obedecia e respeitava a seu irmão tutelado. Cuidados com os irmãos, abnegação pelo futuro deles, afastara de dona Rosa os do casamento. O ímpeto do tempo e do seu sangue desviara-a na ternura e no carinho com irmãos rapazes, esquisitos, caprichosos e desiguais. Envelhecera animando-os, alentando-os, e se sua ação fora útil ao desenvolvimento [ ] *** Sem data. Um escritor, um literato, apresenta ao público, ou dá publicidade a uma obra; até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuria-lo? Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o escritor a quem julgar. Não se pode compreender no nosso tempo, em que as coisas do pensamento são mostradas como as mais meritórias, que um cidadão mereça injúrias, só porque publicou um livro. Seja o livro bom ou mau. Os maus livros fazem os bons, e um crítico sagaz não deve ignorar tão fecundo princípio. Ao olhar do sábio, o vício e a virtude são uma mesma coisa, e ambos necessários à harmonia final da vida; ao olhar do crítico filósofo, os bons e maus livros se completam e são indispensáveis à formação de uma literatura. Se o crítico tem razões particulares para não gostar do autor, cabe-lhe unicamente o direito de fazer, com a máxima serenidade, sob o ponto de vista literário, a crítica do livro. Dizem que o amor faz grandes obras. O ódio também poderá faze-las; mas, para isso, como no caso do amor, é preciso conter-se. No domínio do pensamento, as paradas de sentimento são extraordinariamente fecundas. Em geral, ao começar, o temperamento literário é delicado, é fraco, é semi-feminino, diga-se, e ninguém poderá prever sob que aspecto, sob que forma, a injúria vai reagir nele. Balzac, Lord Rhoone, se houvesse sido injuriado, chegaria a ser o Honoré de Balzac do Père Goriot? Em resumo, se o crítico ama as coisas do pensamento, e sobretudo estas, deve ter sempre em mira a sua prosperidade; e, creio, a injúria não é o melhor meio para obtê-la. *** “La muse, si revêche qu’elle soit, donne moins de chagrins que la femme. Je ne peux accorder l’une avec l’autre”. Flaubert a George Sand. *** “There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy”. *** Clara dos Anjos , mulher, mulata, 23 anos. Tenente Frutuoso, do Exército, positivista, etc., noivo de Carlota Sá Bandeira. Guedes (Camilo da Costa), português, interessado; mais tarde, enriquece, parte pra Europa, onde fica, doando alguma coisa à Clara, sua amiga, com quem tem uma filha (Visconde mais tarde de qualquer coisa). A gente Sá Bandeira, família de pequeno empregado, da relação de Clara, de quem o pai era padrinho. Edmundo Neves, raisonneur, boas opiniões, apresentado ao Frutuoso. Edmundo Neves é de Minas, placidamente desliza pela vida como empregado dos Telégrafos, ligara-se de amizade com Armando Sá Bandeira, poeta de jornais pequenos e empregado da estrada de ferro. A velha Cipriana de Sá Bandeira. David Carvalho casa-se mais tarde com Clara, a quem vem a conhecer na festa dos Cardosos, na Penha, por ocasião do São João. David, sem ofício certo, é tudo, mais ainda jogador, bêbedo, etc. Dá cabo dos 50 contos de Clara. Clara enviuva e amiga-se com José Portilho, pedreiro, 50 anos, e, quando sua filha Iracema foge com um cabo de polícia, queixa a esta, relutâncias encontradas, e afinal, abandona- a amigada com este, e prostituição dela e morte na Misericórdia. José Portilho, envelhecido, não podendo trabalhar; Clara lava e engoma para sustentá-lo, e no terreiro da estalagem em que moram ela canta uma trova qualquer em um belo dia de sol. 1903 Época: 1874 a 1905. Clara. Nasceu ..........................1868. Morte do pai................1887 Deflorada.....................1888. (12 ou 13 de maio). Dá à luz.........................1889 Deixada.........................1892 Casada ...........................1894 Viúva............................ 1899 Amigada de novo........1900. *** Preciso saber de que data são as “Vozes d’África». Veio residir em Catumbi em 1884. *** Clara deve primeiro intentar os soldados à noite no acampamento de Maria Angu, depois, aconselhada, vai ao Frutuoso, de manhã, que a recebe, escrevendo uma carta cheia de sentenças filantrópico-políticas, e escrevendo continua a dar-lhe atenção. David é fuzilado de manhã no meio de um campo, fazem-lhe cavar a cova e depois zás. *** A sedução de Clara passara-se no dia 13 de maio. *** Amigada com casa montada briga com a dona Quitéria. O delegado e os escrivães, gente libidinosa, querendo conquistar todas as mulheres que lhe vão às repartições. *** A república passa-se enquanto ela, amigada com o Monteiro, recebia algumas pessoas de sua amizade, entre os quais o Sá Bandeira, que, para casar a filha, adulava-a, para arranjar dinheiro... *** Fuzilado o seu marido, ela amiga-se com o alferes tal, das forças; finda a revolta ele a deixa e ela procura empregar-se em serviço doméstico. A vida que leva. *** Amancebada com um operário espanhol que fica entrevado, vai morar numa estalagem no Mangue. O dia do funeral, a força passa. Comanda-a Frutuoso, general, e, antes, elas conversam sobre o bicho, lavando roupa e cantarolando. *** O Frutuoso, por acaso, conversa em uma roda alegre, um deles afirma que o Benjamim Constant era um impostor, que não sabia matemática e nem nada. Reflete Frutuoso, examina o que ele deixou de obras, os seus cursos em que havia mais política e eloquência que profundeza matemática, e concorda intimamente com a história. Vai pelo bonde e no caminho salta nele um colega e ele se refere à conversa e por fim ele solta uma frase. (Convém procurar essa frase nos exemplos vivos: Liberato, Moreira Guimarães. Ler a Revista Militar). *** “Quando, porém, procede inversamente, vai de encontro à função que fica fementida e perturbada. Este fato se produz, sobretudo, quando o chefe, saindo de sua impersonalidade, determina ordens no sentido de sua satisfação individual açulada por forte dose de vaidade. O comando é, em suma, a determinação do ato funcional no conjunto hierárquico da força armada. Saiamos agora do estilo imaginoso que não podíamos deixar de empregar nesta exposição”. Da Revista Militar, 1904. *** Frutuoso, com uma pretensão, julga humilhante se empenhar como um paisano para o ministro da Guerra. Tinha bochechas cheias, bigode esfarelado ao ar e olhos miúdos. *** A classificação de ciências do Frutuoso: Ciências estáticas Ciências dinâmicas Ciências estático-dinâmicas Exs. 1a - A Geometria, a Mineralogia etc. 2a- A Astronomia, a Química. 3a - A Biologia, a História e a Nigromancia. *** Verso de um soneto de Frutuoso: “Marcando aos homens o dever do justo”. *** Opiniões do Gomensoro. Os negros fizeram a unidade do Brasil. O negro é recente na terra. Os negros, quando ninguém se preocupava em arte no Brasil, eram os únicos (O. Duque, Arte Brasileira). Os produtos intelectuais negros e mulatos, e brancos, não são extraordinários, mas se eqüivalem, quer os brancos venham de portugueses, quer de outros países. Os negros diferenciam o Brasil e mantêm a sua independência, porquanto estão certos que em outro lugar não têm pátria. Se um viajante, sábio etc. etc., sem saber a história do passado, fosse visitar os árabes atuais, negaria qualquer capacidade intelectual a eles. A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori. A energia só se tem revelado depois de lenta submissão (hunos, plebe romana, bárbaros em geral). A coragem é da mesma maneira. O português, que é humilde entre nós, é um povo valente; o fim a que se propõe, obriga-o a curvar-se. Discutindo a incapacidade mental desta ou aquela raça, temos o ar de dizer com o poeta grego — os bárbaros, gente vil que não ama a filosofia e ciências; ele se dirigia ao avô de Kant e ao tio de Descartes. Se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto a inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará o negro? Os árias, quando no plateau da Bactriana, nada valiam; emigrando, após séculos de fermentação, brilharam numa cultura superior; porque os negros, transportados de África pelo tráfico, não desenvolverão uma civilização ou concorram para ela? Esse fenômeno de mudança de habitat é importante para o estudo. A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um homem. Se há três geometrias etc. etc. *** Outubro Discurso que fiz ao barão de Itaipu . É caso, senhor barão e meus senhores, que o encanto da complexidade da vida nos assombra e nos atrai. Ora esse aspecto absorve nossa alma, ora aquele outro faz convergir para ele toda a energia de que são capazes os nossos sentidos; e sempre — em vão procurando decifra-la — a estrutura íntima da vida aparece ao nosso entendimento como um eterno problema a resolver. Armamo-nos de ciências e filosofias, e, se com elas percebemos uma face da existência, deixamos escapar uma outra, ou descobrimos novas. Nesse suplício, que lembra, ao mesmo tempo, os mitológicos das danaides e de Sísifo, percorremo-la tacteando em trevas. Entretanto, há um seguro instrumento para a compreender: é viver. Viver é acumular intuições e noções, que vão formar um cabedal pessoal e intransmissível. É construir uma sabedoria individual; é, de alguma forma, decifrar o magno problema, pois só o lento evolver na vida nos fornece a verdadeira percepção dela mesma e a sua representação, cuja passagem a outrem é impossível. Será talvez por isso que, com os anos, aos nossos corações chega aquela calma transcendental que nos faz saborear, com carinho, todas as suas feições e pairar desassombradamente sobre os acontecimentos. Lembro-me agora de um fato. Era menino. Com meu pai, assistia a um dramalhão ensangüentado. Ao meu lado direito, adiante do meu progenitor, um senhor tinha os olhos úmidos; em frente, uma moça soluçava com a ingênua; à esquerda, porém, um cavalheiro, com a fisionomia parada, e plácida, seguia com afinco a representação. Não perdia um gesto, uma frase, um movimento... Quando saía, pelo fim da peça, ouvi dizer a um amigo: — Aproveitei bem a minha entrada. Para espetáculo do mundo, só os anos dão a calma do meu espectador. E, por ser assim, é que eu, ainda avaro em anos, gabo a passagem de mais um, pois que me vou vendo chegar ao tempo em que poderei apreciar, com o máximo rendimento, a dádiva de viver. Aproveitarei melhor a minha entrada, então... Todas as grandes qualidades de Vossa Excelência, senhor barão, de honradez, de experiência, de culto ao dever e à justiça, de tolerância e de bondade, acentuadas cada vez mais por essa sabedoria de que falei, lograram transformar, de cada um de nós, classificados diversamente pelas necessidades da administração, em um amigo e um admirador. De tal forma é assim, que sabemos que, em Vossa Excelência, temos um mais alto critério e um árbitro máximo, indicados pelo respeito, pela admiração e pela amizade que crescem dia a dia, razão por que, neste, sabedores de que mais um ano Vossa Excelência acrescenta aos já vividos, pedimos aos deuses protetores que muito mais sejam os que restam a Vossa Excelência, para maior ser a nossa veneração. Era o que eu tinha a dizer. *** Sem data Capítulo 1 — A família Brandão. Capítulo II — Marco Aurélio encontra uma conhecida de infância, Araci, relembra-lhe a história. Considerações. A rua. A escola, as pressões. Capítulo III — A festa de formatura. Os lírios. O discurso de Marco Aurélio. A alegria da família dona Romualda e a filha Mendonça. Capítulo IV— Marco Aurélio Brandão, compadecido da miséria de um colega, doente, sem dinheiro, recolhe-o a sua casa. Capítulo V — Sentindo-se melhor, mas não tendo para onde ir, o rapaz continua em casa e começa a namorar a irmã. Capítulo VI — Sedução de Alice pelo Mendonça, e como ele dá farinha envenenada à filha. Capítulo VII — Gravidez. Capítulo VIII — As explicações e recusa. Capítulo IX — O assassinato pelo outro irmão, a desculpa de Marco Aurélio e a queda dos titãs. Deve dar vinte capítulos. O caso do Mendonça. Um poeta seduziu uma mulata. Houve um filho. Ele não quis casar com ela. Indo uma vez pedir o que comer para o filho, ele lhe deu farinha láctea com sublimado corrosivo. Marco Aurélio. Pedro. Alice. O velho Nicolau. A criada Ana. Silvino Cavalcanti. Manuel da Costa Freitas. Romualda. Amélia. ** * CAPITULO 1 Marco Aurélio, orgulho, bondade, talento, tristeza em ver “a gente” sem força, sem coragem, sem ânimo de trabalhar e de lutar, os homens; as mulheres, sem dignidade, sem grandeza, sem força para resistir às seduções, mergulhadas na prostituição. Pedro, seu irmão, capadócio, tocador de violão, capoeira, altivo e corajoso, mas inútil. Alice, passiva, não conhecendo bem a sua situação. Tia Rosa, doçura, filosofia pessimista, certeza de que não é nada. O velho Nicolau, africano, dedicação, etc. Ana, preta, resignação, jovialidade. Marco Aurélio acaba de se formar, o seu gênero de estudo, o seu orgulho de i teligência, n a sua tristeza em ser único, prepara-se para festejar a data. É de manhã, a família toma café, a irmã pede-lhe licença para convidar Amélia, filha da Romualda, prima de sua mãe; ele a dá contrariado, mostra-lhe os inconvenientes. Antes de sair, chega-lhe o seu colega Cavalcanti, é um ano mais atrasado, vem lhe pedir um livro. Conversam um pouco. O colega abre um livro, a Biblia, por acaso dá com esta passagem: “Bendito seja o senhor Deus meu, que adestra as minhas mãos para a batalha e os meus dedos para a guerra”. — É terrível esta Bíblia, comenta o outro. E ambos saem. *** Sem data MARCO AURÉLIO E SEUS IRMÃOS Bendito seja o senhor Deus meu, que adestra as minhas mãos para a batalha e os meus dedos para a guerra. Salmo 141 PRIMEIRA PARTE Tito, fora de seus hábitos, despertara cedo. A tepidez e a beleza da manhã tinham como que atravessado as paredes da velha casa, as fortes portas da janela, fazendo-se sentir no interior do quarto, completamente fechado, somente iluminado pela claridade vaga que se coava pelos óculos das janelas. O velho preto não demorara em trazer o café. Há quinze anos que ele o fazia, com a mesma regularidade e com aquela larga e doce simpatia, que só se encontra nessas almas selvagens dos velhos negros, onde o cativeiro paradoxalmente depositou amor e bondade. Enquanto o café esfriava na mesa de cabeceira, Marco Aurélio pôs-se a remontar o destino daquele pobre homem, que o servia e o amava desde quase o nascer. Viu-o criança, muito negro, retinto, feio, entre os braços da mãe na cubata natal, crescendo ao forte sol da África, aquele sol que fecunda e que mata, para onde se alçam as altas palmeiras num ardor de paixão insuperável. Viu-o, depois, crescido, aos sete anos, já tangado, aprendendo a usar as armas da tribo e ensaiando-se nas culturas elementares da sua rudimentar agricultura. Depois, e em seguida, eram as festas, aquelas danças em que o apelo à divindade se faz com esboços de representações de atos amorosos, presididas por aqueles fantásticos feiticeiros. Um dia... Como foi? Quem o saberia? Um encontro, um ataque às cubatas, lá vinha ele, infante ainda, ao sol forte do triste continente, entre um rebanho de irmãos, jungiam aos dois, da corrente, carregando volumes, a descer até o negreiro que os trouxesse às plantações da América. E desde oito anos até hoje, durante mais de cinqüenta. ele tinha trabalhado de sol a sol; e agora, agora que nem talvez uma década lhe restava de vida, que consolo tinha ele? Filhos? Mulher? Fortuna? Terra? Sete palmos onde enterrasse aquela sua carne, pois o seu sangue há muito que a ensopava. Nada! E ele então começou a perguntar-se por que estranhas leis aquela humilde vida tivera que atravessar léguas e léguas, desertos e oceanos, para vir acabar aqui tão tristemente, depois de encher um semi-século de trabalho. Havia mesmo leis que se servissem da cupidez e da perversidade humana para tal fazer, ou era o acaso, só o acaso? E ele não soube responder e fatigou-se de pensar. Ergueu-se, abriu a janela, olhou em torno a p isagem. Os cajueiros estavam em flor e o bambual cerrado só a deixava uma fresta para ver o mar e a cidade lá embaixo, surgindo das águas, com o seu casario tumultuário a subir pelos morros, que começam a branquear à luz já firme da manhã. Um sino tocou. Era o sino da velha igreja conventual, onde se instalara o asilo. Ele lembrou-se, então, do seu serviço, aquele obscuro serviço de escriturário, sempre doloroso, sempre amargo, sempre humilhado, mais que isso; ali, entre dois médicos, não sei quantos internos, todos doutores e senhorias, mais amargo e mais doloroso se tornava. Lembrava-se bem do seu curso perdido, das suas esperanças de posição e consideração, há dez anos passados, quando um dia voltava com os preparatórios feitos, para a casa e a alegria que causara ao pai. Ele se pôs a recordar o curso, os processos de aprovação, a venalidade dos lentes, a sua covardia diante do poder e da força, e pensou consigo que essa nobreza universitária, de exames e diplomas, era duas vezes mais cínica e mais rapace que e milhares de vezes maior que a nobreza de dinheiro. Em uma, havia emprego, trabalho, imaginação para as especulações e para os ganhos. Na outra, havia bravura, generosidade, energia; mas na nossa, nada, nem o saber, sobre o qual ela se faz repousar, e poucas vezes a inteligência, de que ela se arroga o monopólio. Lembrava-se do dia em que se apresentara para tomar posse do lugar: — Marco Aurélio! disse-lhe um interno no veículo. O senhor ainda vive? E o idiota contraía os lábios, contente com o espírito que fizera. E a galeria do pessoal superior começou a passar-lhe pelos olhos. Primeiro, o ecônomo, um homem cauteloso, tímido, vivendo à parte, filosoficamente, cheio de respeitos por tudo e por todos; era o homem mais firme, de mais caráter de todos; era o único em quem não se podia apontar uma infração no regulamento. Ordenava-lhe a lei que morasse próximo, ele morava; que assistisse as refeições dos asilados, ele assistia. Depois, o diretor, um velho formado em medicina, espécie curiosa de médico, que se amedrontava com a perspectiva de passar uma receita. Depois, o médico, os dois internos, estes pedantes, enfumaçados de sábios etc... 1905 1 de janeiro. Hoje, dia de Ano Bom (10 de janeiro de 1905) levantei-me como habitualmente às sete e meia para as oito horas. Fiz a única ablução do meu asseio, tomei café, fumei um cigarro e li os jornais. Acabando de lê-los, arrumei as paredes do meu quarto. Preguei aqui, ali, alguns retratos e figuras, e ele tomou um aspecto mais garrido. Há, de mistura com caricaturas do Rire e do Simplicissimus, retratos de artistas e generais. Não faz mal; nesse aspecto baralhado ele terá o aspecto da vida ou da letra “A” do dicionário biográfico, que traz Alexandre, herói de alto coturno, e um Antônio qualquer, célebre por ter inventado certa pomada. Como a casa me aborrecesse, não unicamente pela tristonha moléstia de meu pai, mas por ela em si, com quem nunca me acomodei, resolvi dar uma volta. Demorando-se o trem na estação de Todos os Santos, fui toma-lo na de Engenho de Dentro. O trem, banal como sempre; idiota e mascavado. Quase ao chegar ao Largo da Carioca, assisti uma cena de que já me ia desabituando. Três soldados do Exército em grande gala forçavam os vendedores ambulantes a lhes darem a sua fazenda gratuitamente. A um qualquer passante, isso, tachado de roubo, valeria um passeio até à estação policial; mas a soldados, não; eles se foram na mais santa das pazes. É coerente isso: o papel dos exércitos, desde os mais extraordinários de Condé e Frederico, até às nossas guardas nacionais da América do Sul, é esse mesmo. Eles três individualmente fizeram o que, talvez mais tarde, hão de fazer sob o pendão auriverde, em meu nome e no dos demais pacíficos homens desta terra. Muni-me de uma ida e volta para o Leme e no elétrico voei linhas afora até o meu destino. A viagem até ao Largo do Machado foi banal e corriqueira. No banco em frente a mim iam dois burgueses, desses respeitáveis, passados dos cinqüenta e ainda em santa paz conjugal. O homem era dos vulgares em sua classe. A mulher tinha características fisionômicas. Uma penugem rala crescia-lhe dos cabelos até o pescoço, fazendo supor, que, como um debrum simétrico, fosse pelas pernas, o busto, até aos pés. A cintura quase lhe ficava no pescoço e os seios empinados dentro de uma blusa cor-de-rosa de seda acabavam o seu todo grotesco. Na Rua Marquês de Abrantes, embarcam a Odete C. P. e outras. Nada de notável, a não ser a vulgaridade. Pleno Leme. O dia é meigo. O Sol, ora espreitando através de nuvens, ora todo aberto, não caustica. Nos dois abarracamentos cheios de gente, espoucam garrafas de cerveja que se abrem. A praia se estende graduada, harmônica, desde o monte do Leme à igrejinha. A ponta recurva desta é como a cauda de um peixe que se dobrasse num “samburá”. Por detrás, a lombada de morros pintalga de verde-esmeralda, verde-garrafa, verde-mar, variando cambiantes aqui, ali, consoante as dobras do terreno e a incidência da luz, pintalga o azulado opalino do dia. O mar muge suavemente. As ondas verde-claro rebentam antes da praia em franjas de espuma. Pelo ar havia meiguice, e blandícias tinha o vento a sussurrar. A gente que há é a vulgar dos piqueniques. Gente simplória que, enclausurada em casa uma semana, um mês, um ano, quem sabe, resfolegava naquele dia ao ar livre. Havia um deputado e família, o que não diminui nem altera a minha observação. No bonde, na altura da Rua dos Voluntários, tomaram-no dois rapazes e uma rapariga. A rapariga sentou-se ao meu lado. Como era de meu dever, comecei a observar-lhe discretamente. Ela não se aborreceu e observou-me. Estendeu a mão, mirei-lhe a mão com amor e firmeza. Ela escondia. Eu fingia olhar para outro lado, ela estendia, eu olhava. E assim fomos até ao Leme. Era uma espécie de galanteio que eu tinha inventado e que agradara a italiana (falava em patoá italiota com os rapazes). Já nas curvas, ela avançava mais do que eu. Dava-me encontrões. Preparei o flirt para o botequim, mas, aí chegando, o cioso irmão, percebendo, levou-a para longe. A minha covardia não permitiu que a seguisse, nem que a esperasse, de volta. Com isso, eu adquiri uma certeza; embora mulato, os meus olhares podem interessar as damas e desconfiar os irmãos delas. Fui ao bastião do Leme. Na concavidade que há ali, fizeram um bastião poligonal a terminar nas duas asas da curva. Um velho canhão de ferro com as quinas repousa indolentemente num dos ângulos: é como um funcionário aposentado. Na volta, o Teixeira Mendes veio. Benzi-me. Saía do São João Batista. Adiante conversava com umas senhoras elegantemente vestidas (garanto, é verdade). Falavam de coisas familiares. Na praia de Botafogo, a senhora mais velha, olhando as obras, disse: — Vamos ter um Rio de Janeiro bonito! — Parece... A questão é que as cabeças não andam direito, disse o apóstolo. O apóstolo fala como se falou há vinte mil anos. Nada novo. Cediço. Puh! Pagou duas vezes a passagem (do cemitério ao Largo do Machado e do Largo à Glória), em nenhuma delas recebeu coupons. Singular! Não atino porque. Talvez seja um modo especial de ser altruísta: permitindo que o condutor furte. Puro anarquismo! *** 2 de janeiro. Hoje, dia 2 de janeiro. Chegando à secretaria, fui cumprimentar o ministro pela entrada do ano novo. A coisa foi a de sempre. O barão, o diretor, disse algumas palavras em voz baixa, e o Argolo também respondeu assim. Depois apertou-nos a mão em mão e dessa vez a alguns dirigiu umas palavras. A mim ele chegou-se e, com aquela fisionomia sem olhar e com a voz incolor, indagou: — Você é o novato? — Sim, senhor. Sou o mais moço. — O mais moço, frisou ele. — O mais moço aqui na secretaria. A coisa não tinha grande graça, mas todos riram-se, incluso o ministro. Até ao meio-dia, ele recebeu cumprimentos. Havia alguma frieza; entretanto, os aspectos eram os mesmos de quando ele recebeu, há um mês, cumprimentos pela vitória do governo, cujos detalhes já tomei nota. O Matias continua na sua faina de cavar jornais. Hoje, em falta de outro, procurou o Diário Oficial. Dos jornais, de notável só estes versos, sobremodo estúpidos: I És mais formosa do que um crisântemo, Mulher gentil, aurora de meus sonhos. Só de pensar em desengano, tremo, Como em frente aos fantasmas mais medonhos. II Tens um nome tão doce como as flores, que em lembrá-lo somente me extasio. E sinto se esvaírem minhas dores, Qual águas cristalinas dalgum rio. III Teu corpo tem da forma a divindade E se desenha por entre as brancas vestes, Onde se reúne à simplicidade A graça que possuis e o revestes. Rio, 27-12-1904. Com freqüência, os jornais traziam casos desses. As vezes era uma pretinha, outras era já uma rapariga. Davam-se em casas da pequena burguesia, dessa que se quer fazer de grande, etc. etc. É um estudo que me tenta o do serviço doméstico entre nós. Em geral, as pessoas se queixam dos criados e eu sempre objetei que os criados têm razão contra os patrões e os patrões contra os criados. “Três anos de martírios. Surras diárias. Há três anos, mais ou menos, chegou a esta capital, vinda do interior de um dos estados vizinhos, a menor Claudomira, de 20 anos de idade, indo para a casa de uma família residente à Rua Nora no 2-D. Durante algum tempo foi essa moça tratada relativamente bem, pois, no desempenho de suas ocupações, que era a de criada, se houve com geral agrado de todos. Não gozou, entretanto, essa infeliz da paz que, na sua obscura existência, perenemente fazia vicejar a rósea claridade dos seus sonhos de moça. A mais horrorosa situação, com todo o cortejo de ignomínias, lhe criou o atroz destino. Não lhe valeu o esforço sobre-humano que empregava para libertar-se da pesada tarefa que lhe era dada nos vários serviços da casa, onde, sem causa que tal justifique, lhe aplicam o mais terrível castigo: o açoite! Tudo tem suportado essa desgraçada. Crente na misericórdia divina, dominava-lhe a esperança de ver aplacada a fúria desumana dos seus algozes. Tudo em vão! Impedida de sair à rua, desde que aqui chegou, vive essa desventurada sob o jugo dos seus verdugos. De tudo a vizinhança sabe. Desde as primeiras horas da manhã, já se ouve, como fúnebre matina, as lúgubres pancadas do açoite! E essa infeliz não grita: lamentos abafados, soluços de dor, essa macabra confusão com a voz do algoz, enchem de pavor a vizinhança. É chegado o momento da redenção que terá lugar com a intervenção da polícia d 15a a circunscrição. *** 3 de janeiro. O espetáculo circundante nada apresenta de novo. Ontem, eram onze horas, eu estava no meu quarto, escrevendo, passou um pequeno da vizinhança. Chegando em frente à nossa casa, deu boas-noites. Pelo jeito, pareceu-me que o dera para a minha irmã ou para a tal Paulina, que é uma vulgar mulatinha, muito estúpida, cheia de farofas de beleza e de presunção, que é ou que pode ser namorada. Achei aquilo inconveniente. Que um sujeito, passando por uma casa fechada, desse boas-noites a moças recolhidas num quarto de dormir. Nesse sentido, inquiri minha irmã, que desmentiu. Há em minha gente toda uma tendência baixa, vulgar, sórdida. Minha irmã, esquecida que, como mulata que se quer salvar, deve ter um certo recato, uma certa timidez, se atira ou se quer atirar a toda a espécie de namoros, mais ou menos mal intencionados, que lhe aparecem. Até bem pouco era na casa do tal Carvalho, onde se reumam toda a espécie de libertinos vagabundos; cortei essas relações. Agora é na casa do idiota do Sardinha, casa de positivista, o que quer dizer fábrica de namoros. Se a minha irmã não fosse de cor, eu não me importaria, mas o sendo dá-me cuidados, pois que, de mim para mim, que conheço essa nossa sociedade, foge-me o pensamento ao atinar porque eles as requestam. A tal Paulina é vulgar, chata como um percevejo, e a meu pai nunca perdoarei essa sua ligação com essa boa negra Prisciliana, que grandes transtornos trouxe a nossa vida. A uma família que se junta uma outra, de educação, instrução, inteligência inferior, dá-se o que se dá com um corpo quente que se põe em contato com um meio mais frio; o corpo perde uma parte do seu calor em favor do ambiente frio, e o ambiente, ganhando calor, esfria o corpo. Foi o que se deu conosco. Eu, entretanto, penso me ter salvo. Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente. Entretanto, é por meu pai e, por assim ser, levarei a cruz ao Calvário, pois que, se meu pai fez tal coisa, foi por supor que nunca nos atingiria, mas a desgraça não quis e a coisa nos atingiu. O filho da tal negra despediu-se do emprego em que o pus para ficar em casa escrevendo versos. É o que se dá comigo e me faz dia e noite sangrar de dor. Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. Há coisas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói — cepticismo que, atingindo as coisas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha própria entidade —, nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta. Hoje, pois, como não houvesse assunto, resolvi fazer dessa nota uma página íntima, tanto mais íntima que é de mim para mim, do Afonso de vinte e três anos para o Afonso de trinta, de quarenta, de cinqüenta anos. Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da minha vida e do meu espírito, e outro não é o meu fito. Aqui bem alto declaro que, se a morte m surpreender, não permitindo que as inutilize, e peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha. *** 4 de janeiro. A minha casa continua a aborrecer-me sobremodo. Ontem. De manhã, encontrei um sujeito, que me andou aqui na secretaria, a aborrecer-me, para mandar a cópia do decreto que lhe concedia as honras de alferes do Exército. Mandei, O simplório do homem, mal pagou a patente no Tesouro, meteu-se numa farda de linho branco e, agaloado, transita de sua residência para o lugar que trabalha. Vai mais garboso, mais inflamado. E às vezes olha em redor disfarçadamente. Há nessa inspeção desconfiança e orgulho. Desconfiança que os outros militares não o debochem, e orgulho, porque se distingue dos restantes civis. O pobre homem sentia o que todos nós sentimos a necessidade do lustre. Na nossa vida complicada, o lustre é tudo, e uma atmosfera de lustre é como um ambiente de carícias, e carícias que tanto mais precisamos, quanto a nossa vida é falta de outras satisfações. O burro do Lago , o diretor da contabilidade, é extraordinariamente idiota. É uma coisa que nada tem a ver com o que foi escrito acima, mas que, no entretanto, deu- me vontade de escrever. *** 5 de janeiro. Hoje, no trem, vim com uma menina que me despertou a atenção. Ela não era bonita, antes feia e sardenta, porém, de corpo, apetitosa, era dessas que os franceses chamam fausses maigres. Cheia de carnes, redondinha, ela despertava facilmente o furor báquico. Vinha no trem com pai e irmãos. Sentara em um banco afastado e, cobrindo-se de expressão dolorosa, repousava a cabeça sobre a mão, que, em começo, bonita, polpuda e abacial, acabava nas pontas de dedos feios, chatos. Mas o que me chamou a atenção foi um detalhe da toilette. Evidentemente menina pobre — mesmo as mãos denunciavam, naquelas pontas de dedos feios, os estragos do trabalho manual —, pobre, pois, não tendo talvez um vestido decotado e querendo sair com um assim, dobrara a gola do casaco afogado para dentro na altura das espáduas. A coisa foi boa, porquanto as suas espáduas eram das melhores. *** 6 de janeiro. Dia de chuva. Três horas da tarde, O sol começa a aparecer. Espreita por entre as nuvens. Dentre as matas das encostas altas, erguem-se fiapos de nuvens. Parece que pelas matas há uma enormidade de caieiras de verão. Os fiapos saem como novelos de fumaça. O verde varia de matiz. Onde mato grosso escuro é; onde ralo ou campina, claro. Passa de um para outro matiz bruscamente. Mangueira. A montanha é alta. O verde vai esmaecendo e para cima há cambiantes azulados. O Sol coa-se através de nuvens na altura da Tijuca. Há múltiplos matizes confundidos. Central. O Sol mais forte. As nuvens franjam-se de ouro. Como doidas correm para as bandas de Petrópolis. *** 7 de janeiro. A manhã bonita. Desço. O ar acaricia. Tudo azul. A paisagem é de algum modo européia. Praia Formosa. Serra dos Órgãos aparece por entre os morros de São Diogo e os de Barro Vermelho. Azul-ferrete com tons de aço novo. Os cumes beijavam as nuvens; à meia encosta, condensavam cúmulos. O mar aparecia espelhante, semelhava de nível mais alto do que a terra. Campo de Sant’Ana. Ar polvilhado de alegria. Azul diáfano. Tudo azul. As árvores verdoengas do parque destoam. O rolar das carroças é azul; os bondes azuis; as casas azuis. Tudo azul. *** 8 de janeiro. Ontem, à tarde, estive com o saboroso Carneiro, o Manuel Otávio, engenheiro dos esgotos de Niterói. Gosto imenso dele; é inteligente, é doce, é bom, mas há nele uma pontinha de dúvida, a meu respeito, que me apoquenta. Voltando só com ele da Rua Primeiro de Março, fomos tomar refresco no Cascata. Aí ele me disse: — Barreto, sou dos teus amigos o único que quer ficar obscuro. Contento-me em estudar a condução da merda dos niteroienses, e isso porque eles me pagam... etc. etc. Nisso, o Filomeno nos interrompe; continuando a subir pela Rua do Ouvidor acima, Carneiro foi despejando coisas dúbias, frases sem nexo, que eu decididamente não lhe compreendi o estado d’alma. Amores... Aborrecimento comigo... Falta de dinheiro... Que seria? Que desconforto lhe causaria isso, a ele, tão jovial, tão calmo sempre? Hoje, 8, domingo. Pleno Leme. Cediço. Nada novo. Não há moças bonitas. Só velhas e anafadas burguesas. Turcos mascates e suas mulheres também. O João, um imbecil do meu gasto pessoal, o João T... B..., foi comigo. Fomos ao fortim. Canhão do século atrasado. Ruínas portuguesas. Esforço dos lusos. Povoamento do Brasil. Pedro Álvares Cabral. Bandeirantes. Jacobinos idiotas, burros, ingratos. Ipanema, tal qual o Méier. Duas vezes, pelo caminho, encontrei o Serrado a cavalo. Chapéu de cortiça inglês. De branco. Pela rua, fazia o que ele tem feito sempre na vida, galopar e saltar todos e quaisquer obstáculos, fossem quais fossem. Homem águia. Pavorosa vontade de urinar. Passeio com o João pela avenida a construir. Cais do beira — mar. Travessa do Maia. “Ei-la”. Número 22. Que doçura de fisionomia. Pálida. Calma. Cílios poucos. Não há nela nem revolta, nem resignação. Interessa-me. Queria-a para minha mulher. Mas eu... Ah! meu Deus! Há de ser sempre isso. Há uns tempos a esta parte, vai se dando uma curiosa coisa. Na rua, nos bondes, nos trens, eu me interesso por certas moças e às vezes por cinco minutos chego a amá-las. Procuro-lhes a moradia. Passo duas, três vezes pela porta timidamente, gauchement — onde me levará isso? Toma tento, Afonso! Não te precipites. Olha bem. “Nosce te” ... *** Reflexões no Leme. Divertimento que, tirado dos colégios, foi fazer, no Leme, as delícias dos marmanjos — o balanço. *** Há aqui alguns ingleses, com máquinas fotográficas, pavorosos; (parodiando) porque todos os ingleses não ficam na Inglaterra? *** Quando se quer divertir, deve-se andar só. Os imbecis mesmo perturbam. *** Se toda a humanidade desse passeios ao Leme, teria mais felicidade. *** A felicidade depende mais das nossas cogitações interiores, do que mesmo das circunstâncias exteriores que nos envolvem. *** As nuvens, ao correr, esgarçam-se nas pontas das montanhas, ao jeito de fumaça nas locomotivas. *** 10 de janeiro. Ontem, dia morto. Nada de novo. Nem uma nota, nem um pensamento. Atravessei a cidade, dei as minhas aulas. Escrevi quatro páginas do meu livro; não foram boas, ou antes, não estão firmes, vigorosas como eu as gosto. Farei o trabalho novamente. Hoje, dia quente, cheguei um tanto mais tarde na secretaria. À minha banca, veio-me falar o major Vital. Esse major é um pretinho, fulá, magrinho, de crânio deprimido, olhos quase à superfície da fisionomia, pele de sapato velho que nunca foi engraxado. Esse pretinho usava farda de major honorário, e tendo estado no Paraguai, obtivera umas honras militares. Depois, com sucessivos acontecimentos, as honras foram aumentando e, um belo dia, surge um, em Pernambuco, de igual nome, branco, que também tinha estado na campanha. Papéis pra lá, papéis pra cá, o branco foi considerado como sendo o que de direito. O major foi despedido de servente do Arsenal de Guerra, excluído do asilo, ficou na miséria. Vou-lhe dar alguma roupa velha e uns cobres. Não tenho absolutamente a convicção de que seja ele o verdadeiro major, nem tampouco que não é o outro ou um terceiro; entretanto, julgo que a ele competiam as honras; pobre e obscuro, ele precisava qualquer coisa para disfarçar isso, e ainda mais negro... Por falar nisso, o Belo, primeiro oficial, que foi do gabinete do Benjamim, contou-me que a nomeação do Hemetério (é um negro), para professor do Colégio Militar , foi sustada na gaveta por ordem do Lauro Sodré, que sempre lhe recomendava a ele ir lhe pedir para expedir, que esperasse, que esperasse. É singular que, fazendo eles a República, ela não a fosse de tal forma liberal, que pudesse dar um lugar de professor a um negro. É singular essa República. *** Em geral, os homens notáveis do passado são admirados e prezados, não pelo que afirmaram peremptoriamente, mas pelo que supuseram. *** Da Piúca, a maravilhosa Piúca, a belíssima: Um rapaz recitou uns versos, avisando antes que eram do Macedo Papança. A abando de c recitar, ela vai a ele e lhe diz: — Gostei muito desses versos do Sancho Pança. Contou-me o Antônio Noronha Santos, que ouviu do Carlos Silva, com quem se passou o caso. *** 12 de janeiro. Ontem não fui à secretaria. Passo mal. Uma impressão de cansaço, uma vontade de nada fazer, tenho fadiga de corpo. Descendo, vim à Rua do Ouvidor. Encontrei o Carneiro, o Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, que sofre de “bovarismo” revolucionário. É um rapaz a quem um desgraçado acidente cortou-lhe as pernas; entretanto ele, em cima das andas, é como se montasse um corcel de guerra. Mata, esfola, derrota exércitos e esquadras. Derruba governos e concerta países. Há nele a alma de um alferes do Exército do Brasil e, se não o foi, deve-o unicamente a seu aleijão. Se o fosse, ele já se teria envolvido em todas as mil mazorcas que tem havido ultimamente. No fundo, é um bom rapaz, algo inteligente, cavalheiro, mas maníaco de possuir um talhe de herói de Plutarco, que o ridiculariza. Ele tem um revólver Nagant, que é mais um canhão, perfeitamente característico do seu gênio: não dispara, quando é apontado ou acionado. Ama a farda, os militares; sabe o nome dos oficiais de cor, seus corpos, suas particularidades. As coisas de caserna tentam-no. No fundo, ele é um alferes que se perdeu pelas pernas. Hoje. Chove pavorosamente. Dia vazio, não há notas a tomar. Do jornal de hoje: “A cura da tuberculose. No meu consultório, à rua Mariz e Barros n.º 35. Uma consulta por semana, fornecendo o meu específico — 30$000. Na tuberculose incipiente, quatro consultas bastam — 120$000. Na tuberculose declarada crônica ou subaguda, para a cura, dez consultas — 300$000, em primeiro período. Na tuberculose, segundo período, não febril, quinze consultas, para cura— 450$000. Na tuberculose aguda, primeiro e segundo períodos, febril, permitindo o doente vir ao consultório, de quinze a vinte consultas — 450$000 a 600$000. Na tuberculose, em começo do terceiro período — um conto a dois, conforme a resistência da moléstia. Haverá mais barateza? Não obstante, propalam que sou um ‘careiro’! E gastam com viagens e outros profissionais ‘contos de réis’ para terem a certeza de ‘falecer’. Dr. Platão de Albuquerque.” *** Veio-me à idéia, ou antes, registro aqui uma idéia que me está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e maior sopro de epopéia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão. Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde. Temo muito pôr em papel impresso a minha literatura. Essas idéias que me perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance, e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima delas. Enfim — “une grande vie est u e n pensée de la jeunesse réalisé par l’âge mür”, mas até lá, meu Deus!, que de amarguras!, que de decepções! Ah! Se eu alcanço realizar essa idéia, que glória também! Enorme, extraordinária e — quem sabe? —uma fama européia. Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado? Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço. Tentarei e seguirei avante. “Alea jacta est”. Se eu conseguir ler esta nota, daqui a vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver! Deus me ajude! *** 14 de janeiro. Ontem passei o dia em casa. Um dia bom. Folheei os meus livros, cortei os artigos dos jornais franceses e preguei-os de encontro à lídima prosa de Rui Barbosa. E um perfeito retórico esse tal Rui, glória do Brasil e honra da América do Sul. Pelos dias 16 a 20 de novembro, ele publicou uma carta na Tribuna, fazendo considerações sobre os acontecimentos de 14 e 15. Havia o seguinte: ele dissera que a noite de 14 fora prenhe de ameaças, mas que a providência divina, protegendo o Brasil, permitira que a manhã de 15 fosse clara, radiante e azulada, como convinha a uma manhã cheia de boas novas... Entretanto, choveu muito na tal manhã, que foi feíssima, haja visto o testemunho dos que viveram e viram. Como a retórica exigia, lá vai pura, azulada e radiante. Pois preguei os meus artigos, fumei muito e comi à vontade. Perdi a esperança de curar meu pai! Coitado, não lhe afrouxa a mania que, cada vez mais, é uma só, não varia: vai ser preso; a polícia vai matá-lo; se ele sair à rua, trucidam-no. Coitado, o seu delírio cristalizou-se, tomou forma. Pobre de meu pai! Uma vida cheia de trabalhos, de afanosos trabalhos, acabar assim nesse misterioso sofrimento que me compunge! Hoje, 14, desci da casa, vim à secretaria. O S..., que é o chefe, um curioso tipo de moleza de caráter e de ignorância, quis repreender-me, altercamos e ele retirou-se convencido. Deu-me, entretanto, um grande trabalho. Cópias dos acontecimentos do Juruá. Estou as tirando. A ênfase da linguagem das partes dos oficiais pareceu tratar-se de combates na Manchúria. Palavras bombásticas, frases grandíloquas, a retórica, sempre a retórica. Havia numa delas a palavra da gíria: “corretismo”. O dia acabou morno, sem novidade. *** 16 de janeiro. Um livro que pensei. Tibau, filho de uma rapariga que fugira da casa de seu pai em companhia de um valdevinos, que pouco depois a abandona, educa com grande dificuldade esse filho, que chega a estudar medicina; mas, no terceiro ano, sem o adubo que era sua mãe, a planta fenece sem arrimo e, p r fim, por recomendação de um colega, vai ser professor de História do o Brasil, num colégio em Botafogo; o diretor, notando que era um desar para seu estabelecimento ter um professor sem título algum, arranja-lhe o de major da Guarda Nacional. Eis senão quando o Major Tibau, que do seu avô pouca notícia tivera, vem a saber que ele acabava de morrer no Porto, deixando-lhe (e reconhecendo-o como neto) toda a sua fortuna: dois mil contos. No curso das suas lições de história, Tibau tinha adquirido um grande amor do Brasil e acariciara o sonho de uma Sociedade de Folclore, que se destinava a recolher os cantos, as tradições e a poesia popular da nossa terra. Cultivar e festejar as datas familiares com o sainete nacional e os respectivos manjares. Possuidor dessa fortuna, funda a sociedade, com a qual é explorado por jornalistas, poetas, estudantes, debicado pelos ministros e funcionários, a quem se dirigiu para pedir uma subvenção. Morre numa estalagem, às sete horas da noite, estalagem a que se recolhera com um preto velho, o Nicolau, que, fazendo “ganchos”, ia-o fazendo viver; morre, mandando que se lhe abram a porta e a janela, para ouvir melhor a cantilena da criançada ao luar. *** 17 de janeiro. Desde domingo que não tomo notas. Hoje, 17, vou recapitular estes três dias. Domingo, passei-o em casa. Cortando artigos do Figaro do ano passado e os pregando sobre a lídima prosa do nosso Rui Barbosa. Enchi o dia assim e enchi-o agradavelmente, suavemente. Meu pai freqüentemente me ia apoquentar. Pobre insano. Não quer comer e é preciso forçá-lo, e as perseguições que ele tem no espírito não o deixam sossegar. Às vezes, é preciso obrigá-lo a comer, porque, diz ele, no estado em que está, chamariam-no de cínico, porque come com satisfação. Tendo requerido uma certidão de sua vida ao delegado, veio, nesse dia, o inspetor verificar. O policial entrou na minha casa de cigarro na boca e não o tirou; não atribuo isso à arrogância, pois que ele parecia um rapazola simples, antes a sua absoluta falta de educação. Percebendo a patetice de meu pai, ele apressou o atestado e saiu um tanto acanhado. Coitado, não era mau! Segunda-feira vim à secretaria, passaram-me em mãos cópias das coisas do [ilegível], combate entre brasileiros e peruanos. Não foi combate, pois que cem dos do Peru e cento e pouco dos nossos, que tirotearam durante vinte horas, só podia haver escaramuça. As partes, consoante o jeito nacional, vêm cheias de frases grandíloquas, que fazem crer que se trata da rendição de Porto Artur... A Retórica! A Retórica! Entretanto, elas me deram uma consolação: é a energia e a vitalidade que os brasileiros apresentam naquela região. Não sendo nova essa energia, me parece que ela serve unicamente à humanidade como desbravadora, como batedora, sentinelas avançadas de outra gente que há de vir. Edmundo Bittencourt. Como amostra, pois que não é dos mais primorosos, guardo esse artigo desse jornalista . Os seus processos eram invariavelmente esses; entretanto, com alguns meses de exercício da linguagem, apurara-se um pouco, perdendo os termos rebuscados e antiquados, que ele tinha hábito de usar. É curioso como eu notei, pela primeira vez, a fisionomia desse homem. O filho do Castagnino, hoje Alexandre, fizera exame e seu pai nos convidara a ir jantar no Silvestre, num restaurante que ficava por cima dos bondes. No salão do hotel havia pouca gente, e entre essa pouca me chamou a atenção um senhor magro, de bigodes louros, de olhar de cão de fila ao cio, que em espanhol macarrone perguntava a uma rapariga airada dessa proveniência: — ¿Quiere usted camarones con quiabos? — Si, como non. Acompanhei essa fisionomia e, pouco depois, na Rua da Quitanda, onde o Serrado trabalhava como solicitador, fui-lhe por este apresentado; passando por ele e como ele não me cumprimentasse, decidi também não faze-lo. Meses depois, ele fundou o Correio da Manhã, órgão da regeneração nacional . * *.* Hoje, à noite, recebi um cartão-postal. Há nele um macaco com uma alusão a mim e, embaixo, com falta de sintaxe, há o seguinte: “Néscios e burlescos serão aqueles que procuram acercar-se de prerrogativas que não tem. M”. O curioso é que o cartão em si mesmo não me aborrece; o que me aborrece é lobrigar se, de qualquer maneira, o imbecil que tal escreveu tem razão. “Prerrogativas que não tenho”... Ah! Afonso! Não te dizia... Desgosto! Desgosto que me fará grande. *** 18 de janeiro. Vim no trem com o Viana , pai e filho, neta e irmã. É um tipo curioso de aventureiro esse Viana. Fundou um jornal, a Revista da Época, do qual, por lábias sábias, obrigou-me durante três números a ser secretário, do que me descartei a muito custo. A revista dele é uma espécie de galeria de retratos de varões obscuros. Quando lhe escasseiam os recursos, ele publica um número e, no dia seguinte, corre aos retratados para buscar dinheiro. Anda agora de gorro com um russo. Curioso vagabundo que busca fortuna. Saltou no cais de Pharoux, arranjou um título universitário, é doutor, assim como, se saltasse na gare de Orléans, seria conde ou marques. Dentro do código, como o Galvez e outros, ele com certeza pretende roubar o Brasil. Há ainda com ele o Raposo, tradutor de inglês, um português que foi criado de hotel em New York. Chegado aqui, insinuou-se, e de tal maneira, que em breve fez-se examinador de inglês, em cujo lugar fez uma tabela de aprovações, creio que só. Distinção — duzentos mil-réis; plenamente — cento e cinqüenta mil-réis; simplesmente — cem mil-réis. Para melhor “cavar”, casou-se e, se ainda não fez da mulher um chamariz, foi porque as coisas não apertaram. Ele, com o Viana, estão fazendo um número em inglês. A revista, aparecendo em duas línguas, “morderá” melhor. Além destes, esporadicamente, surgem lá outros: gente honesta, as vezes, mas que, desanimada, se atira ali como a uma gamela de porcos, gente faminta. Eu, graças a Deus, livrei-me dele. *** 19 de janeiro. Dor de dentes pavorosa. É uma coisa soberanamente imbecil, dói-me a cabeça, as faces. Eu vejo o mundo mau através da minha dor. O mundo é decididamente mau, porque o vejo coado na minha dor de dentes. Ela vai passando. As burrices do 5...tiveram o efeito do creosote. O Edmundo Bittencourt foi preso por causa do artigo de que falei há dias; alguns jornais, poucos, protestaram, entre eles a Tribuna, a quem o chefe de polícia mandou avisar, p r um capitão de o sua milícia, que não admitia censura à sua administração. O presidente da República (parece) mandou que o chefe o soltasse, e este soltou-o, fazendo-o constar que o fazia por seu livre alvitre. Esse chefe de polícia, Cardoso de Castro, é a besta mais imbecil que há no Brasil. Irritado, ignorante, esfomeado de dinheiro, babuja-se todo para ficar no lugar em que está. O seu relatório, que é a coisa mais impagável dessa vida, pretende envolver nos distúrbios de novembro platônicos monarquistas, porque, diz ele, fazer propaganda da monarquia é o maior crime possível. A monarquia há de voltar, e eu hei de vê-lo, como chefe de polícia, dizer que a propaganda da República é pior que matar o seu próprio pai. Áulico, esfomeado, imbecil e ignorante, sem capacidade para ser liberal. Desonesto, porque consentia que seus filhos, eu os conheci, recebessem subvenções de bicheiros e morassem em casa de propriedade deles sem pagar. Disso eu sou testemunha. *** 24 de janeiro. Desde sábado, ou antes, desde sexta-feira (20), que não tomo notas. A 20, dia santo de São Sebastião, semi-feriado, vim para minha desgraça à secretaria e de tal forma trabalhei nesse dia, que resolvi não vir no dia seguinte, em que fui à Biblioteca Nacional tomar notas para o meu romance. Pedi maio de 1888; vindo-me, corri o mês, desde 10 até 16, onde recebi confirmação do que pensava. Li, por acaso, algumas páginas do Ateneu e as achei soberbas; entretanto é de desanimar ‘que um livro como aquele não seja lido aos 10.000. O Eça, me parece, escrevia inferiormente, e os seus processos de graça são muito mais grosseiros que os de Raul Pompéia. Entretanto... Ah! O Brasil! À tarde, muito conversei com o Alcides sobre nossa pátria, sobre nossas coisas, nossa política. O Alcides, Alcides Maia, é um inteligente rapaz, inteligência de bom quilate, dessas que não fazem coisas de raio, mas marcham lenta, seguramente, a deixar sulco como uma relha de arado. Conversamos muito e agradavelmente. Éramos eu, o Otávio de Sousa, um bom matemático, que se intromete agora pelas coisas da arte e de sociedade, estreou no positivismo mundano, eu penso rapaz de talento; éramos eu, Otávio e Alcides, depois chegaram o Araújo Viana, músico, e o Cartier , um belo rapaz do Rio Grande, bonito e forte, amplo de gestos e de voz, simpático. Como ficasse tarde, recolhi-me ao quarto do Tigre , paredes e meia do Alcides. Às duas horas, ele chegou e mais dois para buscar o Amarante , para o baile dos Democráticos. É um tipo de literato do Brasil, esse meu amigo Tigre, inteligente, pouco estudioso, fértil, que usa da literatura como um conquistador usa das roupas — adquirir mulheres, de toda a casta e condição. Ia aos Democráticos com o Domingo, que é também literato, e daqueles, que pensa que o literato deve ser o inimigo do casamento, da moral, das coisas estabelecidas, com tintas de darwinismo e haeckelismo, velhíssimas coisas que ele pensa novas, escreveu um romance rebarbativo e idiota, para fazer constar que é um voluptuoso, um lascivo, e põe-se nas ruas a fazer os mais baixos comentários sobre as mulheres que passam: “Que peixão! Que bunda! Oh! A carne!” Isso! Aquilo! É um imbecil. Também o Miguel Austregésilo, gastador dos mais velhos paradoxos que se conhece. Passando seis meses em Paris, ou antes, em Bruxelas, trazia o bolsos cheios de cançonetas que s nós conhecíamos aqui desde dois anos. O outro, Amarante, é um bom menino. É preciso saber que a todos eles eu devo valiosos favores. *** 26 de janeiro. Ontem, quarta-feira, fui a casa do Santos, Antônio Noronha Santos, bacharel, irmão do João, engenheiro, e Carlos. Conversamos amistosamente e inteligentemente. Voltei pra casa, eis senão quando dou com um baile em forma. Eram dez horas da noite. Havia canto, dança, etc. Ora, no estado que meu pai está, com os poucos recursos que temos, positivamente aquilo me aborreceu. Como permitia o meu orgulho que eu recebesse gente, sem oferecer-lhes boas coisas? Como? Demais, meu pai, aluado, na saleta, e o baile, a roncar na de visitas. Não me contive e manifestei logo o meu descontentamento. Isso, ao depois das visitas saírem, deu lugar a um destampatório familiar. A minha vida de família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu não sei como adaptar-me. Será o meu “bovarismo”? *** 27 de janeiro. Ontem, ao sair da secretaria, passei pela Rua do Ouvidor e não vi a Palhares. Acho-a curiosa por causa do mestiçamento que nela há, disfarçado pelos cuidados meticulosos da toilette: perfumes, pomadas, pós, etc. Isso aborreceu-me mais do que estava aborrecido e na botica tive sono. Sai e tomei um bonde e fui à Prainha. A rua está outra, não a conheci bem. Se os prédios fossem mais altos, eu me acreditaria em outra cidade. Estive na esquina dela com a avenida, a famosa avenida das indenizações, subi-a a pé, tomei pelo que resta de beco da Rua da Prainha, agora em alargamento, e segui pela Rua Larga de São Joaquim, prolongada e alargada até o Largo de Santa Rita. A rua quebra um pouco do primitivo alinhamento, mas mesmo assim ficará bela. Entretanto, como vêm já de boa administração essas modificações, acredito que o Rio, o meu tolerante Rio, bom e relaxado, belo e sujo, esquisito e harmônico, o meu Rio vai perder, se não lhe vier em troca um grande surto industrial e comercial; com ruas largas e sem ele, será uma aldeia pretensiosa de galante e distinta, como é o tal de São Paulo. Tomei pela Rua Larga e fui à fábrica do Rink ver lá o João, o João Noronha Santos, engenheiro e subgerente lá. Conversamos até às nove horas. Carreguei-lhe umas caixas de papelão, piedosa mania, e uns números do Figaro. Tomei o trem e fui pra casa, a minha espectral casa. Cá estou na secretaria; o barão, em frente, vigia-me por cima dos livros que acumulei nas minhas ventas. O dia vai correr e eu vou trabalhar um tanto. *** 28 de janeiro. Ontem à tarde, fui ao banco receber um empréstimo que propus. É uma casa singular aquela, uma espécie de agiota privilegiado pelo governo. Demorei-me lá duas horas e às oito fui jantar na Estrada de Ferro; paguei ao Chambá o jantar. Voltei para casa e li até à uma hora o bovarismo do Gaultier, um curioso livro que se propondo revelar uma coisa já muito pressentida, entretanto, é duma frescura de brisa fagueira dos poetas. Estou lendo e acho lisonjeiro para mim achar nele vistas que eu já tinha sentido também. Deitei-me e dormi bem, sossegado e satisfeito, porque tinha trezentos e tantos mil-réis em casa. Depois dos grandes sofrimentos por que passou minha casa, eu ando pela vida apavorado, temendo desgraças, moléstias e tal fúria de tal forma vai se apossando de mim, que me vou azedando, e as rusgas que tenho mantido em casa, me parece, se explicam assim. Hoje, ao chegar à secretaria, fui intimado a cumprimentar o Argolo, que fazia anos; lá fui. Idiota esse barão e esse Argôlo. O mês vai se encerrar e o meu livro só tem pronto dois capítulos, e quem projeta trinta, é pouco trabalhar. Vou esforçar-me mais e creio que até fevereiro terei três capítulos mais. Entretanto, que de dúvidas me assoberbam sobre o seu mérito, sobre o seu valor! *** O Bovarismo de Jules Gaultier. Impressões de leitura. O bovarismo, diz seu autor, é um livro que não visa instituir nenhuma reforma, se aplica a matéria que os homens, mais que nenhuma outra espécie, acreditam marcar, eles mesmos, uma forma; trata da evolução na humanidade, isto é, dos modos de mudança nesta parte do espetáculo fenomenal em que o fato da consciência parece atribuir ao ser que sofre a modificação, com o poder de dar causa, o dever de dirigir. Sob essa ilusão, a vontade humana acredita intervir no turbilhão de causas e efeitos que a envolvem. A constatação, verificação do fato, tende na linguagem a se formular em regra moral, porque a ilusão do fato, engendrada pelo reflexo da atividade na consciência, é tão forte que domina as formas da linguagem. O bovarismo, livro, é um aparelho de óptica mental. É do prefácio. O bovarismo é o poder partilhado no homem de se conceber outro que não é. Precisar o papel do bovarismo como causa e meio essencial da evolução na humanidade. O mal, o bovarismo nos personagens de Flaubert, pode ser apreciado com uma rigorosa observação: aumenta com o afastamento que se forma entre o fim a que está voluntariamente assinalado e o fim para que os imantava naturalmente a sua vocação natural. A pessoa humana A imagem que, sob o império do meio, circunstâncias exteriores, educação sujeição, a pessoa forma de si mesmo. Ser real, ideal, tendências hereditárias, etc. As linhas se coincidem quando a impulsão, vinda do meio circunstancial, age no mesmo sentido que a impulsão hereditária. Nos casos de Flaubert, essa convergência não se produz. O ângulo dessas linhas é o índice bovárico, mede o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário, entre o que é e o que ele acredita ser. Na Educação Sentimental, de Flaubert, mímica de valor desigual. Diz o Gaultier que, se na Ema Bovary o bovarismo foi negativo, deve-se a sua falta de crítica. *** Sem data. Bem cabível. “Malheureusement ii y avait chez le frère de Mme Pompadour un amour-propre ombrageux, une inquiétude perpétuelle de l’estime qu’on faisait de sa personne, une susceptibilité toujours en quête et en alarme d’une ironie ou d’un mépris, une tendresse pleine de mefiances et de soupçons, un besoin de se tourmenter et de se rendre malheureux dans lequel faisant tout à coup irruption une noire humeur accompagnée de rudesses et de brusqueries”. Mme Pompadour. Goncourts. É curioso verificar que essas linhas descrevem inteiramente o meu caráter e, se de qualquer forma a metempsicose é verdade, e em minha alma há qualquer coisa do desventurado irmão da grande favorita. *** 30 de janeiro. No sábado, fui a casa do Alcides Maia ler o meu livro; acredito que fossem sinceros os elogios que dele me fez, o que me anima a continuá-lo; entretanto, o pensamento foi ainda pouco compreendido, eu o creio, porque ele me tenta a pôr nele um personagem que o livro não comporta. A leitura dos dois capítulos primeiros durou uma hora, e ele fez pequenas observações, emendando, que eu aceitei . Cada vez mais simpatizo com esse Alcides. É inteligente, ilustrado, estudioso, delicado de sentimentos. Ele é muito diverso da maioria dos jornalistas e rapazes de letras com quem tenho relações. Não é que lhe falte orgulho, altaneria, Deus nos livre que ele não o tivesse. Tem- no, mais pautado, discreto; e nele esses sentimentos modelam a sua melhoria. Acho nele dois pequenos defeitos: é jornalista e é político. O primeiro é simplesmente um meio de vida, desculpa-se; o segundo é que n o. Entretanto, como ele nascesse daquele fermentado Rio Grande ã e de família abastada, não poderia escapar a ela. Domingo, fui ao Papa Lebonnard, drama em quatro atos de Jean Aicard. É um drama de moldes velhos, feito por um autor novo e de talento. A Lucinda, a minha querida Lucinda, um gosto que foi meu pai quem mo deu, fez o papel com uma sobriedade, com uma elevação, que admira em língua portuguesa. A Lucinda não tem ênfase e com poucos recursos de fisionomia ela tira um partido excepcional. É como um escritor de pequeno vocabulário, mas com grande conhecimento da sintaxe e um grande sentimento da língua. O Cristiano não é lá essas coisas, esforça-se, trabalha, sabe, mas, como disse um português, não tem o teatro no peito. O Ferreira é melhor; entretanto, com se sentir nele um ator inteligente, vê-se que lhe falta a observação do tipo que representava, um nobre, um marquês. Bom dia! Chovia a cântaros. A francesa de defronte à botica continua a interessar-me. É Louise Léon, costureira. Magra e alourada e eu... Afonso! Afonso! Estou na secretaria a aborrecer-me com os decretos; levemos a cruz ao Calvário, por amor ao meu pai. Hoje vou pagar ao J... P... o último dinheiro que meu pai lhe deve. Procedeu conosco como um carrasco. Aborreceu-me e acirrou-me como um agiota. Graças a Deus vou pagar-lhe e que Deus me dê felicidade suficiente para pagar tudo que meu pai deve. E se eu isso fizer e se conseguir cercar-lhe o resto da vida da abundância que ele tem direito, eu só peço três coisas: Um amor Um belo livro E uma viagem pela Europa e pela Ásia. *** 31 de janeiro. Último dia do mês em que, com certa regularidade, venho tomando notas diárias da minha vida, que a quero grande, nobre, plena de força e de elevação. É um modo do meu “bovarismo”, que, para realizá-lo, sobra-me a crítica e tenho alguma energia. Levá-la-ei ao fim, movido por esse ideal interessado e, se as circunstâncias exteriores não me forem adversas, tenho em mim que cumprir-me-ei. Ontem, saindo da secretaria, fui à Rua do Ouvidor, estive com alguns idiotas e fui à botica. Encontrei o V..., C..., um meu antigo colega de colégio. Bom rapaz, avarento, míope de inteligência e sem nenhum bovarismo. Está a se formar em medicina e com isso enche o seu ideal de fazendeiro médico. Deixando a botica, fui à Rua do Ouvidor; como estava bonita, semi-agitada! Era como um boulevard de Paris visto em fotografia. Fui de trem, meditei durante a viagem sobre o meu livro, e em casa compulsei as notas para acabar o terceiro capítulo. Agora acabo de achar uma pequena cena para o segundo, com a qual dar-lhe-ei mais força, mais vida, mais verossimilhança. Agita-me a vontade de escrever já, mas nessa secretaria de filisteus, em que me debocham por causa da minha pretensão literária, não me animo a faze-lo. Fá-lo-ei em casa. *** 1 de fevereiro. No dia 10 de fevereiro, com mais forte razão que nos outros, eu vim à secretaria. Logo ao chegar, fui chamado a falar com um tal B..., que aqui há. Lá fui. Tratava-se não sei de que maçada tinha que ver comigo. Esse B... é o tipo mais curioso de militar burocrata, e burocrata fraco em ortografia e na sintaxe comum. Enchi-me da precisa altivez para falar com ele, e lá não foi preciso usá-la, porquanto ele nada me disse que a provocasse. Ainda bem. O S..., o chefe, atrapalhou-se de tal modo na folha, que não pudemos receber dinheiro; recebi, entretanto, o de meu pai, no Tesouro, o que constitui para mim um grande aborrecimento. *** 2 de fevereiro. No dia 2, dia das candeias, vim à secretaria receber o dinheiro e por sinal que nela me demorei até as duas e meia horas da tarde. Saindo, fui à igreja da Candelária e, como estivesse algum tanto obtuso, não recolhi nenhuma idéia, nem qualquer emoção. No entanto, com o enterro do Patrocínio não se deu o mesmo. Propalado pelos jornais que esse jornalista tinha sido a alma da Abolição, o populacho à última hora agitou-se e fez-lhe a manifestação de uso: coche puxado a braços, ululos pelas ruas e discursos de cidadãos mais ou menos sequiosos de renome, que aproveitam a ocasião para aumentá-lo um pouco. Quem conheceu o Patrocínio como eu o conheci, lacaio de todos os patoteiros, alugado a todas as patifarias, sem uma forte linha de conduta nos seus atos e nos seus pensamentos, não acredita que pudesse ter sido, como dizem, o apóstolo da Abolição. Necessariamente, ele se serviu da coisa como um meio de arranjar facilmente dinheiro, explorou-a em seu proveito, na parte pecuniária e na parte gloriosa. Isso ele o fez com o máximo interesse e a máxima baixeza. Eu sei bem que b ixos móveis levam a altas coisas, mas isso não a se deu com o Patrocínio. A lei 13 de maio vinha de longe, era convicção da nação a injustiça da escravidão, não precisava jornalistas nem evangelizadores para mostrar-lhe a injustiça. Quem notar — basta faze-lo de 1822 — as referências que os nossos governantes fazem à coisa, sente que eles o fazem com vergonha, com desazo, sentiam-no a ilegalidade, a injustiça; e esse sentimento, que se foi espalhando pelo país, aumentou extraordinariamente depois da guerra do Paraguai e foi como, se dando a lei de 1871, não teve para encarná-la senão o funcionário que a subscreveu, o visconde do Rio Branco, ministro naquele tempo. A lei dos sexagenários foi assim também. E, quando já era quase universal no Brasil esse amargo sentimento, é que apareceu seu Patrocínio, que, sem honestidade e sem grandeza, aproveita-se da história e, pelo “jornalismo”, consegue ser elevado à altura de um apóstolo, de um evangelizador. Demais, há e houve sempre entre nós um grande sentimento liberal, com certas restrições, em favor dos negros. Eu vi o enterro; compungido, do redator do Novidades, o último jornal escravocrata que houve aqui, o Alcindo Guanabara. Se era ao amigo que ele ia ao enterro, mentia; eles nunca o foram; se era ao tribuno, mentia, porquanto sempre foram adversários; tartufo e jornalista, o que é uma e mesma coisa. As ruas cheias tinham um aspecto híbrido, pardo, e os discursos choveram de todas as sacadas da Rua do Ouvidor. Sonetos e mais longas poesias também. E o Rafael , no Largo do Rossio, fez um extraordinário — pois fez populares chorar — um extraordinário discurso. Eu não ouvi; tenho pena. *** 20 de fevereiro. Há mais de dez dias que não tomo notas. Nada de notável me há impressionado, de forma que me obrigue a registrar. Mesmo nos jornais nada tenho lido que me provoque assinalar, mas como entretanto eu queria ter um registro de pequenas, grandes, mínimas idéias, vou continuá-lo diariamente. Ontem, estive em casa do Tigre, com Alcides Maia, que na verdade é um rapaz que promete. *** Sem data Saião, amanuense comigo em 1904 e 5. Burro. Pobre. Tonto de sua família — Saião Lobato e Costallat. Ignorante. Fumaças de escritor. Escreveu uns pensamentos e reflexões que eu devo ter entre os meus livros. Curiosos de asnáticos. Como lhe chegassem aos ouvidos que eu estava escrevendo um livro — o Clara dos Anjos — deu-se para espalhar que estava escrevendo outro. Sobre botânica e zoologia. Coisa transcendente. De agora em diante, está no meu trato. Registrarei as suas palavras e as suas coisas. *** É incrível a ignorância dos nossos literatos; a pretensão que eles possuem não é secundada por um grande esforço de estudos e reflexão. Presumidos de saber todas as literaturas, de conhecê-las a fundo, têm repetido ultimamente as maiores sandices sobre o Gorki, que anda encarcerado na Rússia, por motivo dos levantes populares lá havidos. Há dias, conversando com o Tigre, ele me disse que esse Gorki nada valia — escrevera uns contos, coisas de fancaria socialística. É incrível, mas é verdade. Quando eu lhe disse que o Máximo tivera o Prêmio Nobel, ele se admirou — não sabia . Entretanto, Tigre é uma das esperanças da geração moderna. Domingos, bom rapaz, algo mais ilustrado que a maioria dos novéis literatos, cerebrino autor do Sê Feliz, vai fazer um discurso sobre o Bordalo Pinheiro. Não acredito que essa coisa do Bordalo seja sincera. Como caricaturista, ele era um pesadão, a sua caricatura era alguma coisa barroca, com os motivos portugueses desgraciosos, folhas de parra, pipas de vinho, suínos, etc. etc. Desenhista, eu o não conheço. O que se salva nele é o ceramista, e esse só alcança a Portugal, com quem, eu penso, ele não há de querer repartir a glória. Sendo assim, é positivamente idiota e sem razão essa manifestação que lhe vão fazer. Eu tenho notado nas rodas que hei freqüentado, exceto a do Alcides, uma nefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e menores. Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os cacoetes, a estrutura da frase, não há dentre eles um que conscienciosamente procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas assim. A pouco e pouco, vou deixando de os freqüentar, abomino-lhes a ignorância deles, a maldade intencional, a lassidão, a covardia dos seus ataques. *** E como tencione fundar uma revista com o Alcides Maia e mais outros, só me encontro com literatos aos sábados, e com estes do Alcides, que, se não têm todos talento, têm vontade, cavalheirismo e tenção de qualquer coisa. *** Juca Rocha era um conhecido proprietário de casa de jogo. Sustentando, dirigindo estabelecimentos dessa natureza, mantendo a família num luxuoso palacete em Botafogo, e freqüentando ela a “gente” hors ligne de lá. Suas filhas casaram-se com vários magnatas. É um caso curioso e denunciador do relaxamento dos nossos costumes. Da sua casa de jogo, na Rua de São José, eu vi sair senadores, deputados, militares, etc. etc. *** Contou-me o Luís: Um oficial, quando cadete, se amigara com uma mulher, madame Cartomante; ao seu enterro, quando foi esse oficial, o carro, por mais que o cocheiro fustigasse os cavalos, não se movia. O acompanhamento já ia longe, quando o alferes resolveu não acompanhar, mandando que o carro seguisse outro caminho. O carro, então, rolou placidamente. *** Sem data. Amanheci mal, tive até um sonho erótico. Saí às nove horas, fui à missa na igreja da Glória. Como estivesse embotado com a má noite que passei, não pude tomar uma nota. Vim à cidade, almocei com os Batistas, bons rapazes. Fui ao Leme, aborreci-me. O Metelo, um rapaz gago de Mato Grosso, caceteou-me enormemente. O Pereira, burro e sem nenhum relevo, encheu-me de sono a volta. Por desencargo de consciência, fui à casa do César Vilares, um bom rapaz, a quem devo vários favores, mas que é extraordinariamente aborrecido como companhia, pois por falta de hábito é gauche conversador. Em casa voltei. Esquecia-me de dizer que na sexta fui com minha irmã à casa do Artur, dancei e bocejei. É o que tenho a relembrar desses quatro dias. *** Sem data. Eram vulgares no tempo em que morei nos subúrbios os clubes dramáticos. Em Cascadura havia quatro; no Riachuelo, um; no Méier, três; em Todos os Santos, um. Tinham títulos singulares. Um era, Cassino do Méier; outro, Clube Dramático Esperança. Em geral, eram sórdidos, baixos, um simples barracão coberto com telhas de zinco, e um jirau que era o palco. As mulheres se vestiam quase à vista dos homens. Mensalmente davam récitas. As amadoras, além de lhes faltar beleza, porte, gramática, não tinham voz, graça e jeito. Os rapazes ainda piores. Nos papéis dramáticos ou trágicos, presos da ênfase, tornavam-se ridículos. Uma vez, no Esperança, quando um ator invectivava a esposa culposa, a platéia caiu na gargalhada. Quando em papéis cômicos, caíam na palhaçada, na “esculhambação”, como se dizia no tempo. Traduzia perfeitamente o fundo burro, inestético da nossa gente. As peças eram pavorosas sensaborias, velhas e sem mérito, cortadas aqui, ali, surgiam à ribalta, representadas por tais atores, como pantomimas idiotas. Findo o espetáculo, um qualquer dos sócios redigia uma notícia e levava a um amigo de um jornal que a publicasse. Exemplo: *** “Grêmio Jupira — Com o encanto e brilhantismo de sempre realizou, sábado último, esta simpática sociedade mais uma récita, sendo levada à cena a chistosa comédia: Os Amores de um Boticário. Os distintos amadores, a quem estavam confiados os difíceis papéis, saíram-se corretissimamente, sendo dignos de menção as exmas sras d. Januária Teixeira, d. Hilda Nolding e d. Maria Azevedo, que com extraordinário realce tiveram ensejo de demonstrar os seus conhecimentos do palco, e os srs Oscar Amazonas, Joel Braga, J. Júlio, A. Braga e Ribeiro de Sá, que plenamente as coadjuvaram no bom desempenho da peça. Terminando o espetáculo, tiveram início das danças que, sempre animadas, se prolongaram até alta noite.” *** Sem data. É curioso comparar a maneira com que o Debret pinta os negros e os brancos. O ponto de verdade dos dois... *** Sem data. Crisólito — Crisoberilo — Crisópraso. *** Francisco de Castro Morais, governador em 1710. Guarnição — dois regimentos de infantaria, duas companhias de artilharia. *** Aprisionaram uma sumaca, da Bahia. *** Fossem atacar a fortaleza da Praia Vermelha, mandou mestre de campo João Paiva. *** Lei de 24 de janeiro de 1756 sobre negros e mulatos. *** Quilombolas — Lê-se no alvará de 3 de março de 1741: ...... partus sequitur ventrem. *** Peça da índia — negro escravo. *** Pritchard, citado por Gobineau, pretendia provar que o negro moçambique tinha aptidão para grande personagem. Até que ponto o livro do conde Gobineau influiu no Darwin ? Gobineau diz que Darwin e Buckle “ont créé ainsi les dérivations principales du ruisseau que j’ai ouvert”. *** Sem data. O número da folha de pagamento de papai é 46v. *** 10 de julho. Campo de Sant’Ana. Uma mulher me veio ao banco em que eu estava sentado, trazendo uma criança no colo e pediu-me algum dinheiro. Dei-lhe trezentos réis. Rico Brasil! Não há miséria. Disse-me ela que a criança não tinha mãe, mas eu creio que quem lhe faltava era o pai. *** Gobineau — meio-nada. *** Gobineau — dia 10. Guizot: a civilização é um fato. A civilização para ele não é um fato, é uma série de fatos, um encadeamento de fatos mais ou menos logicamente unidos uns aos outros, e gerados por um concurso de idéias muitas vezes múltiplos, idéias e fatos fecundando-se sem cessar. “Civilisation est un milieu dans lequel elle (l’humanité) a réussi à se mettre, qu’elle a créé, qui émane d’elle, et qui à son tour réagit sur elle”. “Civilisations, un état de stabilité relative oü des multitudes s’efforcent de chercher pacifiquement la satisfaction de leurs besoins, et raffinent leur intelligence et leurs moeurs”. Princípio-macho na civilização — útil; princípio-fêmea — sonho. *** Sem data. Seria uma bela obra um romance em que se tratasse a antiga fazenda com escravos... *** 12 de junho. Facada do filho do doutor B ... S ... (quatrocentos réis). *** 18 de junho. Facada de uma pobre mulher no Campo de Sant’Ana (cem). Injustiça: ao filho do almirante não tive pena de dar quatrocentos, mas... *** 14 de junho. Nada de novo. Lobão me comunicou que está no Malho. Grande terra esta! *** Sem data. Eu me lembrava de ter lido não sei onde que Dalloz observava que, quando a desordem anda nos espíritos, as leis tornam-se numerosas e são sem cessar as reclamações de novas leis que nada conseguem, porque o indispensável é reformar os espíritos, para o que elas são impotentes. Que diabo ia eu fazer em casa de jurisconsulto? Que tinha ele de meter-se em questão intelectual? Por acaso a gente que incumbia decidir a questão, não era suficientemente esclarecida para resolvê-la por si mesmo? Mas o tempo era legiferante; e a opinião tinha fé no manipanso da lei e nas coisas rebarbativas e, em geral, falsas dos pareceres dos juristas. As melhores leis foram as que romperam as anteriores. Há quem diga isto; e estamos coincidindo a tal ponto, que a excelente será o que romper todas as demais. O Campo de Sant’Ana estava sempre tranqüilo. Aqueles dois mármores de entrada, muito brancos, nasciam da grama verde, como lírios... *** 9 de julho. Domingo. Amanhã, hoje, ontem, fatídicas palavras com o mesmo significado. Tédio, conseqüência da miséria. Haverá de fato necessidade de submissão? Ou será inútil semelhante coisa, podendo a sociedade existir sem ela? Nansen, Viagem ao Pólo, lida pela quinta vez, hoje, 9 de julho, muito frio, pouco dinheiro, nenhum é melhor dizer. 1905. Encantadora viagem, saborosa como uma ficção; entretanto, aqui, ali, há coisas pueris, reflexões vulgares, que, entre nós, publicada aquela obra, não haveria quem não nas atribuísse ao Conselheiro Acácio, vulgus fecus. Depois de três meses de interrupção, deu-me vontade de escrever, ou continuar a escrever meu livro. Publicá-lo-ei? Terá mérito? En avant . Escrevi um bilhete ao Manuel Ribeiro. *** 17 de julho. Dia 17 de julho de 1905. Secretaria. Dez e meia da manhã. A sala da seção do expediente está completa. Todos vieram. Só falta o S..., o chefe, que a faltar tem levado quarenta dias. Estava doente. Fui visitá-lo. Achei-o mal, abatido, carcomido. A família, agradável, simples. Jantei com ele, bom acolhimento. Tem uma filha que não é feia e possui mesmo uma distinção de busto, um que-quer-que aristocrático que me agradou. É a vida. Bem! Secretaria, dez e meia, segunda-feira. Lauriano, um contínuo, entra na sala. Pelas suas costas, a porta por onde entrou fere o batente com estrépido. A dois passos do primeiro oficial que serve de chefe, o Vaz de Barros, ele pára e diz: — Anuncio que “Seu” Silva morreu. Cada um, ao ouvir aquelas palavras, que ele pronunciara levemente, ergueu as cabeças, cujas fisionomias — maus atores! — se esforçavam por ter um ar de compunção. Ninguém sente. Apesar de viverem, ou terem vivido com ele dez, vinte, trinta anos, a amizade não lhes ligou as almas. Não havia afinidades entre os espíritos deles e os pequeninos atritos de carreira ainda os separou mais. Entretanto, eles se esforçam por ter compaixão e dos traços do seu rosto nada sai e dos seus lábios só um banal: — Coitado! O Belo é o mais aperfeiçoado de todos, como eu já observei algures, é o homem mais sensível às dores formalísticas e de polidez. Logo depressa se apressou no plano das homenagens: que se devia fazer isso, aquilo, etc. etc. É tremendo esse Belo. É desses exemplares de homens que substituíram por completo sua alma pelo papel escrito. Um cartão de pêsames, no seu imaginar, e algumas linhas públicas, no seu pensar, são grandes lenitivos pra dores, pra aflições. Um dia, morreu a filha de um major, com quem ele tinha conhecimento, por tratar em interesse de serviço com ele, aqui na secretaria; pois bem, logo que soube da notícia, encheu de uma ou duas linhas um cartão e mandou-o. E a um seu companheiro que lhe perguntou o que era: — Um cartão de pêsames, disse, ao major fulano de tal. Sou assim, meus amigos, nas horas das aflições, é que vou em busca dos amigos. Com o tal cartão, e ele não gastara nada, nem pecuniariamente, nem doutra qualquer forma. Escrevera-o com parca sintaxe e bela caligrafia, entre risadinhas e comentários alegres, e mandara-o com o carimbo oficial, recebendo-o gratuitamente da casa fornecedora de papel. Bela alma! E eu vou assim também ficando. O Belo, hoje, 18 de julho de 1905, afiançou que, se o Silva morreu, foi devido a essa nossa carreira (administração). Porque, raciocina ele, a moléstia era antiga e ele não se tinha podido tratar. Ganha-se uma miséria. O Silva, horas antes de morrer, disse a um parente: — Siga o cachorro e porco. *** 27 de outubro. Vim, hoje, 27 de outubro de 1905, no trem com o Oliveira, um antigo caixeiro da botica do Vilares, que me apresentou ao senhor Cordeiro, empregado da Casa da Moeda. “Seu” Cordeiro é homem velho, pardo sem ser mulato (?), de pele encarquilhada, a boca pequena calcada para dentro e projetando o queixinho redondo pra fora. Um bigode ralo amarelaço sempre aparado, com uma penugem de pássaro, enquadra-se magnificamente bem em semelhante rosto, a cuja superfície, e, sem exagero, quase no seu plano, brilham uns olhinhos pardos, aureolados com o halo da velhice. Os cabelos, muito lisos, t is como se fossem falsos, a descem untados das bordas internas do chapéu. É, me pareceu, como uma chincha (aquelas múmias do Peru). “Seu” Cordeiro é etimologista. Vai procurar a exata origem da palavra “cigano”, que, etnográficamente, segundo a sua abalizada opinião, são judeus. Disse-me, quando se tratava de superstições, que, embora o metafísico fundamentado fosse uma dúvida, ele não acreditava nessas bobagens: varrer casa de noite, diabos em encruzilhada. Há dias, foi daí que lhe veio o seu cepticismo astronômico, há dias, estando na estação de Engenho Novo, o Sol caía com tanta força sobre um lampião de gás e a luz se refletia com tanta força, que era como um astro de primeira grandeza (sic). Assim — concluiu ele, muito logicamente — são as distâncias calculadas de quarenta milhões e mais de léguas daqui ao Sol. Ao saltar, confessou-me que tinha estudado todas as religiões, e profundamente. Vou explorar esse filão. Deve ser de uma riqueza de estontear. *** Sem data. Há dias, por motivos de minha profissão, fui obrigado a entrar na Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Vestia-me mal, é fato; mas entrava certo de que era cidadão brasileiro, homem de algum cultivo, cumpridor dos meus deveres, e, sobretudo, protegido da crença que, tendo freqüentado uma dessas nossas escolas superiores, mereceria dos contínuos de lá o tratamento que se dá ao comum dos mortais. Enganei-me. Dirigi-me ao contínuo, no primeiro pavimento, que, com a habitual morgue dos altos e baixos funcionários, aconselhou-me que subisse. Até aí pisava no Brasil, agora, parecia-me, passava a fronteira. Dois contínuos, enfardelados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados, ocupavam-se pachorrentamente em cortar jornais, pregando os retalhos num livro em branco. Original ocupação dos contínuos da Secretaria do Exterior! Medroso do meu ato, ousei interromper-lhes a tarefa: — Precisava isso assim, assim; os senhores podem etc. Os dois respeitáveis funcionários olharam-me de alto abaixo e, entre complacente e desdenhoso, um deles disse-me: — Entra. Fiquei atônito, nunca fora assim tratado em departamento da administração brasileira e demais naquele sotaque estrangeiro! Prudentemente entrei, sentei-me, conforme me aconselhava o magnífico auxiliar das nossas relações exteriores. Tinha sob mim uma delgada cadeira dourada meio suja. Em torno, um salão lustrado, amplo e meio escuro; e o teto de estuque tinha pelos cantos o armorial de algum visconde apressado. O estuque encantou-me e, embora sob o peso daquela afronta, interessou-me o relevo dele, as armas do escudo, os florões, os grifos, etc. etc. etc...De quem fora aquilo? Não sabia. O dinheiro que o fizera, entretanto, era fácil de se dizer donde vinha. E, não sei como, eu vi uma grande fazenda: a senhorial casa acaçapada, numa meia laranja de morro branco de cal, enrubescer sob o banho da luz da aurora; as vacas mugiam no curral próximo; o terreiro fronteiro era como vasto lençol estendido. Da senzala, sem que sequer ouvissem o gorjeio dos pássaros, em filas cerradas, saíam, sob o peso do cativeiro, algumas centenas de negros. Aquela viva linha negra a estender, silenciosa, humilde, tinha a energia oculta de um filete que se infiltra pela terra adentro. Depois de furar cem metros, rebenta aqui como uma fonte cristalina; se mais desce, mais pressão e mais temperatura ganha, e complexidade na composição; voltando à flor da terra, é agora termal; se mais baixo vai, mais forte fica, e lá, nos profundos recessos do planeta, complica, revoluciona, baralha, e provoca vulcões. Lá ia a fila negra unida, cerrada, por entre os cafezais... Olhei o escudo, as fantasias heráldicas, as armas de galés e, de mim pra mim, pensei: — Doce fila negra que mourejaste no cafezal, estás ali também naquele níveo escudo; tu entraste nele sem querer; foste aí pela fatalidade das coisas e essa... — Não é isso que você quer?, disse-me o contínuo. E eu acabei de raciocinar: — ... e essa, não há barões, viscondes, duques e reis que a desviem. *** Sem data. Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e intrínseca à própria estrutura da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais. Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães. Eu não sei se alguém já observou que o alemão vai tomando, nesta nossa lúcida idade, o prestígio do latim na Idade Média. O que se .diz em alemão é verdade transcendente. Por exemplo, se eu dissesse em alemão o quadrado tem quatro lados seria uma coisa de um alcance extraordinário, embora no nosso rasteiro português seja uma banalidade e uma quase-verdade. E assim a coisa vai se espalhando, graças à fraqueza da crítica das pessoas interessadas, e mais do que à fraqueza, à covardia intelectual de que estamos apossados em face dos grandes nomes da Europa. Urge ver o perigo dessas idéias, para nossa felicidade individual e para nossa dignidade superior de homens. Atualmente, ainda não saíram dos gabinetes e laboratórios, mas, amanhã, espalhar-se-ão, ficarão à mão dos políticos, cairão sobre as rudes cabeças da massa, e talvez tenhamos que sofrer matanças, afastamentos humilhantes, e os nossos liberalíssimos tempos verão uns novos judeus. Os séculos que passaram não tiveram opinião diversa a nosso respeito — é verdade; mas, desprovidas de qualquer base séria, as suas sentenças não ofereciam o mínimo perigo. Era o preconceito; hoje é o conceito. Esmagadoras provas experimentais endossam-no. Se F. tem 0,02 m a mais no eixo maior da oval de sua cabeça, não é inferior em relação a B, que tem menos, porque ambos são da mesma raça; contudo, em se tratando de raças diferentes, está aí um critério de superioridade. As mensurações mais idiotas são feitas, e, pelo complacente critério do sistema métrico, os grandes sábios estabelecem superioridades e inferioridades. Não contentes com isso, buscam outros dados, os psíquicos, nas narrações dos viajantes apressados, de touristes imbecis e de aventureiros da mais baixa honestidade. E hoje é para mim motivo de alegria poder eu dizer tal coisa, poder tratar tão solenes instituições com semelhante desembaraço que não é fingido. É satisfação para minh’alma poder oferecer contestação, atirar sarcasmos à soberbia de tais sentenças, que me fazem sofrer desde os quatorze anos. Oh! A ciência! Eu era menino, tinha aquela idade, andava ao meio dos preparatórios, quando li, na Revista Brasileira, os seus esconjuros, os seus anátemas... Falavam as autorizadas penas do senhor Domício da Gama e Oliveira Lima... Eles me encheram de medo, de timidez, abateram-me; a minha jovialidade nativa, a satisfação de viver nesse fantástico meio tropical, com quem tenho tantas afinidades, ficou perturbada pelas mais degradantes sentenças. Desviei a corrente natural de minha vida, escondi-me em mim mesmo e fiquei a sofrer para sempre. Mas, hoje! Hoje! Já posso alguma coisa e amanhã poderei mais e mais. Não pararei nunca, não me deterei; nem a miséria, as perseguições, as descomposturas me deterão. Sacudi para longe o fantasma do medo; sou forte, penso, tenho coragem... Nada! Nada! Nada! E que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus aos homens da Europa sobre a misteriosa organização do mundo. Quando há dias li numa das histórias do Brasil do senhor João Ribeiro, pág. 234: “Não podemos pensar que o homem de cor, conseqüência semi-híbrida do contato heterogêneo de raças tão distanciadas que, até por eminentes cientistas como Haeckel, são consideradas como espécies diversas, seja a peste da cultura americana, como sentenciam os sociólogos”, ri-me com uma espontaneidade, que até eu mesmo me admirei. Lobriguei no período, debaixo daquele — “eminentes cientistas como Haeckel” — uma excomunhão em regra para os miscigênicos. Até hoje não li Haeckel e tenho pena de não conhecer o inventor de animais curiosos. Um dos traços do meu espírito é a curiosidade pelas criações humanas. Não se me dá que sejam verdadeiras; o principal, para o meu espírito, é o esforço de inteligência que elas representam e que eu amo. Leio-as, compreendo-as até o ponto que quero, depois fecho livros — certo de que o mundo continua ainda [ ] 1906 Sem data Opiniões e idéias de J. Sá Bragança, primeiro oficial da Secretaria dos Cultos. É bacharel em letras pelo antigo Imperial Colégio dom Pedro II, onde foi colega do doutor Joaquim Nabuco. Conhece a psicologia clássica e a metafísica de todos os tempos. É de história sentimental limitada. Não é casado e só amou duas vezes: a primeira vez, a filha de um visconde, num baile de um marquês; a segunda, à sua cozinheira, não sabe em que ocasião. Seguindo o seu favorito método introspectivo, analisou as duas emoções e, ao cabo de análise detalhada, achou-as idênticas em si mesmas e nas aparências. Nunca teve ambições. Filho de um general e titular do Império, podia ter sido “muita coisa”; não quis; era preciso ser doutor, formar-se, o que lhe daria trabalho, amolações... Fez-se praticante e foi indo. Com tão grande saber, Sá Bragança podia ser oráculo de sua repartição, e não o é. As repartições são como a vida em geral — amam os medíocres. Contudo, ele é bom empregado. A Republica veio encontrá-lo a postos, redigindo um decreto do Defensor Perpétuo; e, ao lhe avisarem: — Seu Bragança, o Deodoro proclamou a República no Campo de Sant’Ana. — Qual foi? perguntou As suas reminiscências de história não lhe davam de pronto a idéia nítida do que fosse república. Sabia de tantas e tão diferentes, que o seu embaraço não foi afetado. — República! ... Homessa! ... Governo de todos nós, respondeu o servente. — E você ainda pretende governar? — Eu, não; mas meus filhos... — É de esperar, meu amigo. — Agora, outra coisa: vão restabelecer a escravatura? — Isso não sei, “seu” Bragança. Disse-me ele que, naquela manhã mesmo lera o seu Fustel de Coulanges, a respeito da significação aristocrática do tratamento cidadão. Despido de ambições, acabado o seu curso, não abandonou os livros. Continuou a ler e a comprá-los mensalmente, procedendo a leitura com a ordem e o vagar de quem vai escrever uma tese. Das revistas estrangeiras, a Revue des Deux Mondes é a que mais quer e cita. — É a única que não traz figuras, disse-me ele. Ama as letras pátrias e acompanha o seu movimento com interesse, mas sem paixão. Quando moço, admirou Fagundes Varela e Laurindo Rabelo; hoje, o seu ídolo literário é o senhor barão do Rio Branco. — Mas não tem livros? — É porque não quer. Se os fizesse... E a sua fisionomia se concentrou num olhar que parece estar vendo, ao longe, o triunfo de Tito. Nos dias de bom humor, ele me distingue com as suas piadas críticas: — Na Canaã do Milkau, do doutor Graça Aranha, entrarão o Felicíssimo e aquele simpático “camarada” que dança o miudinho? Não lhe pude responder. A terra de promissão do ilustre romancista fica tão na névoa e no vago — é tão alemã! — que não me atrevi a responder sim. Demais, quem é que precisa de terra de justiça e de amor? Os alemães, sem dúvida! Para Felicíssimo e nós outros, o encorajamento. Lentziano com a carabina do vagabundo da Tijuca, que vem a ser o mesmo. Sá Bragança parece que adivinhou o meu pensamento, quando me perguntou em seguida: — Você já reparou que os nossos [...] *** Sem data. Aos camaradas do Esplendor dos Amanuenses comunica Aff. H. de Lima Barreto, amanuense da Secretaria da Guerra, que vai arejar no Largo da Carioca, onde, durante dois meses, para exercícios variados de artilharia... verbal, continuando, embora com tão árduos trabalhos, a t mar notas para o seu Pequeno Dicionário dos Super-Homens, título esse que o o Rivarol, lá do Inferno onde está, há de gostar muito. Mot de la fin: Rua do Ouvidor. Passa o batalhão naval. — Que te parece? — O que? (para danar o Rui) — O batalhão naturalmente... — Os oficiais são de um país e os soldados de outro. — Um regimento de cipangos. — Um batalhão de sudaneses. — Exato! — Tal e qual! *** Abril O pai de Gonzaga de Sá devia ter nascido em 1813. Gonzaga de Sá, em 1850, e entrou na secretaria dos Cultos em 1872; quando nasceu, o pai tinha 37 anos, e a irmã deve ser mais velha do que ele 12 anos. O concerto do Gottschalk. O benefício da Stoltz. *** O pai de Gonzaga de Sá devia ter morrido em 1874, com, pelo menos, 60 anos — 1814. Fez a campanha do Rio Grande; em 1845 voltou e fez-se professor. Pai Gonzaga N. 1810 1850 1874 57 1850 (40) — G. de Sá Mãe morreu em 12 (1866) General { 1810 Escolástica 1838 (26)..........Mãe morreu em 24 Benefício da Stoltz — 1852 agosto — E. 14 Gottschalk — novembro de 1869. Escolástica Gonzaga de Sá Pai Mãe Benefício da Stoltz 14 anos 2 anos 42 27 Gottschalk 31 19 69 Morta Morte da mãe 20 8 58 O (1858) *** Sem data Opiniões e idéias de J. Gonzaga de Sá, oficial da Secretaria dos Cultos. Encontrei Gonzaga de Sá na Avenida Beira-Mar, numa tarde tépida destes últimos dias. Vinha absorto, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala, de cabeça caída, sem ver as fantásticas mutações nas nuvens altas. Falei-lhe: — Passeando, hein? — Exato. — É uma bela avenida, esta! O meu amigo olhou-me um pouco como que experimentando a minha lealdade. — Não acho, meu caro. Notei as minhas sensações e creio poder resumir o meu exame introspectivo da seguinte maneira: — é o cais da Lapa alargado. Os americanos têm como critério de beleza — a altura; é possível que o nosso venha a ser a largura... — Ainda não está acabada... — Quando estiver, a mais só haverá os passeios, o que é insignificante. — As paisagens? Os pontos de vista? — Não são a avenida propriamente, e já o cais me oferecia o mesmo espetáculo. — Contudo... quis retorquir a minha mocidade entusiasta. — Não se agaste... “Le beau pour le crapaud...”— você sabe não é ? Profunda verdade! ... É possível que, se os homens não precisassem de dois sexos para se perpetuarem, não houvesse surgido entre [ nós ] uma tão curiosa noção. Já não sou um homem mais; a beleza para mim é uma fórmula algébrica, por isso... — Creio que o senhor não maldiz os melhoramentos? — Absolutamente não! Pelo contrário, tenho projeto de novos. Dizendo isto, tirou da algibeira do velho paletó algumas tiras que me deu. — Leia-as. Amanhã me entregue. Eu li então o seguinte: “Nota-se que em geral as grandes cidades, especialmente as européias, não têm um fundo de cordilheira como a nossa. Ora, se as grandes cidades não têm tal disposição natural e se o Rio quer ser das grandes à européia, deve arrasar as montanhas. Não há prejuízo algum com isso. A desvantagem única seria a supressão do Corcovado, montanha internacional e muito procurada pelos estrangeiros. Em substituição, pode-se erguer uma torre semelhante à Eiffel, em Paris. Até será muito melhor, pois ficará o Rio muito parecido com a capital da França. O aterro, proveniente do desmonte dos morros, servirá para alterar a baía, um incômodo, sepulcro de crimes e cuja beleza, no juízo dos políticos, é uma vazia banalidade de retórica. Para o comércio, ficará uma doca; e lá para as bandas de Mauá um lagozinho destinada aos poetas. Nota-se também que as grandes metrópoles ficam sobre rios mais ou menos consideráveis ( Paris, Berlim, Londres, New York, Viena, etc.) — logo se o Rio quer ser grande metrópole deve ficar à margem de um rio respeitável. Poder-se-ia transformar o Maracanã em rio considerável. Com canalizações suplementares às nascentes, o aumento do seu volume d’água poderia ser obtido; mas seria falsificar. O melhor é um rio autêntico e bem catalogado nas geografias. Nenhum mais adequado do que o Paraíba, para preencher um fim tão civilizador.” Apesar de tudo, mesmo depois das linhas acima, ainda não tenho uma opinião segura sobre o Gonzaga de Sá doido ou ajuizado, inteligente ou parvo? Não sei. *** Sem data. XIII — O afilhado. Primeira conversa com o Aleixo Manuel, sua inteligência, sua vivacidade. Saída para o colégio, alegre, contente, cheio de vida. O Gonzaga de Sá, em seguida, ao ir me dando livros, vai expondo suas idéias sobre a ciência. Volta de Aleixo Manuel, mal põe o pé na soleira da sala, põe-se a chorar nervosamente, muito, muito. Gonzaga de Sã o interroga: — Que é? Que foi? — Dindinha, dindinho, me chamaram de macaco, diz ele. Fim XIV — Escritos de Gonzaga de Sá. Dia de chuva, fico em casa. Minha irmã toca. Leio e, folheando livros de Gonzaga de Sá, encontro notas e escritos dele. Miauança, minha gata. Primeiro — Não há mulher, há sexo feminino. 1 — O general. 2 — A ressurreição de Barbarroxa. 3 — A aeronave e o construtor. 4 — Sapo e sapa E alguns pensamentos. XV — Morte de Gonzaga de Sã. Vou visitá-lo. Está de camisolão, a rasgar papéis e notas. Muito magro, a cabeça muito grande, etc. De repente, sai do quarto, vem à sala de visitas, grita pela irmã, fá-la sentar ao piano, obrigando-a a tocar a “Bamboula” e morre num desfalecimento, recostado num divã, dizendo: — Que complicação... que peso... foi-se... afinal! Estou eu, a irmã, o preto velho e o Aleixo Manuel. 1907 Sem data. Espécies parlamentares: Augusto de Freitas : untuoso, gestos lentos, sorriso à flor dos lábios. Doce de côco. Barbosa Lima — imprecações, gestos bruscos e convulsos, voz ora cava, ora estrídula. Apocalíptico. James Darcy — melífluo, longas melenas oleadas, na voz “trêmolos”, acompanhados de outros trêmolos na mão, que se alça devagar. Manjar branco. Anisio de Abreu — desengonçado, desarticulado, voz tonitroante, inaudível à meia voz e gestos descompassados, estos. Sermão da quaresma. Rui Barbosa — voz imperceptível, citações, citações... Temas arcaicos e aforismas. João das Regras. Germano Hasslocher. Super-homem. Augusto de Vasconcelos, O silêncio é de ouro. *** 25 de novembro. Précis de Phitosophie./ Rédigé conformément aux programmes officiels. / Pour la classe de philosophie./ D’aprés les leçons de philosophie de M. E. Rabier. / Par René Worms... / Deuxième édition revue. / Paris, Librairie Hachette et Cie. / 1903. VIII-407p. Este livro foi-me dado pelo Antônio N. Santos, no “sebo” do Martins , em 1907. Lima Barreto. 25-11-1907. * *.* Sem data. Mário Pederneiras. Artigo em francês, publicado na A Revista, Rio de Janeiro, 1907. Tolice e burrice minha. * ** Manuel Capineiro. Ver do Barreto. Houve uma fome. Estrada Real etc. Caso do capim. Expresso esmaga bois. “Ai mô gado! Antes fosse eu!” *** “A expiação”. Tipo que, sem ter assassinado, acusa-se como sendo o assassino de um caso misterioso. *** “A volta” (?). Mocidade. Carnaval. Bebericos. Choro. “Pobre Chico, que quer?, não me casei.” *** Sobre o humorismo. Pôr tudo na história do riso de Schopenhauer. *** O sentimento do doente nas outras crises. Brigas etc. Falta tudo. *** Mulher bonita é que não falta nesta vida; o que falta é a mulher de que a gente goste. 1908 5 de janeiro. O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em 7 fazem grandes avanços aos meus desejos. Nasci em 1881; em 1887, meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. Escrevi quase todo o Gonzaga de Sá , entrei para o Fon-Fon , com sucesso, fiz a Floreal e tive elogio do José Veríssimo, nas colunas de um dos Jornais do Comércio do mês passado . Já começo a ser notado. Pelas vésperas do Natal, fui ao Veríssimo, eu e o Manuel Ribeiro. Recebeu-nos afetuosamente. Ribeiro falou muito, doidamente, difusamente; eu estive calado, ouvi, dei uma opinião aqui e ali. Deu-me conselhos, leu-me Flaubert e Renan, aconselhando aos jovens escritores. Falou da nossa literatura sem sinceridade, cerebral e artificial. Sempre achei a condição para obra superior a mais cega e mais absoluta sinceridade. O jacto interior que a determina é irresistível e o poder de comunicação que transmite à palavra morta é de vivificar. Agora mesmo acabo de ler o Carlyle, Hero Worship, no herói profeta, Maomé, que ele diz ser um sincero, acrescentando: “I should say sincerity, a deep, great, genuine sincerity is the first characteristic of all men in any way heroic”. O Veríssimo disse coisa semelhante, dizendo-nos que a glória dos segundos românticos, do Castro Alves, do Fagundes, do Laurindo, do Casimiro, era imperecível, tinha-se incorporado à sorte da nação, porque eles tinham sido sobretudo sinceros. Concordei, porque me acredito sincero. Sê-lo-ei? Às vezes, penso ser; noutras vezes, não. Eu me amo muito; pelo amor em que me tenho, com certeza amarei os outros. A Floreal vai mal. *** No dia 2, fui à casa do M... A... Ele vive amancebado com uma rapariga portuguesa, de vinte e quatro anos, por aí. Tenho ido lá várias vezes, sempre cheio de suspeitas que me queiram armar alguma cilada. É besta e infantil tal suposição. Eu não compreendo a ligação dos dois. Ele quase não dorme lá, passa dias sem lá ir; sob os pretextos mais infantis, passa as noites fora. Corre que tem outra amante; suspeito que tem um sócio na mulher. Eu julgo que ele não dorme em casa, para deixar o outro dormir; entretanto, pelas conversas dos dois, há noites em que dorme. Ela não o ama; ela o quer para descansar da vida fatigante, aborrecida, trabalhosa, de mulher pública. Moram numa casa de duzentos mil-réis de aluguel, têm um trem de vida de trezentos; não saem juntos; se se encontram na rua, não se falam. É enigmático. Porque se mantêm juntos, que soma de interesses representa tal ligação? A mulher é pouco para o homem que é; e o homem etc. etc. Fui lá, dizia, entrei para a sala de jantar, sentei-me e ela veio ao meu encontro: — ... não está. Tinha ido a um jantar, disse-me ela. Tinha esquecido o rendez-vous etc. etc. Em começo, tive uma alegria de devasso — quem sabe? — que passou depressa e felizmente. Ela sentou-se na minha frente, fumei desesperadamente e conversei. Nunca estive tão bem. Tenho vinte e seis anos e, até hoje, ainda não me encontrei com uma mulher de qualquer espécie de maneira tão íntima, de maneira tão perfeitamente a sós; mesmo quando a cerveja, a infame cerveja, me embriaga e me faz procurar fêmeas, é um encontro instantâneo, rápido, de que saio perfeitamente aborrecido e com a bebedeira diminuída pelo abatimento. A Cecília, tal é o seu nome, é pequena, dá-me pelo peito; é pálida, com aquela palidez mate das prostitutas um tanto diminuída; simples de inteligência, não tem quatro idéias sobre o mundo, aceita o seu estado, acha-o natural, não deita arrependimentos, tem vontade de empregar as elegâncias que aprendeu com as francesas dos grandes bordéis em que andou (Valéry, Richard, etc., etc.). Para mim, apesar da sua maneira de apertar a mão com as pontas dos dedos, ela me fica sendo sempre uma cachopa dos arredores do Porto, meiga, simples, ignorante e um tanto obstruída de inteligência, que um vendaval de miséria trouxe para esta África disfarçada, diminuindo em sua mãe o sentimento de família, aproveitada essa diminuição pela concupiscência dos patrícios que lhe atiraram à grande prostituição, acenando-lhe com a riqueza e a fortuna, que ela não alcançou, talvez porque fosse fundamentalmente boa. Eu a tenho observado muito e, com grande medo da minha inexperiência, eu a quero boa, doce, sem arrependimento, mas a desejar um casamento que a nobilite e eleve. Quando saio de sua casa, depois de sua ingenuidade, depois de sentir que a prostituição lhe roçou de leve, posso dizer com M. de Vogué, a respeito da Casa dos Mortos, de Dostoievski: fico contente em ver que a nossa humanidade é melhor. Sinto por ela que há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana, e que raramente ele se desagrega, mesmo sob o império das mais baixas degradações por que possamos passar. Essa rapariga, que viu bordéis, ladrões, estelionatários, rufiões e jogadores; que se meteu em orgias; que certamente se a irou a desvios da sexualidade, aparece-me cândida, ingênua e até t piedosa. Estou a ver daqui os seus cabelos castanhos, os seus olhos de um azul desmaiado, e não sei porque me lembram Maria Madalena. Há não sei que separação entre o seu passado e presente e a sua alma verdadeira, que tenho um delicioso bem-estar em vê-la. É como se ela me trouxesse “uma redoma de alabastro cheia de bálsamo”. Nessa tarde, eu, com vinte e seis anos, e ela, com vinte e quatro, ainda muito lembrada da vida antiga, conversamos, das seis e meia às dez horas, inocentemente, e creio que saí com os pés ungidos de nardo, mal enxugados pelos seus lindos cabelos. Eu a olhava com o meu olhar pardo, em que há o tigre e a gazela, de quando em quando, e ela, sempre, constantemente, me envolvia com o seu olhar azul, macio e sereno, que lhe iluminava o sorriso de afeto, eterno e constante, espécie de riso da natureza fecunda e amorável por uma manhã límpida e suave de maio, quando as flores desabrocham para frutos futuros. Nunca mais hei de me esquecer desta sua frase: — Senhor Barreto, M... não está. O senhor janta e depois vai se embora, não é? Esse “depois vai se embora” foi dito com tal singeleza, com tal espontaneidade, como se pronunciasse uma donzela ou uma senhora casada. E quantas destas seriam capazes de dizer isso com tanta candura?!! Por que razão o destino tê-la-ia prostituído e atravessado no caminho da minha vida? No jantar, nunca foi tão cordial a nossa palestra. — Não faça cerimônia, senhor Barreto. Gosta de feijão? — Muito, e a senhora? — Muito também. — Admira... — Os portugueses gostam... — O feijão tem uma coisa, disse eu, é feio... — Mas é gostoso, acrescentou ela alegre, e como muita gente feia, mas gostosa. Depois do jantar, conversamos longamente; não vi como a conversa começou e resvalou para coisas de jogo, de mulheres. Ela bebeu mais que de hábito, e houve um instante que ela me disse, ao tomar um copo de vinho, cheia daquela espontaneidade que dominou a entrevista toda: — Eu não posso viver sem gostar de alguém. É de tarde, chove, embora assim olho a janela, para ver se dou no céu com um pouco daqueles seus olhos de azul límpido, com aquele seu sorriso de florescimento da natureza... É feia a tarde, névoa cerrada, moinha de carvão no ar... Como a prostituição me parece sagrada; se não fora ela, esta minha mocidade, órfã de amor, de carinho de mulher, não teria recebido esse raio louro de um sorriso e de um olhar, para me recordar esse misterioso amor que se sofre, quando se o tem, e se padece, quando se não o tem. Abro o Cântico dos Cânticos, leio um versículo a esmo: “Apareceram as flores na nossa terra, chegou o tempo da poda: ouviu-se na nossa terra a voz da rola”... Chove... Vou para a cadeira de balanço. Vou fumar e sonhar... *** 24 de janeiro. A esquadra americana , forte de quinze navios grandes e não sei quantas torpedeiras e destroyers, já saiu. Trazia uma tripulação de dezesseis mil homens, que, aos dois mil e três mil, encheram a cidade diariamente. Era tripulação variada. Trazia gente de diversas nacionalidades: franceses, portugueses, italianos, turcos, alemães; trazia negros e mulatos, alguns destes bem postos e fortes. Tomei um “pifão” uma noite e andei experimentando o meu inglês com alguns. Foi um fiasco. Observei fisionomias. Algumas lindas; nunca vi nas mais lindas mulheres brancas daqui o tom doce de uma fisionomia de marinheiro que me caiu sob os olhos. Entre nós, as fisionomias são mais secas, contraídas, cheias de fogo, mas não tem a limpidez dessas fisionomias saxônicas, que a gente vê nas reproduções dos quadros dos pre-rafaelistas. Há alguma coisa de primitivo nelas, de um primitivo sem selvageria, um sentimento do além, do desconhecido, visto por anjos delicados. Os selvagens são sempre graves; nós somos sempre graves, quando não, uns abandonados às contrações sagradas do “purismo”. Mesmo a Cecília e as portuguesas que conheço não têm esse ar de arcanjo que o marinheiro me fez ver. Por falar nela, voltei lá na penúltima quinta-feira. Não trouxe nenhuma convicção. A conversa foi falsa. M... estava lá, com toda a sua burrice e falta de poesia. Quarta-feira última, chegando à secretaria, deram-me um convite para assistir à saída da esquadra de bordo de um navio do Lloyd. Fui, depois de hesitar muito. *** Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. Encontrei Juca Floresta . Fiquei tomando cerveja na barca e saltei. É triste não ser branco. *** 10 de fevereiro. Fui ontem a São Gonçalo. É um município limítrofe ao de Niterói. Fui à casa do Uzeda. Uzeda é um segundo oficial da Secretaria da Guerra, casado com uma professora pública do lugar. Embarquei às oito e meia no Largo do Paço; fazia uma manhã quente e feia, ensombrada de nuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos. Soberbamente insuportável. Indagando da produção do município, não me soube informar com simplicidade. Atribuiu a falta da lavoura à indolência do povo. Tive vontade de perguntar se ele, engenheiro, tendo estudado a química, física e história natural, dava um exemplo salutar, cultivando o sítio onde morava. Calei-me, e foi dizendo bobagens. Fez uma crítica severa às tarifas do Tramway Rural Fluminense. É isto uma pequena estrada de ferro, com carros abertos ao jeito de bondes, que liga as Neves ao município de São Gonçalo. E uma coisa tosca, necessariamente exigindo para a sua manutenção uma série de medidas empíricas, que a prática dita; o idiota do Pinho quer que ela se guie pelos princípios tarifários que regem os fretes das grandes vias-férreas. Disse-me coisas proveitosas, que, por exemplo — o esforço da tração era o mesmo na descida que na subida. É profundo. As Neves não tiveram, para os meus olhos, nada de notável. Têm o aspecto comum dos nossos postos afastados e edificados. Casas baixas, pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas — tristes, de longos olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes, fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia. Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída sobre a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera urbana, para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há também as velhas casas de colunas heterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e o sistema da antiga lavoura. Corre o caminho por entre colinas, há pouca mata, laranjeiras muitas, algumas mangueiras. Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam vagas notícias das origens da minha avó materna, Geraldina . Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela cria. Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia. Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho da corte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto, eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho que me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus. Quem sabe se eu não tinha parentes, quem sabe se não havia gente do meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia, passivos e indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de sua força interior. Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu não pude deixar de lembrar- me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do seu, depois de volta de três quartos de século, voltava àquelas paragens radiante de mocidade, saturado de noções superiores, sonhando grandes destinos, para ser recebido em casa de pessoas que, se não foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem da mesma origem que o meu. Eu vi também pelo caminho uma grande casa solarenga, em meio de um grande terreno, murado com um forte muro de pedra e cal. Estava em abandono, grandes panos do muro caídos e as aberturas fechadas com frágeis cercas de bambus. Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura saíra minha avó, tinha se extinguido, e que deles, diretamente, pelos laços de sangue e de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de várias condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha. Ela fora mais caipora do que aquele muro sólido, porque extinguira-se, caíra de todo e não deixara da sua linha direta nenhum rastro. Cheguei à casa do Uzeda. Antes vi a vila. Há uma grande rua principal, com uma imensa matriz a cavaleiro dela, e toscas casas que a arruam. O trem passa embaixo e, junto ao paço municipal, é macadamizada. A câmara municipal é um caixão ignóbil. Não sei porque nós não sabemos fazer esses edifícios com o gosto que os arquitetos da Idade Média faziam os dos seus burgos. Que infâmia é a que vi! Entretanto, é moderna, tem menos de vinte anos. A capela tem o acabamento das torres em pirâmide; é sem gosto e soturna; não há uma casa com sentimento, e a gente tem o que ver, apenas nas das colunas, em que a escravidão pôs seus sofrimentos e as suas recordações. A mulher do Uzeda é rapariga anêmica, dessas nossas que a mocidade sabe dar um brilho singular com a sua fragilidade, mas que a maternidade e o tempo empanam e estiolam de modo lastimável. É morena, de curtos cabelos. Rosto em V, bom, para um rapaz inteligente, e que nela, com seus hábitos de paciência que o professorado dá, empresta uma singular fisionomia de freira, que o olho direito mais estreito faz quebrar com certa canalhice. *** 15 de maio. Ontem fui à casa do Goulart, Goulart de Andrade, poeta. Já publicou um livro vitorioso. Não gosto de sua poesia, muito sábia, muito certa, muito verbal, com pouco de sua pessoal, tocando certos temas clássicos; entretanto, ele é trabalhador, poeta agradável, legível e verbal. Leu-me uma sua peça — Inconfidentes. Trata-se de Tiradentes e os poetas da conjuração. Há versos bonitos. Fraca de espírito, pouca graça, muito pouca. O entrecho não podia ter nada de novo. Os poetas falam com ênfase no primeiro ato. Tiradentes vocifera no segundo; n terceiro, o Bárbara Heliodora encontra-se com Marília de Dirceu e Maria Ifigênia, fala como uma melancólica dos nossos dias. O quarto ato é na prisão, movimentado, mas não dramático. A peça toda tem esse defeito: tem movimento mas não tem drama. Goulart não compreende o drama, não sente a paixão. A paixão, para ele, existe depois da poesia — ele só sente o verso. Ilude, no drama, na peça, essa sua fraqueza com o movimento. E um poeta, puro, um poeta de sessenta anos passados, que não parece ter aprendido mecânica, astronomia e navegação. Eu não acredito absolutamente na eficácia da ciência para fazer poetas e literatos; às vezes mesmo a julgo nociva; mas tenho para mim que o processo é o mesmo na arte e na ciência: um acordo entre o oculto e o visível, uma relação entre fatos que, só com os instrumentos do pensamento, ganham uma explicação. Poeta, antes da poesia, eu devo ter as paixões, as emoções para exprimi-las em verso; dramaturgo, comediógrafo, romancista, da mesma forma: os costumes, as paixões, os sofrimentos, as emoções, o entrechoque delas no cenário do mundo. O estilo, na frase de alguém, é um acompanhamento. Enfim, para que discutir? Se a poesia agrada... Leu-me o Coelho Neto — Jardim das Oliveiras. Há algumas coisa boa, diferente do Neto comum, cantador de condessas, baronesas, misses etc. Esse Neto de pacotilha que tem medo de dizer as suas amarguras contra “a sociedade que nos esmaga”. Contei-lhe o Isaías Caminha. Achou graça, mas ficou apreensivo. Não tinha razão: eu sou amigo dele e sei ser amigo até à última hora. E nunca, penso eu, procurei ser inimigo do meu ex-amigo. Cheguei em casa às onze e quarenta e li um artigo de Gaultier sobre o bovarismo na história, a propósito do último livro de Nietzsche. Considerações inatuais. Pelas doze e quarenta apagava a vela e dormia. *** 5 de julho. Domingo. Levantei-me às dez horas, fiz a barba, concertei a gravata, arranjei melhor a minha roupa velha; pus-me limpo e elegante, enfim. Ia visitar umas damas; isto é, ia à casa de duas raparigas de vida airada, que vivem em semi-mancebia com dois antigos colegas meus, o A...,M...,e o C..., M... Hoje, ambos são engenheiros da Prefeitura. Cheguei lá às duas horas da tarde. Nenhum dos dois estava. Fiquei a conversar com a amiga do A... Chama-se Maria, Cecília, Celina, ou coisa que valha. Eu simpatizo com essa mulher, porque ela me inspira piedade. E eu a ter piedade! Elas têm outros amigos, com o consentimento deles. É uma coisa da moda, isto, hoje. Os costumes estão desse modo, permitem já a poliandria. Há muita falta de delicadeza e beleza nas nossas coisas. Aborreci-me! *.* * 16 de julho. Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi desde essa época que eu senti a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a incompreensão da minha delicadeza, do meu natural doce e terno; e daí também comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade, de modo que as mínimas coisas me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante. Deu-me esse acontecimento, conjuntamente com a vida naturalmente seca e árida dos colégios, uma tristeza sem motivo, que é fundo de quadro, mas pelo qual passam bacantes em estertores de grande festa. Outra vez que essa vontade me veio foi aos onze anos ou doze, quando fugi do colégio . Armei um laço numa árvore lá do sítio da ilha, mas não me sobrou coragem para me atirar no vazio com ele ao pescoço. Nesse tempo, eu me acreditava inteligente e era talvez isso que me fazia ter medo de dar fim a mim mesmo. Hoje, quando essa triste vontade me vem, já não é o sentimento da minha inteligência que me impede de consumar o ato: é o hábito de viver, é a covardia, é a minha natureza débil e esperançada. Há dias que essa vontade me acompanha; há dias que ela me vê dormir e me saúda ao acordar. Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões; sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e responsabilidades. Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande humanidade de que quero fazer parte. Mas não é só não ser inteligente que me abate. Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me procurar m is. Eu esperava isso tudo; mas a não pensei que fosse tão cedo. Resta-me o Pausílipo, este é o único que se parece comigo e que tem o meu fundo, que ele desconhece por completo. Eu os sabia desse feitio, principalmente o O. C. Ele tinha um lustre, um verniz de independência e desinteresse, de superioridade e de grandeza, mas a vida, a grande vida, a fortuna, as fêmeas e uma esposa assim, pedem outras coisas muito diferentes: submissão, respeito pelo estabelecido, companhias que não sejam suspeitas, etc. Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas. Vai me faltando a energia. Já não consigo ler um livro inteiro, já tenho náuseas de tudo, já escrevo com esforço. Só o Álcool me dá prazer e me tenta... Oh! meu Deus! Onde irei parar? Tenho um livro (trezentas páginas manuscritas), de que falta escrever dois ou três capítulos . Não tenho ânimo de acabá-lo. Sinto-o besta, imbecil, fraco, hesito em publicá-lo, hesito em acabá-lo. É por isso que me dá gana de matar-me; mas a coragem me falta e m parece que é isso e que me tem faltado sempre. *** 26 de outubro. No Correio da Manhã de hoje, trecho de um artigo de Carmen Dolores: “...... e ficamos a rebolar, sempre a rebolar, tristes bolas sociais” Sem data Modificações a fazer no manuscrito (12): 1) Onde está: Figueiredo Pimentel, no “Binóculo”, etc.(Cap. X ou XI), escrever: Florencio Silva, no “Despacho”, etc. Adiante, substituir Figueiredo Pimentel por Florencio Silva. 2) Onde diz: trezentos mil portugueses, pôr duzentos mil (Cap. XI ou XII). 3) Onde diz: sensação imperscrutável da música, etc. (Cap. XIII) pôr sensação imponderável, etc. 4) Onde diz: as extremidades dos remos luziam como prata e a nossa esteira era luminosa (Cap. XIV in fine) pôr: ”As pás dos remos, caindo nas águas escuras, abriam largos sulcos luminosos de minúsculas estrelas agrupadas e todo o barco vogava envolvido naquele estrelejamento, deixando uma larga esteira fosforescente. 5) Abaixo desta frase de diálogo no Cap. XII: —Homem, você hoje está muito zangado! (Floc), acrescentar: Ele não compreendia que eu também sentisse e sofresse. *** 2 de novembro. Segunda-feira. Foi dia de finados. A exposição como já se esperava, foi muito concorrida. Entretanto, alguns pavilhões e palácios estiveram fechados, hermeticamente fechados, como túmulos. Era justo. *** 3 de novembro. Terça-feira. A chuva reapareceu. Veio fraquinha, deliciosamente fraquinha; mas veio. A exposição esteve agradavelmente vazia. Os diretores, de onde em onde, passeavam pelas ruas de chapéu-de-sol aberto, a olhar simpaticamente os raros visitantes. O doutor Antônio Olinto mesmo a um quis servir de guia. O homem, que pertencia à falange jornalística, abespinhou-se com a amabilidade do presidente. Pois não o conhecerem! ... O Restaurante Pão de Açúcar serviu jantar a seus empregados e a alguns da exposição. O bar vendeu alguns chopes ao pessoal da polícia. *** 6 de novembro. Sexta-feira. Pouco sei do que tivesse sido o dia; mas a noite foi cheia. Pelo menos, no teatro, foram levadas três peças. Foi, portanto, uma noite de máxima teatral na exposição. Nenhuma delas era de Coelho Neto; uma era de um autor falecido e as duas outras tinham sido escritas por autores jovens e já muito estimados pelo público. Um destes últimos é o nosso amável colega Agenor de Carvoliva, o gentil Carvoliva dos noticiários, que teve a felicidade de ver aplaudido, como merecia, o seu delicado trabalho teatral que intitulou: O Eterno Romance. O outro jovem autor, que se fez representar pela primeira vez, foi dona Carmen Dolores. O público conhece sobejamente o autor pela leitura de suas crônicas e contos, cheios sempre de altos conselhos morais e animados superiormente pelo sentimento da família e da pureza do lar; mas a pessoa é totalmente desconhecida da nossa população. É uma moça esbelta, de menos de vinte e cinco anos, reservada, vestida sempre com discretas toilettes, que quase nunca é vista nos lugares em que nos pomos à mostra. Os seus grandes olhos redondos são povoados de sonhos íntimos e toda ela, com seu corpo esguio e seu perfil espiritualizado, parece viver absorvida na arte, ouvindo a música das esferas e as harmonias dos arcanjos. Muito moça, as triviais coisas da elegância não a fascinam, nem lhe são a cogitação constante. Despreza os vestidos, os tecidos caros, as rendas, as modas, os chapéus. Pouco freqüenta as salas e salões; não acha neles atrativo algum, de qualquer ordem ou natureza; julga-os fúteis, desprovidos de atmosfera intelectual propícia à vida de seu espírito e da sua alma. Moça, e moça circunspecta, não podendo, em obediência aos costumes, viver a vida agitada e desigual de um rapaz do seu temperamento, ela se abroquela no estudo e na leitura. Vive que nem um beneditino ou um solitário do Port-Royal, toda entregue às obras e às concepções. É ela, entre nós, uma das poucas pessoas que possuem perfeito conhecimento de toda a evolução da língua francesa. A sua biblioteca é rica dos antigos documentos dessa língua, e quem a visita poderá ver além do Froissart, Villehardouin, todas as gestas do ciclo carolíngio, Renaud de Montauban, Chanson de Roland, etc., nas edições mais autorizadas. Além desse conhecimento, que é valioso, dona Carmen Dolores possui uma ciência perfeita do inglês, traduz Chaucer, como se fosse um autor dos nossos dias; e há anos que se dedica ao estudo da metafísica alemã e dos teólogos da Idade Média. É um raro tipo de autora, entre nós: bela, não é coquete; ilustrada, não é p dante; gloriosa, não se exibe. A sua peça — e Desencontro — espantou a crítica nacional, pelo rigor da concepção, arrojo das idéias e louçania do diálogo, quente e nervoso. Foi mais uma vitória para o Grêmio Dramático Artur Azevedo ,que tanto tem concorrido para o brilho do certame da Praia Vermelha, representando primores de autores falecidos e obras-primas de alguns camaradas nossos e dos organizadores da companhia. 1910 Sem data À tarde, um aprés midi de verão, assoupissant, todas as vidas param e dormem, para que o [...] dos trópicos venha aparecer e agradeça a fecundidade que demorava pelas suas terras. *** Discussões literárias. Estilo. Gramática. Critério [ ? ] filosofia. *** Fuzilamento. Ilha das Enxadas. O enviado do marechal. Este, aquele. A lanterna. A leva. O batelão. Quaresma. [... ]. A presença do poente [ ? ]. Soluço. Será o mar? *** Malaiala ou telugo. *** A conveniência do estilo consiste em escrever sobre os mesmos assuntos que o fizeram os escritores clássicos, com as mesmas expressões e conforme o mesmo plano. Herculano [?], 117. *** Dissonância do desespero. *** Pathos. *** Ele pensava criar ambiente, a sua casa. O seu sonho é tão forte! *** Quando sobe em balão e vê o Rio, ele recorda as leituras, evoca a grandeza do Brasil e o seu sonho volta com força, etc. *** Ele não percebia que via com os olhos do sonho, não descontava a refração dessa atmosfera especial, para avaliar a realidade. Anastácio. Observações. *** Floriano preguiçoso. Fraqueza. Fuzilamentos. Paternalidade [ ? ] com os alunos da Escola Militar. *** Quaresma é feito procurador do Amazonas pelo partido da concentração. Os partidos. Brasileiros, peruano se bolivianos [......] *** A trama do céu se tinha alargado. *** Tibulo Ouve, meu anjo, o canto meu Como as cotovias sobre o mar Quando escutam os gemidos Das ondas de Trafalgar [ ? ] *** Esmeralda. O exército. A matemática. A luta com os [ ... ] A Marinha. Monge e Lagrange. *** A Duquesa, pata, parece arrastar um manto de arminho. *** Os[...] Na retirada, todos se põem a gritar: metafísicos. O general chega, repreende severamente: são fetichistas. *** Falar nas matas devastadas. *** E [.......] indaga de Felizardo: porque não planta nas suas terras? *** Casa de Maria Rita. A neta. Chateaubriand. O inventário, etc. etc. *** Eschwege Grupiaras — cascalho aurífero solto. *** Choros, folhinhas, registros, retratos [......] *** Capítulo VII — Continuam os desgostos de Ricardo. Cap. VIII — É o 5o antigo. Cap. IX—É o 6o Capítulo X — A revolta, etc. Casa de Cavalcanti, etc. Cap. XI — É o 7º antigo. Cap. XII — A defesa da legalidade. Capítulo XIII — Morte e enterro de Ismênia, etc. etc. *** Cap. XIV — Armação, guerra, etc. Ferimento de Quaresma. Ilha das Enxadas. Fuzilamento. *** Cap. XV — Fuzilamento de Quaresma, por ter protestado. *** Desgostos de Ricardo. Subúrbios — sua moradia. Razão dos desgostos. A glória. As preocupações. O seu triunfo em casa do general. Casamento de Genelício. Florêncio, Breves, Caldas, Inocêncio Bustamante. Ismênia. Apesar desse triunfo, sempre desgosto. Motivos por que foi procurar Quaresma. *** As unhas nacaradas dos seus longos dedos mergulhavam na maciez de cabelos negros. *** Pombos, quando sai o enterro de Ismênia, voam. *** Ismênia vai à casa da cartomante. *** A lua. Cap. II — 3a Parte. No silêncio da noite, a lívida lua dourava tudo, o céu e árvores e coisas, homens e as casas, com a sua luz emprestada e fria. *** Feitiçaria, etc. *** As suas terras eram de soalheira, expostas ao poente, o que não contentava Anastácio, que as queria olhando para o levante, de “noruega”, melhores. Variavam muito quanto à proporção de argila, areia, húmus e calcário, de pedaço a pedaço. Em geral, eram areno-argilosas, pouco calcário e pobres em húmus. *** Queria o incrível. Tácito. *** Revue de Deux Mondes, 1-8-08. Gaston Rougeot. Sobre os resultados da psicofisiologia. *** Policarpo Quaresma. Idéia que mata. A decepção. O prêmio. *** As paineiras estavam cobertas de flores, rosadas e brancas, que, a espaços, caíam com a doçura de ave ferida. *** Bernardin de Saint-Pierre, artigo sobre a sua vida e caráter. Natura ed Arte — Setembro de 1906 a outubro. *** Artigo sobre a vida, experiência de renascimento. Natura ed Arte — 5-12-06. *** Os barcos passavam. Ora, eram lanchas fumarentas; ora, pequenos botes ou canoas, com as suas velas alvas, roçando carinhosamente pela superfície das águas, pendendo para um lado ou outro, como se as quisessem afagar um instante. Os Órgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era azul, um azul imaterial de inebriar, de embriagar, como um licor capitoso. Ele se voltava, depois, para a cidade, que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do ocaso. Vinha-lhe então pensar por que força misteriosa, por que injunção irônica, ele se tinha misturado em tão tenebroso acontecimento, assistindo ao sinistro alicerçar do regímen. *** O processo da vida devia ser outro. Se fosse de doçura, de bondade, talvez a humanidade depurasse [? ]. *** Ilusões que morrem. Ilusões e fatos. Desenganos. *** Um oficial no hospício como deve ser considerado? Louco. Doutrina da solidão. *** Consultar a toda a hora o dicionário. Livros empregados. *** Sobre os negros, em geral, e principalmente sobre as populações coloniais da Ásia e Oceania, é bom ver a Revue Scientifique, de julho de 1906. M. Louis Lapicque. *** Sobre a literatura em geral, ler Brunetière, Revue des Deux Mondes — Janeiro e fevereiro de 1892. *** Nietzsche: Revue des Deux Mondes — Setembro a outubro de 1892. Pascal: Revue des Deux Mondes — 15 agosto 1879, Brunetière. *** Como se deve escrever a história do Brasil, tomo VI da Revista do Instituto Histórico. * *. * Artigo de Littré sobre árias e semitas, 1o de julho de 1857. *** O triste fim de Policarpo Quaresma: *** Leme. Pescadores seguiam as ondas com a tarrafa. *** Olhos cheios d’água. *** El negro se ha ido cuando se fué la fiebre, que excluía la concurrencia dominante del trabajador europeo. El Brazil, M. Bernárdez, pág. 6. *** Rouché. L’Art Théatrale Moderne. *** Sem data I - HISTORIA DO MACACO QUE ARRANJOU VIOLA Um macaco saiu à rua muito bem vestido. As crianças começaram a troçá-lo: — Olha o rabo! Olha o rabo do macaco ! — Meninos, deixem-me dizia o macaco. As crianças, porém, continuaram: — Olha o rabo do macaco! Ele foi então a um barbeiro e pediu que lhe cortasse o rabo. O barbeiro recalcitrou. Ele insistiu e ameaçou-o de lhe furtar a navalha se não lhe cortasse a cauda. O barbeiro cortou-lhe a cauda e o macaco voltou à rua muito contente. A assuada continuou: — Olhem o macaco cotó! Olhem! O macaco voltou ao barbeiro e pediu que lhe pusesse de novo a cauda. O barbeiro mostrou que era impossível. O macaco furtou-lhe a navalha. Continuou o seu caminho e veio a encontrar uma mulher que escamava peixe com a mão. — Porque você escama peixe com a mão? — Porque não tenho faca, diz-lhe a mulher. —Tens aqui uma navalha. A mulher aceitou e ambos comeram o peixe com farinha. Chegando mais adiante, arrependeu-se e foi de novo buscar a navalha. A mulher recusou, porque lhe tinha dado o peixe. — Ah! não me dás, disse o macaco, eu te furto a farinha! Dito e feito. Furtou-lhe a farinha e seguiu adiante, vindo a encontrar uma professora que dava bolos de pau às meninas. Ele, então, ofereceu a farinha. A professora aceitou e ele entrou também nos bolos. Tendo andado um pouco, arrependeu-se e veio reclamar a farinha. A professora não a tinha mais e, portanto, não a pôde restituir. Ele então arrebatou uma menina. Com ela às costas, foi indo, vindo a encontrar um tipo que tocava viola. Deu-lhe a menina em segurança e pediu-lhe a viola. Armado do instrumento, foi a esmo, topando com um rio. Não o podendo atravessar, começou a cantar as suas proezas e, acabado que foi o hino à sua astúcia, atirou-se ao rio. “Macaco, com o seu rabo, arranjou navalha; com a navalha, arranjou peixe; com o peixe, arranjou farinha; com a farinha, arranjou menina; com menina, arranjou viola”. (Contado por dona Minerva Correia Pinto, natural de Valença, à rua do Piauí, 64, Todos os Santos). *** HISTÓRIA DO LINGUADO O linguado tem a boca torta, porque, certa vez, Nossa Senhora, tendo chegado à praia, perguntou: — Linguado, a maré enche ou vaza? O peixe arremedou a fala e gesto de Nossa Senhora: — Linguado, a maré enche ou vaza? Por castigo ele ficou sempre com a boca torta. *** II - HISTÓRIA DO DIABO QUE FOI AO BAILE Certa vez, havia um baile animado num lugarejo da roça. Dançava-se e cantava-se, quando entra um moço muito bonito e pede licença para cantar. Toma de uma viola e canta. Encantou. Todas as moças ficaram pelo beicinho e ele continuou durante muito tempo triunfando. Eis senão quando uma criança se abaixa e diz: — Mamãe, esse moço tem pé de pato. Houve um cheiro de enxofre e o moço desapareceu. Era o diabo. (Estas duas histórias me foram contadas quando menino e são correntes). *** III - O MACACO E A ONÇA O macaco andava de implicância com a onça e a onça com o macaco. Um belo dia esta veio a encontrá-lo trepado na floresta a tirar cipó. — Que fazes aí, compadre macaco? — Ah, não sabes, comadre onça, que estou fazendo? É a minha salvação. — Como? — Pois não tens notícia de que Nosso Senhor vai mandar um pé de vento fortíssimo e só se salvará quem estiver amarrado? A onça logo pediu amedrontada: — Então, compadre, amarra-me também para que eu não morra. O macaco objetou que ela lhe queria fazer mal; mas, à vista dos juramentos e promessas, animou-se a descer e amarrar bem a onça. À proporção que amarrava, perguntava ao felino: — Pode-se mexer? A onça fazia esforços e, logo que ela não pôde fazer o menor movimento, o símio deu-se por satisfeito. Vendo-a bem amarrada, o macaco agarrou um cipó bem grosso e deu-lhe uma surra. Veio uma seca e a onça, para vingar-se do macaco, ficou de sentinela no único lugar em que havia água. Todos os animais podiam ir aí beber, exceto o macaco. O macaco imaginou então um estratagema. Encontrou um pote de melaço, besuntou-se todo e depois espojou-se nas folhas secas... Assim disfarçado, foi para aguada. A onça perguntou: — Quem vem lá? Respondeu o macaco: — É ará (?) (ouriço). E vem beber água, no que se demora muito. A onça admira-se muito: — Que sede! O macaco, tendo se afastado e fora do alcance da onça, responde: — Admira-se! Pois desde a surra que te meti, água jamais bebi. (Contado com pornografia pelo A. Higino, contínuo da Secretaria da Guerra, natural do Rio Grande do Norte). *** IV - O MACACO E A RAPOSA O macaco e a raposa se juntaram para poder viver. O macaco arranjou um laço, feito de uma corda, furtada. a uma fazenda; e a raposa levava uma faca. Postavam-se no trilho do gado e o macaco atirava o laço, cuja ponta ficava amarrada a um tronco de pau. Logo que a novilha era laçada e presa, a raposa atirava-se à rês e sangrava. Após comiam, e assim foram fazendo durante muito tempo. Um dia, porém, o macaco, por precipitação, esqueceu-se de amarrar o laço ao tronco da árvore. Atirou o laço e foi arrastado. A raposa gritava: — Compadre macaco, força na “cacunda”! Mas não houve meio e ele assim foi arrastado até ao curral. Houve alvoroço entre o gado. Por fim o proprietário veio e descobriu quem lhe dava cabo das reses. Para vingar-se, comeu o macaco, que estava gordo. *** OS MACACOS QUE SALVARAM A ONÇA Andava uma vara de macacos em troça por sobre umas grotas. Eis senão quando, eles vêem, no fundo de uma armadilha, uma onça que lá caíra em aventura de caça. Penalizaram-se e resolveram salvá-la. Para isso, cortaram cipós e, amarrando-se às cinturas, atiraram uma ponta ao felino que se agarrou a ela e salvou se. Chegado à superfície do solo, agarrou um dos macacos que fora tardo em soltar-se da laçada que fizera na cintura. A onça disse: — Compadre, tenha paciência, estou com fome e você vai ser comido. O macaco chorou e afinal resolveram submeter a questão ao juiz de direito. Era este o cágado, que dava audiência no centro de uma lagoa, num ilhote. Lá foram ambos. O juiz ouviu primeiro o macaco, que sempre a onça segurava pelo braço. No fim disse: — Bata palmas. Apesar de seguro, o macaco pôde bater palmas. Veio a vez da onça. Ela se explicou e por fim o juiz ordenou: — Bata palmas. Para o que, teve que largar o macaco, que se aproveitou e fugiu, assim como o juiz que se atirou n’água. (Contadas pelo Santos, servente da Secretaria da Guerra, natural do Ceará). *** V- O PRÍNCIPE TATU Estando, uma vez, o rei e a rainha à janela, viram passar um caçador com um tatu às costas. A rainha, até então, não tivera a felicidade de dar a luz a um filho, e, por isso, disse ao rei: — Ah! meu Deus! Quem dera ter o filho, mesmo que fosse como aquele tatu. Os seus desejos foram satisfeitos e, dentro de menos de um ano, a rainha veio ter um filho, que era um tatu. Apesar de ser assim, ele f i criado com todos os cuidados de um príncipe: o educado, instruído, conforme a sua ierarquia e nascimento. Tendo crescido e chegado à época do casamento, ele demonstrou desejo de casar-se com a filha de um conde, que tinha três. A moça aceitou a coisa com repugnância e pediu que a sua casa fosse guarnecida como se fosse luto, e casamento se fizesse de preto. Assim foi. À hora de recolherem-se ao quarto, o príncipe Tatu, que já encontrara a mulher deitada disse: — Ah! Tu quiseste um casamento de luto, pois vais ver... Morrerás! E estrangulou a mulher, passando um ano desaparecido. Ao fim desse tempo, voltou e mostrou desejos de casar-se com a segunda filha do conde. Da mesma forma que a primeira, ela quis que o casamento fosse de luto. Aconteceu-lhe o mesmo que à primeira. Veio a vez da terceira e esta, ao contrário das outras, quis o casamento festivo. Realizado ele e entrado Tatu no quarto, ele retirou a casca e veio a ser o homem bonito, que o encantamento fizera tatu. A moça ficou muito contente e, não satisfeita de saber do segredo, contou-o à mãe do príncipe. Esta, sabedora do caso, veio ver o príncipe seu filho e, mais a nora, lembraram-se de queimar a casca óssea do tatu. Sentindo o cheiro, o príncipe despertou e disse: — Ah! Ingrata! Faltavam-me só cinco dias para desencantar... Agora, se tu me quiseres ver, terás que ir à terra dos Campos Verdes. Saudosa do marido, a princesa faz a trouxa e parte à procura de tais terras. Andou e veio encontrar uma porta, junto à qual estava uma velhinha. — Minha velha, perguntou ela, onde fica a terra dos Campos Verdes? — Homessa, minha neta, quem deve saber isso é minha filha, a lua. Espera que ela venha. Escondeu-se na casa e esperou a lua. A lua veio e a velha perguntou. A lua disse-lhe: — Minha mãe, é longe, muito longe, tanto que ainda não cheguei lá. A princesa saiu e continuou a andar, levando no seio um papelzinho que lhe tinha dado a mãe da lua. Veio a encontrar outra velha e perguntou: — Minha velha, onde é a terra dos Campos Verdes? — Não sei, minha filha, quem deve saber é o meu filho, o Sol. Veio o Sol e este também não havia chegado lá e disse que só o vento podia saber. Com um papelzinho que lhe deu a velha, partiu a princesa à procura do vento. Veio a encontrar a sua mãe, que, como as mães da lua e do sol, lhe escondeu à espera do filho. O filho chegou furioso e gritando: — Aqui, cheira-me à carne humana e a sangue real! E procurou por toda a casa e não encontrou. Por fim, a mãe, usando de estratagemas, indagou: — Meu filho, como é que se vai à terra dos Campos Verdes? — Hi! minha mãe, ninguém pode ir... — Ninguém? — Só quem tiver três pedaços da minha boca. A mãe, então, para obtê-los, disse: — Meu filho, olha um fiapo no teu lábio. Ele passou a mão na boca e atirou o suposto fiapo no chão. A mãe apanhou logo o pedaço da boca, e assim fez três vezes. Possuidora dos três pedaços, a princesa soube, para chegar às famosas terras, tinha que atravessar o mar, com auxílio deles. Chegando à praia, assim fez, e, quando as ondas se queriam fechar, ela atirava outro pedaço. Chegou a Campos Verdes. O príncipe Tatu não o era mais e se chamava dom João. Estava casado. A princesa, sabendo disso, foi morar a uma casa muito pobre. Tirando um dos papéizinhos que as velhas lhe tinham dado, viu-se coberta de um vestido magnífico. A mulher de dom João soube e mandou indagar se ela queria vender o vestido. Ela disse que sim, porém, se ela consentisse que dormisse uma noite com dom João. Ela consentiu, mas pôs ópio no chá que ele costumava tomar à noite. A princesa não se pôde fazer reconhecer, e, tendo vestido, com auxílio do segundo papel, uma nova toilette brilhante, obteve da mulher de dom João o mesmo cambalacho. Mas a coisa foi notada pelos criados e o príncipe determinou que o seu chá noturno fosse posto fora e substituído por outro, quando a tal moça viesse. Feito isso, eles se reconheceram e Tatu mandou chamar um ferreiro: — Ferreiro, eu tinha perdido a chave de uma certa fechadura. Mandei fazer outra, mas agora achei a que tinha perdido. De qual me devo servir? O ferreiro pensou e respondeu: — Da velha. Pelo que, resolveu ficar com a princesa e separar-se da segunda mulher. *** A ARANHA O príncipe andava em guerra e perseguido pelos inimigos. Refugiou-se numa gruta. Uma aranha fez a teia na boca da gruta e os inimigos passavam e paravam, mas resolveram não entrar, porque, se o príncipe nela tivesse entrado, teria esmigalhado a teia. Assim, a avó mostrou ao neto que aranha servia e podia salvar a vida de um homem. *** VI - MACACOS NO ROÇADO DO MILHO Iam os macacos a uma roça de milho, quando deram na porteira com um cavalo deitado. Julgaram-no morto e, para afastar esse obstáculo, amarraram cipós na alimária e depois um nó na cintura e começaram a função. O cavalo, que só dormia, ergueu-se e arrastou-os. O chefe, que não estava amarrado, gritava: — Quebra o corpo rapaziada! Senão vamos pra casa do homem do milho! Eles não agüentaram e foram lá cair levando uma surra. *** VII - O MACACO E O ALUÁ Macaco tomou emprestado doze atilhos de milho a vários animais e também ao homem. Marcou o pagamento para o mesmo dia a todos. Eles vieram e ele os atirou um contra o outro, dando antes um copo de aluá a cada um, para refrescar. eles brigaram e a onça devorou os que ficaram; afinal veio o homem, que matou a onça, e o macaco ficou livre! ***- HISTORIA DO CASAMENTO DA PRINCESA CHELMINAZA O pai manda chamar a concorrer todos os que a desejam. Apresentam-se muitos. Há provas de inteligência, de destreza, etc. Dez vencem todas as provas e ele fica atrapalhado. Afinal descobre o ardil: quer saber qual o melhor. Para isso, posta no palácio, na porta, uma velha mendiga, e manda-os chamar a todos, com pressa, um por um. Quando chegam, a velha se posta aos pés deles; todos a repelem, e só um deles pára. Foi este. *** HISTÓRIA DO PRÍNCIPE BENALCAZA Vivia triste, etc. Tudo lhe aborrecia porque queria ver tudo o que há no mundo, provar, etc. Vai passear nos arredores do palácio e vê, na praia, um homem a afogar-se. Corre em seu socorro e o salva. É o gênio Gransar, que tudo pode, menos com água, e, por isso, o seu inimigo Bensar, com ardis, o atraiu e fizera soçobrar-lhe a embarcação. Em troco oferece-lhe tudo que desejar. O príncipe só pede que lhe faça provar todos os frutos do pomar do mundo. O gênio não lhe quer dar esse poder. Ele insiste. Dá ao príncipe então um cinto, tocando no qual, ele, gênio, pode ir em seu socorro, mas só em perigo de morte iminente. Ele sofre tudo; perde a posição; é ferido; é roubado pelos gatunos; sofre amnésia; trabalha como canteiro, e um belo dia é encerrado num palácio encantado, onde as iguanas se empedrecem quando se as vai tocar. Sentindo morrer à fome, chama o gênio. Este vem em seu socorro e leva-o de novo aos seus domínios. Veio a ser um bom rei, porque tudo sofreu. *** O ESCRAVO PERSA Harum Al-Raxid todo o dia quando saía de seu palácio encontrava um rapaz a olhar para o pavilhão da valida Noemi. Ele, um dia, interrogou-o e habilmente veio a saber que ele adorava Noemi e que queria ser califa para dormir com ela. Foi à casa do senhor , pois era escravo , libertou-o e levou-o a cear. Aí, deu-lhe um narcótico. E levou-o a dormir com Noemi. De manhã, ele amanheceu e devia ser morto. Ele , o califa, perdoou , etc. 1911 Em 6 de março de 1911. Respeitáveis colegas e concorrentes. Para sossego, tanto do meu espírito e do de vocês ,declaro que não sou candidato à promoção que não me julgo com direito absolutamente. Os motivos são íntimo se particulares. No mais sou de vocês amigo e admirador. Afonso Henriques de Lima Barreto. *** 5 de maio Ontem, fui ao teatro. Há muito tempo que não ia. Quase há três anos. Fui com o Marques Pinheiro, irmão do Rafael Pinheiro. Rafael é o tipo do arrivista, é do que fura, de qualquer modo. Estudou medicina e não se formou. Foi tido como rapaz de muito talento, orador, etc., mas coisa alguma de valor fez, em coisa alguma. Ele não me estima, mas talvez me tema. O irmão é medroso. Ë redator da Gazeta da Tarde, de que me fiz colaborador ultimamente. Levou-me ao teatro e fui à caixa. Nunca tinha ido aí. É interessante. Há uma desordem que agrada. Batem, sacodem, arrastam panos. O contra-regra grita com uma atriz que está ao colo de um cavalheiro: — Aqui não é bordel, é uma casa de trabalho. As atrizes, seminuas, encostam-se a nós, mostram as espáduas, dizem coisas maliciosas, cantarolam canções do Catulo. Eu gostei da coisa. Houve uma delas que gostei muito. Tinha uma feminilidade de gato, olhos pisados sob a maquillage. Bamboleava-se toda, esfregava-se em nós, maxixava. Ela era portuguesa, mas já tinha tomado o sotaque e o ar de deboche nacionais, o nosso relaxamento, a nossa tristeza que quer ruído e aquele apelo para o erotismo truculento, que nem essas damas lascivas em que o ritmo da cópula domina e é motor. Havia costureiras. Oh! Coitadas! Velhas mulatas com a miséria no rosto, mal vestidas; algumas eram mimosas ainda; mas todas tinham um ar velhaco. Elas, na sua fealdade, na sua pobreza, olhavam a todos nós, mirones e atrizes, com uma infinita resignação. “Nós nunca seremos como elas e não teremos esses cortejadores”, talvez pensassem. Enfim, fui apresentado a dona Guilhermina Rocha . É uma atriz de fama, fama feita antes pela sua beleza, que tanto sacode os jornalistas e os faz escachoar reclamos, do que mesmo pelos seus méritos. Ela é inteligente e caprichosa; mas o teatro não é o seu forte. Creio teve um amante rico, que a fez educar-se. Onde estaria ele? Que teria sido feito dele? Oh! Esses amantes ricos que educam as suas amigas, são sempre obscuros... De fato, ela é bonita e quase bela; falta-lhe, para a grande beleza, espáduas, ombros de deusa. Tem um perfil fino, pernas bem feitas; mas o busto não é correto e o colo é fraco. O que mais gostei dela foi o olhar. Tem um olhar inteligente, móbil e sequioso, olhar que, com as asas das narinas, móveis e finas, dá-lhe um grande acento de desejo, de fúria carnal, mais fúria que lascívia, mais lascívia que volúpia, mais volúpia que amor. Fedra e Safo, uma e outra coisas. Falei-lhe. Ela me disse que me conhecia. De fato, ela morava na Rua das Marrecas e, por cima da sua casa, no sotão, o Nicolau Ciâncio . Fui lá muitas vezes e a vi com volumes de Racine, Marivaux, Beaumarchais. Ela, lembrou, estreara na É fita, uma revista, como todas as outras. “C’est le triste retour des choses d’ici bas”... Devia ser deliciosa, essa Guilhermina. *** Sem data. Publiquei um aperçu sobre a tipografia do Rio na Tribuna Popular, que o Deoclides editou, em 6-6-1911. *** Sem data. Vi hoje, no trem, uma moça, com um grande manteau de teatro, sem chapéu. *** Outubro (?). Quando Flaubert esteve no Egito, encontrou um certo Chamas, francês de origem, que, de aventura a aventura, havia chegado a ser médico em chefe do exército quedival Esse medicastro empregava o seu ócio em rimar uma tragédia clássica, intitulada Abd-El-Káder, em cinco atos, cujo verso mais citado por ele era o seguinte: “C’est de là, par Allah! qu’Abd’Allah s’en alla”! Dizia ele que isto era o que os antigos chamavam a harmonia imitativa. Aí se percebia perfeitamente o galope do cavalo. “Alada planta fenda as vastidões soturnas, Ou bruta pata passe e pise, à pressa, poças, Cavada a um som, a noite arredonda-se em furnas.” *** Sem data “Le danger de l’éducation littéraire est d’inspirer un désir immodéré de la gloire sans donner toujours le sérieux morai ‘qui fixe le sens de La vraie gloire.” E. Renan, L’Antéchrist, 315 *** Sem data E já na rua, ao longe, como que continuava a ouvir os passos doidos daquelas danças lúbricas... *** E ela disse, chorou, convulsamente; no salão, as danças continuavam; mas, muitos pares se desfizeram para formar em torno dela uma roda humana espessa: — Que é Pepita? — Nada... Nada... Eu quero casar... Não quero mais viver nesta vida. E o choro a tomava, a tomava de n vo para depois suspender, e ela toda rebenta naquele o seu desejo oculto: — Quero me casar! *** Sem data “L’homme est une corde tendue entre la bête et le surhumain — une corde sur l’abîme. II est dangereux de passer au delà, dangereux de rester en route, dangereux de regarder en arrière, frisson et arrêt dangereux”. Les flêches du désir vers l’autre rive. *** Sem data Caçada em Petrópolis. Houve um club lá de caça. Um dia arrumaram uma grande caçada à onça. Damas, cavaleiros, pradaria. Como não havia onça, mascararam um bezerro e foi a ele que caçaram. *** Sem data Ocaso da mulher do P...C... Fora pedir um emprego para o marido ao Rodolfo de Miranda. Este não acedeu. Um dia, ela encontrou o tal G... A... e disse-lhe: — Sabes, vou ao Rodolfo pedir um lugar para o J... Choro e ele há de arranjar. Assim fez e, quando saiu, encontrou o Pompílio e vieram numa grande pândega de automóvel. Dias depois alguém, falando ao poeta sobre a nomeação, ele lhe disse: — É certo... Não sei como agradecer ao Rodolfo... Essa espontaneidade... Não pedi... Enfim, talvez ele seja meu admirador. *** Sem data Quintino. A sua falta de cultura, a amplitude dos seus lugares comuns. Físico: duro, lábios contraídos, aspecto hispano-americano dele. A sua incapacidade. Pinheiro. Terror. Cultura do terror. Escravo de divertimentos sangrentos. Total incapacidade de ligar a idéia à palavra. Ignorante, ausência de idéias condutoras de governo, necessidade de discursos. Carlos Peixoto. Ilustração relativa. Timidez diante das mulheres de alta roda, donde gosto pelas raparigas airadas. Elói. Sagacidade, oportunismo, medo de ser chamado mulato ou negro. Irineu. Ambição de homem humilde, fascinação pela história da revolução, brutalidade, violência sangrenta, etc. Hermes = Zero. Jeito, donaire de anjo pelo incenso dos outros, convicção de energia, reduzida capacidade militar a uma de regimento, bondade paternal, agudo sentimento de casta, suposição de iluminado, etc. *** Sem data Seabra, dando informações de coisas reservadas ao Correio. *** Não esquecer Paca. Agiotas. Fornecimentos. *** A casa de pensão do Jequiriçá *** Cantigas da Penha, transcritas em jornal: “Ranchos e grupos. Vimos no arraial os seguintes: ‘Filhos da Noite’, que passou cantando a seguinte quadra: Os Filhos da Noite A nota vão dar Na festa da Penha Sempre a brincar. A ‘Lira de Ouro’, que assim cantava: Oh minha lira... Que vai chorar, Povo do ouro Não pode negar. Flor das Morenas’. Até nos faz lembrar os bons tempos do Instituto Profissional... Penha. O ‘samba’ é a ‘nota’ alegre dos festejos de outubro, no arraial da Penha: Morena, vai, vai Minha flor... Morena, vai, vai Meu lindo amor. Meu amor. Oh! flor!” *.* * Preciso de cem contos. *** Sem data O autor destas cartas, segundo os jornais, deflorou onze moças e seduziu uma porção de senhoras: “Querida Doquinha. Recebi a tua amável cartinha na qual pedis-me que eu não me dedique a outra mulher e que não me esqueça de ti, conserteza estaes convencida que a amizade que eu tenho-te é igual a que me tens, poriço é que tens desconfiança em mim; enfim eu perdôo porque quem ama deve ter sciu1 mes e desconfiança. Doquinha eu juro-te por mais uma vez que sou teu enquanto quizeres, por tua causa eu sofro tudo que for possível, e ao mesmo tempo peço-te que tudo quanto suberes a nosso respeito escreve para meu governo, e quando quizeres falar-me pessoalmente escreve que cumprirei como se fosse uma ordem. Estimo as tuas melhoras. Teu do coração Assis.” “Queridinha confeço-te que hontem quando recebi a tua carta fiquei tão louco que confecei a mamãe que lhe amava loucamente e fazia por você as maiores violências ficaram todos contra mim, e a razão porque privino-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço- te que peze bem o meu sofrimento e escreva-me dizendo o que passou-se durante as ultimas vinte e quatro horas, e peço-te perdão de não ter respondido a mais tempo e divido a falta de tempo. Pense bem e veja se estaes r volvida a fazer o que me dizseste na tua amavel cartinha, e responde-me com a maior urgencia sim. Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido. Assis. 17-6-911. Quando acabar de ler faz o que eu fiz com a sua, rasga e queima. Adeus. — Assis.” “Indolatrada Doquina. Saudades. Tive immensa satisfação quando a vi hoje pela manhã quando passei no trem estavas sentada na meza e agora as 7 horas da noite a ver-te perto da salla de jantar, porisso peço a minha ingrata que faça o possível de falar comigo hoje, não é preciso pullar a janela é bastante abri-la que eu vou falar com voce, espera-me a hora do custume isto é, se voce não estiver com raiva de mim, podes ficar crente que tão de pressa soube que estavas de camma fui ao Dr. Roma Santos saber o que voce tinha elle disse-me que voce tinha feito a loucura de molhar os peis na agua fria, pois que voce estava com inregularidade no incomudo, foi para mim uma grande tristeza em saber que o Dr. Roma Santos sabe de teus particulares moral; enfim que eu devo fazer se voce não quer ser minha inteiramente minha como eu sou teu. Doquinha faz o possivel de não faltar porque eu tenho grande novidade a contar-te. Teu teu do coração A [ ... ] de Assis.” *** Sem data Preciso descobrir O Dia do Alcindo a meu respeito. Veio na A Imprensa, quando eu publiquei no Jornal o Policarpo. 1912 22 de março. Vou comprar um bilhete de cem contos... *** Maio . Em setembro de 1913 está pago o montepio. *** Há uma consignação que acaba em abril de 1913, outra em maio de 1913, outra em junho. Preciso ver as outras. *** 14 de maio. Vou comprar um bilhete de vinte contos. *** Saião volta dos Estados Unidos, admirado que lá haja também nomes estrambóticos. Exemplos: Broadway, estrada larga; Red Star, estrela vermelha, etc. *** Imprensa, de fins de 1912: Aventuras do Doutor Bogóloff “Lima Barreto está publicando em fascículos, que sairão sempre às terças-feiras, umas narrativas humorísticas às quais chamou: Episódios da vida de um pseudo-revolucionário russo, dando-lhe aquele título acima. As Aventuras do Doutor Bogóloff não são apenas páginas de boa literatura, são na realidade capítulos e capítulos trabalhados com sadio humorismo, visando claramente criticar os nossos costumes, sem preocupações inferiores de agressão a quem quer. O primeiro fascículo traz uma linda capa colorida” 1913 Fevereiro No volume II dos Retalhos(1), há um artigo do Forjaz de Sampaio; e no III, um de Alberto Olavo, Mário Matos, sobre o lsaías Caminha. *** Sem data. J.R. (P. B.) “Quando ele caiu na cova Remexeu-se bem dengoso Os vermes logo provaram O gordo ‘ioiô’ gostoso”. Não sei de quem é . *** 14 de setembro. Mudei-me ontem, 13-9-13, da casa em que vivi quase dez anos, à rua Boa Vista, 76, Todos os Santos . Lá entrei com uma nomeação no bolso e com muito pouco dinheiro. Nesta entrei sem um vintém na algibeira, tendo recebido antes seiscentos mil-réis. Já é progresso. Major Mascarenhas, 42 . *** Lia: Em mim, não existe absoluto, nem ausência de absoluto, porque não conheci nunca elemento distinto do “eu”. — É de Kant! exclamou alguém. *** 26 de setembro. Desagradar é verbo intransitivo. Pede, portanto, objeto indireto. É o mais grave erro do artigo, pois o pronome devia ser “lhe” e não “o”. Que clássico! Todos são assim. Quanto mais falam em gramática, mais erram por conta própria . *** Sem data. Fetichismo dos Negros do Brasil, pelo padre Etienne Brasil, Revista do Instituto, tomo LXXIV (Parte II, ano de 1911). Este padre é um mistificador de sabedoria. Conheci-o na Associação de Imprensa. 1914 20 de abril Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909 . Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensa - mentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos. Já prescindo da glória, mas não queria morrer sem uma viagem à Europa, bem sentimental e intelectual, bem vagabunda e saborosa, como a última refeição de um condenado à morte. A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare. Meus irmãos, egoístas como eles, queriam que eu lhes desse tudo o que ganho e me curvasse à Secretaria da Guerra. O que me aborrece mais na vida é esta secretaria. Não é pelos companheiros, não é pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição com a minha consciência. Não posso suportá-la. É o meu pesadelo, é a minha angústia. Tenho por ela um ódio, um nojo, uma repugnância que me acabrunha. Queria ganhar menos, muito menos, mas não suportar aqueles generais do Haiti que, parece, comandaram ou vão comandar em Austerlitz. Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de violência, de opressão, de bajulação, que me enche de revolta. Não sei o que hei de arranjar para substituir aquilo, e a minha gana de sair de lá é tão grande, que não me promovem, não me fazem dar um passo à frente. Eu fiz parte do júri de um Wanderley, alferes, e condenei-o. Fui posto no índex. Para os jornais daqui estou incompatível. Podia tentar a aventura fora, mas não tenho liberdade; era preciso que estivesse só, só. Enfim, a minha situação é absolutamente desesperada, mas não me mato. Quando estiver bem certo de que não encontrarei solução, embarco para Lisboa e vou morrer lá, de miséria, de fome, de qualquer modo. Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito. Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz. *** 13 de julho Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura ? *** Sem data Estive no hospício de 18-8-14 a 13-10-14 . *** Basilio Seixas era um rapaz preto tipógrafo, que conheci na Tipografia Altina em 1902, quando fiz, com o Tigre, a Quinzena Alegre. *** Sem data A Notícia de 9-8-14. Afrânio Peixoto, “isto é metonimia”, quando foi por sinédoque. 1915 Março. Fiz o empréstimo no Montepio, em março de 1915. * *.* Sem data. A Noite começou a publicar o meu livro Numa e a Ninfa, em 20 de março de 1915. * *.* Álbum de Pelino. — Porque a girafa tem o pescoço tão comprido ? — Porque tem a cabeça longe do corpo. * .* * “Há meses inaugurou-se iluminação elétrica em uma qualquer cidade. Para evitar desastres pessoais dou-vos o seguinte aviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores, etc.: “Perigo! Quem tocar nesses fios será fulminado. Pena de prisão e multa para os contraventores.” Fazer um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fio elétrico ... *.*.*. Sem data Banco, consignação, a começar a 1o de janeiro de 1916. 1916 Fevereiro. O Policarpo Quaresma apareceu em 26 de fevereiro de 1916. A entrevista comigo na Época saiu em fins de fevereiro, 20 . *.* * Retirei três exemplares: um para Jackson , outro Vinhais e outro Milanez . *** Retirei quatro volumes: dois brochados e dois encadernados, sendo para o Comércio e a Noite. *** Castilhos / 50. *** Brochado, 1. Pereira da Silva. *** Mandei: 1 — João Ribeiro. 1 — Alcindo Guanabara. 1 — Alcides Maia. 1 — Laet . *** Dei: 1 — Antônio 1 — Benedito . 1 — Lima . 1 — Minha irmã. *** Já dei quinze exemplares. *** País. 1 volume. Dei. Gazeta. 2 volumes. Dei. Viriato . Um volume. Dei. Prensa. Um volume. Dei. Tribuna. Um volume. Dei. Noticia. Um volume. Dei. Braule . Um. Dei. Rui . Um Dei. Afonso Celso. Um. Dei. Correio Paulistano. Um. Amadeu Amaral. Estado de São Pauto. Um. Teixeira (Lisboa). Dois . Couto . Um Dei. Fábio . Um. Dei. Biblioteca. Dois. *** Saião . Hilário de Gouveia, 54. Copacabana. *** Adriano de Abreu — 1. Capistrano de Abreu — 1. Mário Behring — 1, dei. Carlos Maul — 1, dei. (Jornal das Moças. Assembléia) *** Notícia da Época sobre Policarpo: 28-2-16. *** Domingos — 1, dei. A Águia — 1 (Porto), dei . Dei 25 exemplares. Osino — 1, dei. Emílio — 1 dei. Dei 28 exemplares. *** Correio de Vassouras: doutor Soares Filho — 1. *** Artur Mota. São Paulo. *.* * Francisco Calmon. Farmácia do Aristides Caire. *** Rui Barbosa, dei. São Clemente, 184. *** Costa Macedo — 1, dei. Jacob — 1, dei. Gilka — 1, dei. Dei 33 exemplares. Lambert — 1, dei. Bilac — 1, dei. Malagutti , dei. *** Carlos Restier — 1, dei. *** Paulo Hasslocher. Nossa Senhora de Copacabana, 72 *** Dei 36 exemplares. Dei um ao tipógrafo. Dei 37. *** Arnaldo Pereira. Arquivo da Prefeitura. *** Mota —? Reis — 1. Dei 38 exemplares. *** Bastos Tigre — 1. Antônio Torres — 1. Araújo Jorge — 1. *** Doutor Afonso Machado. Largo da Lapa, 106. *** Alfredo Morais Rego — 1. *** Dei sete mais = 45. *** Prensa. *** Cartier . 48 livros. *** Dei 49. P. Curio —1. *** Nos nossos militares (exceto a Marinha), a necessidade de mudança de uniformes eqüivale à da moda nas mulheres. *** 1 — Henrique Magalhães. Dei 51. Dermeval — 1, dei. 52. *** Cardim . Rua Fernandes, 91. *** Março Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha. As folhas não se importavam com outra coisa senão com o gesto comicamente davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com noticias como esta: “A esquadra portuguesa foi mobilizada. Acham-se em pé de combate o couraçado Vasco da Gama, o cruzador Adamastor, a corveta dona Maria da Glória, a nau Catarineta, a caravela Nossa Senhora das Dores, o brigue Voador e o bergantim Relâmpago”. E não têm tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro. *** O Poticarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco, depois publicado em folhetins no Jornal do Comércio da tarde, em 1911. Quem o publicou foi o José Félix Pacheco. Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em livro. Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publica-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos , que me emprestou trezentos mil-réis, e o Benedito imprimiu-o. Os críticos generosos só se lembravam diante dele do dom Quixote. V. Oliveira Lima e Afonso Celso. Audaces fortuna juvat. *** O Numa e a Ninfa foi escrito em vinte e cinco dias, logo que saí do hospício. Não copiei nem recopiei sequer um capítulo. Eu tinha pressa de entregá-lo, para ver se o Marinho me pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos. Escrevi-o em outubro de 1914. O Marinho era diretor da A Noite. *** Encontrei, na estação, T. S., um vagabundo, companheiro de P. Disse-lhe que tinha estado doente, e ele me confessou que também, à guisa de quem faz uma confidência, explicando-me, ao ouvido, que tinha levado uma navalhada na barriga da perna. Penso que ele tinha perebas. *** W., cantora, interpelou o espectador por ter posto a mão em concha no ouvido. *** Numa dependência do quartel-general, diversos soldados conversavam; diz um a outro: — Foi preso esse Paiva Couceiro. — Quem é? — É um anarquista aí. *** O Isaías, os primeiros quatro capítulos, escrevi-os lentamente; o resto em dias, mas copiando-os, logo que os acabava. *** Os jornais que não noticiaram absolutamente o aparecimento do meu segundo livro foram: o Correio da Manhã e a Tribuna, do Rio de Janeiro. No Correio sou excomungado; e é justo. Na Tribuna, não sei porque, tanto mais que o mandei ao Lindolfo Cólor. *** Sem data. Vilarinho morreu em 8-4-1916 . *.* * Junho. Encontrei em Ouro Fino na boca do povo o neologismo “fumal”, para designar plantação de fumo. E o vício de dizer “ponhar” em vez de “pôr”, em todos os tempos e modos . *** Sem data. Manuel de Oliveira morreu a 8 de novembro de 1916, dia de anos de minha irmã. Eu o conheço desde os onze anos e creio que ele foi para casa, quando eu tinha doze ou treze anos. Viveu conosco cerca de vinte e dois ou vinte e três anos e muito nos serviu e foi útil. Era preto cabinda e tinha de sua nação um orgulho inglês. Hei de escrever-lhe um artigo *** “Amplius ! “, A Época, de 10-9-16. 1917 Março. Devo unicamente ao Lima, pela impressão do Policarpo , a quantia de quatrocentos e quarenta e dois mil réis . *** 7 de março. Hoje, 7 de março de 1917, estive na Garnier, como ontem, como anteontem. Vou agora lá sempre rondar. Troquei palavras com este, com aquele, e cada vez me capacito mais de que eles não tem nenhum ideal de Arte. São muito inteligentes, escrevem e falam como Rui de Pina, mas ideal em Arte não tem nenhum. Não me entendem ao certo e procuram nos meus livros bandalheiras, apelos sexuais, coisa que nunca foi da minha tenção procurar ou esconder. Chamam-me de pudico. Ora bolas ! *** Eu vendi ao Jacinto quatrocentos Policarpos por duzentos mil-réis. Vendi ao Garnier a mil-réis cem, por cem mil-réis. Vendi ao Alves setecentos a oitocentos réis, quinhentos e sessenta mil-réis 1200 = 860 mil-réis. Devo ter recebido uns seiscentos mil-réis de consignações. 860 + 600 + 1.460$000~ Dei cerca de.mil e duzentos exemplares. Tenho ainda a receber cem mil-réis , se tanto. *** Enquanto que Latino Coelho — livro sobre o Marques de Pombal, diversas vezes, nas páginas 357 [......] *** Lutero também condenou o sistema de Copérnico. Ver Latino Coelho, Marquês de Pombal, página 371. *** dona Luisa de Oliveira Costa, poetisa das Mágoas Secretas, Rua da Candelária, 92A. *** Paguei a Gazeta até 14. *** Preço médio do açúcar exportado é de 462 réis o quilo. Vide Correio da Manhã, de 15-9-17 O último da Bruzundanga. veio no A.B.C., de 5-5-17. *** 7 de junho. Minha irmã acaba de chegar da rua (sete e meia da noite) e me traz a notícia de que um grande prédio em construção no Largo do Rossio acaba de desabar, matando quarenta operários. O antigo prédio era uma arapuca colonial, mas que, apesar da transformação, de ter tido as paredes eventradas, resistia impavidamente. O novo ia ser uma brutalidade americana, de seis andares, dividido em quartos, para ser hotel: Hotel New York (que nome!), um pombal, ou melhor: uma cabeça-de-porco. Somos de uma estupidez formidável. O Rio não precisa de semelhantes edifícios. Eles são desproporcionados com as nossas necessidades e com a população que temos. Com pouco mais, o seu construtor adquiria os prédios vizinhos e faria coisa decente, proporcional, harmônica com a nossa vida e os nossos gostos. Mas a mania de imitarmos os Estados Unidos leva-nos a tais tolices. Uma casa dessas, servida por elevadores, povoada que nem uma vila povoada, é sempre uma ameaça para os que a habitam. Em caso de desastre, de acidente, os pequenos elevadores não a poderão esvaziar, a sua população. Mas os americanos... É o que eles chamam progresso. Fresco progresso! . *** Sem data. Há dois acréscimos a fazer no Policarpo: o requerimento do maníaco que quer ser major por ter dois galões, como tenente honorário, e outros dois, como tenente reformado, pois a soma 2 ± 2 = 4 dá o número de galões de major; e falar nas cobras — a morte do Dicomarte. *** Sem data. Para Clara dos Anjos. Ver Correio da Manhã, de 31-5-17. *** Piramidamento. Piramidar — colocar em pirâmide. *** Sobre a vida de João Laje, ver Correio da Manhã, artigo do Edmundo e de 6-9-17 *** Sem data. “Un écrivain ne doit songer, quand il écrit, ni à ses maitrês, ni même à son style. S’il voit, s’il sent, il dira quelque chose; cela sera intéressant ou non, beau ou médiocre, chance à courir.” Remy de Gourmont. Le probleme du Style. p. 31. “Volupté — c’est pour les coeurs libres quelque chose d’innocent et de libre, le bonheur du jardin de la terre, la débordante reconnaissance de l’avenir pour le présent.” Nietzsche. Zarathrusta. *** “Loué par ceux-ci, blâmé par ceux-là, me moquant des sots, bravant les méchants, je me hâte de rire de tout, de peur d’être obligé d’en pleurer.” Figaro, Beaumarchais. *** Carta régia de 30-7-1766, proibindo as fábricas. Vide Matoso Maia, página 222, e a que proíbe a cultura da cana-de-açúcar no Maranhão, de 19-6-1768, no mesmo autor. *** Quando se está perto de uma mulher, ou dizemos asneiras, ou nos calamos. *** Sem data. O Paraná (que em tupi significa mar) toma este nome... Serve de limites às províncias de Minas, Goiás, São Paulo e Paraná; dividindo outrossim o Brasil do Estado Oriental e da Confederação Argentina. Recebe então o Paraguai e o Uruguai, adquirindo o nome de Rio da Prata. Nota do Cônego Fernandes Pinheiro à História do Brasil, de Robert Southey, volume III, página 433. Há aqui um equívoco do Southey. É inexato que o rio Uruguai... serve de limites do Império do Brasil à República Oriental. *** “Cette question de savoir si son (du Grec) toujours grandissant désir de beauté, de fêtes, de réjouissances, de cultes nouveaux, n’est pas fait de vice, de misère, de mélancholie, de douleur?” Nietzsche, L’Origine de la Tragédie. Em que fica a joie de vivre dos gregos? Ora bolas! *** Só em Ciudad Real, a Inquisição, em 1486, processou mais de três mil pessoas; em Sevilha, desde este ano até o de 1489, calcula-se em três mil sentenciados, dos quais perto de quatrocentos foram queimados vivos. Herculano, História do Estabelecimento da Inquisição, página 71 (2a edição). *** 3 de junho. Hoje, depois de ter levado quase todo o mês passado entregue à bebida, posso escrever calmo. O que me leva a escrever estas notas é o fato de o Brasil ter quebrado a sua neutralidade na guerra entre a Alemanha e os Estados Unidos, dando azo a que este mandasse uma esquadra poderosa estacionar em nossas águas. A dolorosa situação dos homens de cor nos Estados Unidos não devia permitir que os nossos tivessem alegria com semelhante coisa, pois têm. Néscios. Eu me entristeço com tal coisa, tanto mais que estou amordaçado com o meu vago emprego público. A escolher, sim senhor, eu preferia mil vezes a Alemanha. Não posso dizer nada e nada direi; mas aqui fica o meu protesto mudo. Coisa curiosa, o Lauro não quis dar o seu assentimento a tal coisa; o Nilo deu. Ao primeiro, chamam de alemão; e ao segundo, de moleque? Em que parará isto? Não sei bem, mas se a sangueira já é grande, julgo que ela vai ser ainda maior depois. Tudo o que é revoltante e grosseiro vai por baixo disso tudo, sob o pretexto de pátria. É de causar horror, tanto mais que os fortes burgueses querem, aproveitando o estado dos espíritos, matar o indivíduo em proveito do Estado, que são eles. Spencer tinha razão: o mundo retrograda. O escopo utilitário matou todo o ideal, toda a caridade e quer cada “besta” na sua manjedoura. Antes o feudalismo! Antes a nobreza! *** 18 de junho. Nada mais devo da impressão do meu livro. O pulha do Vasconcelos, empregado na Secretaria do Exterior, no meio de outros pulhas, cônsules ou coisa que o valha, teve o topete de perguntar-me onde fui buscar um conto e oitocentos mil-réis. Certamente não foram nas gratificações que na repartição dele se distribuem a mancheias. F. da p.! *** Hoje me contaram que o Getúlio das Neves, lente da Escola Politécnica, demitiu-se de diretor da Carteira Cambial do Banco do Brasil, porque, encontrando o câmbio, por exemplo, a 11 1/32, no dia seguinte, julgando que o fazia subir, mandou que o Banco o cotasse a 11 3/32. As cifras não são exatas, mas o fato em si é. *** O Raul Pederneiras fez concurso de anatomia artística, de que deve entender muito pouco. Agora, está tratando de fazer de grego, de que estudou umas coisinhas no Ginásio. Que homem e que país! *** Setembro. A segunda edição do Isaias apareceu em setembro de 1917. *** 5 de setembro. De há muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale, abate todo o organismo, desde os intestinos até à enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê- la. Preciso deixar inteiramente. No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo. Ia para a cidade, quando me senti mal. Voltei para casa, muito a contragosto, pois o estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio. Deitei-me, vomitei e andava com fluxo de sangue, que me levava à latrina freqüentemente. Numa das vezes em que fui, caí e fiquei como morto. Meus irmãos acudiram- me e trouxeram-me a braços, inclusive o Elói, o filho da Prisciliana, meu afilhado e de minha irmã. Não sei o que se passou; o que sei é que as senhoras da vizinhança acudiram e eu despertei duas horas depois com equimoses nos tornozelos e cercado por elas, cheias de susto. Chamaram médico, o Caire, estudante do meu tempo; e estou sofrendo a medicação mais penosa que me podia ser imposta. Estou em dieta de fruta e água de arroz, pois o meu organismo tem deficit. Se não deixar de beber cachaça, não tenho vergonha. Queira Deus que deixe. *** Outubro. “Exmos Srs. Tendo nós notado que artigos de certos dos nossos autores, quando aparecem em publicações difundidas, são lidos com interesse e avidez; e notando também que muitos escritores não possam faze-los com independência e necessária autonomia intelectual, para não ferir interesses e susceptibilidades das grandes empresas dos nossos quotidianos, revistas e magazines; resolvemos editar uma pequena revista quinzenal em que coubessem artigos de semelhante natureza e onde também fossem feitos, sem a dependência de pequeninos interesses do momento, largos e francos comentários aos sucessos da nossa atividade, em todos aqueles departamentos onde os nossos colaboradores entendessem buscar assunto. Não se trata de uma revista de descompostura, não se trata nela de insultar esta ou aquela personagem em evidência. Não precisamos disto. O que nós desejamos é esclarecer fatos e opiniões, sob a luz de uma livre crítica, de forma que aqueles leitores, pouco enfronhados nos bastidores de certos aspectos da nossa vida e deles só tendo diante de si o fato bruto, possam melhor julgar o desenrolar dos acontecimentos políticos, literários e outros, assim também as individualidades envolvidas nesses acontecimentos. Um programa destes é necessariamente assintótico. Começamos modestamente e, com o tempo, a curva irá se aproximando gradativamente, insensivelmente, da assíntota, para nunca atingi-la. É da definição. Com esse espírito, resolvemos pôr, na direção intelectual da publicação, o senhor Lima Barreto, moço autor, cujos livros, por demais conhecidos, são fiadores da diretriz que ele imprimirá a Marginália, de acordo com o que desejamos. Procuraremos o mais breve possível organizar o nosso quinzenário, de forma a torná-lo o mais atraente possível. Na medida do razoável, não fugiremos aos moldes das publicações mais procuradas. Sem faze-la semelhante aos chamados semanários humorísticos, nem tampouco aos modelos das grandes revistas clássicas — o que no nosso meio é quase impossível —, esforçar- nos- emos por editar a Marginália de modo que, participando de um e outro gênero de publicidade, ela possa satisfazer o gosto de qualquer espécie de leitor, sem depender de nenhuma delas. É mais uma tentativa que entre nós se faz nesse gênero de imprensa de período longo; e, seja qual for o seu futuro, ficaremos satisfeitos só em tentá-la. Esperamos, pois, a boa vontade dos senhores para a publicação que encetamos agora e, desde já, agradecemos o acolhimento que derem a Marginália. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1917. Os Editores. P.S. — Não aceitamos, por ora, assinaturas.” *** Sem data. Otacílio Sampaio de Macedo. Ensaio de uma Psicologia Nacional. Capítulo II. Cita Policarpo. 1918 21 de janeiro. Eu beijei por uma ou duas vezes E., cunhada do H.M. Isto foi há dias e eu estava esquentado. Se aquela ocasião fosse propícia, talvez consumássemos o ato. Ela é casada com um demônio de um inferior da Marinha, estúpido a roçar na idiotice. Tem todas as manifestações da compressão militar, em que o puseram desde a meninice. Tem dois filhos. A E. não é uma beleza, mas é farta de carnes e tem aquele capitoso das caboclas, quando moças. Foi sempre ela quem me provocou. Naquele dia, eu fui adiante... O G. a ronda também, mas penso que não chegou tão longe... O que eu queria dizer é que, agora, quase um mês passado, eu não tenho nenhum interesse em continuar a aventura. Não lhe tenho amor, não me sinto atraído por ela, por isso não encontro justificativa em mim mesmo para arrastá-la, como se diz, a um mau passo. Havemos de ver... (Morreu no fim do ano e o G. também. Gripe). *** Álbum de Pelino Guedes “IDA E VOLTA” A Osório Duque Estrada Quando chorosa partiste, No dorso do mar bravio, Sobre a tolda do navio Vi-te, dolente, a cismar... No ocaso o Sol se escondia, Gemia o mar nos abrolhos Chorava a dor em teus olhos Tudo chorava no lar... Hoje que voltas contente, Do teu sorriso inocente De luz doura-se o arrebol... Ontem — partias chorando, Hoje — sorrindo e cantando Beijam-te as flores e o Sol !“ “Por mais que te escarafunches Por mais que rimas arranjes Serás sempre um pobre Dunshee Um pobre Dunshee de Abranches.” Artur Azevedo, vide A Lanterna, de 30-10-17. *** “Aucun âge n’a le droit d’imposer sa beauté aux âges qui précèdent; aucun âge n’a le devoir d’emprunter sa beauté aux âges qui précèdent. II ne faut ni dénigrer ni imiter, mais inventer et comprendre.” Taine, Essais, página 255. *** Helmholtz, citado por Metchiníkoff: “La Nature. a comme exprès accumulé les contradictions dans l’intention de repéter tous les fondements d’une théorie d’harmonie préexistente entre le monde extérieur et le monde intérieur” — página 100. *** O conto meu “Sua Excelência” foi transcrito na Platéia, de São Paulo, em 24-1-18. *** O doutor Luís Ribeiro do Vale, na sua tese de doutoramento em 1918 (ano letivo de 1917), refere-se ao meu livro Policarpo Quaresma. O título é Psicologia Mórbida na Obra de Machado de Assis. *** Lenine, Trotski, Kólontai. (mulher?). *** Páginas 146, 147, Sóror Mariana Alcof orado, Luciano Cordeiro, sobre adornos pagãos nos conventos de Conceição de Beja e no de Odivelas. *** nasceu — 22-4-1640 Mariana Alcoforado morreu — 28-7-1723 83 anos Convento Conceição (da Nossa Senhora da Conceição) de Beja (Alentejo). *** “Daqui a poucos dias vai fazer um ano que toda me entreguei sem escrúpulos”. Carta II. “Receava muitas vezes que a afeição que parecia ter por mim pudesse de algum modo prejudicá-lo (a Chamilly)”. Carta V. “Em nada mais faço consistir a minha honra e a minha religião do que em amar-te perdidamente toda a vida já que comecei a amar-te”. Carta IV. “Também (Deus?), separando-nos, parece-me que nos fez todo o mal que poderíamos recear dele. Não conseguirá separar os nossos corações: o amor que pode mais do que ele uniu-os para toda a vida”. Carta 1. “O que me fazem por aliviar-me, acirra a minha dor, e nos próprios remédios acho razão particular para me afligir.” Carta II. “Fizeras a sangue frio o propósito deste incêndio em que me abrasaste toda.” Carta III. *** Há dez anos eu não compreenderia estas cartas (1918). *** “Triste de mim! que sinto vivamente a impostura desta idéia (nunca tê-lo visto), conheço, mal a exprimo, que estimo bem mais ser desventurada, amando-te, do que não te haver visto jamais.” Carta III. *** Heloísa diz coisa semelhante. *** “Mas agradeço-te, do fundo do coração, as mortificações que me causas, e aborreço a tranqüilidade em que vivia antes de conhecer-te.” Carta III. “Vi que (o senhor) era menos caro do que a minha paixão e tive mágoas desconformes em combatê-la, depois ainda que os maus procedimentos do senhor o tornaram para mim odioso.” Carta V. “Desconfio muito dos sentimentos violentos para que me aventure a esse.” Carta V. “Parece-me contudo que se os homens pudessem ter mão na razão quando escolhem os seus amores, mais se inclinariam a elas (religiosas) do que a outras mulheres. Carta V (1). *** Sem rival, Chamilly. Eu sou seu rival. *** O indeferimento do meu requerimento de montepio em 1916. *** — Não cobra nada pelas minhas receitas, pois só prescreve remédios para os amigos. Seria muito melhor que o fizesse para os seus inimigos. *** O filho do Leão Veloso aceitou a Legião de Honra. Vide Correio da Manhã, de 5.5.1918. O Júlio Novais agrediu o Álvaro de Oliveira, em 8-5-96, em frente à igreja de São Francisco, por causa de reprovações. *** Fim do governo: Ocupar-se das substâncias Fornecer a abundância Cuidar da segurança Favorecer a igualdade. Bentham — Filon — Literatura inglesa. *** Um epitáfio de um marinheiro grego que naufragou: O marítimo que aqui jaz diz-te: “Veleja! O golpe de vento que nos fez naufragar aqui, fazia vogar ao largo toda uma flotilha de barcos felizes e contentes”. *** A prorrogação do contrato da São Paulo Railway foi no governo do Prudente. O Adolfo Gordo foi o intermediário. *** Frase de Nilsa Faceiro (caso da casa do Faria — retalhos em notas oportunas), tratando do filho que tem no ventre: “Sim, é dele; e só a ele (o amante) é que eu amo”. *** Bolchevismo. *** Conde de Belfort, Visconde de Gurupari — morou na Rua Formosa, perto do velho Antônio Lourenço, num sobradão junto ao Colégio de Santa Cândida. *** Sem data,. O artigo do Amaral tem o mesmo plano que o do Miguel Melo; o do Antônio Torres o mesmo que o daquele último; o do filho de Leão Veloso o mesmo que o do Torres. Parece que o plano foi ditado pelo chefe de polícia, devendo tocar nos seguintes pontos: a) acoimar de estrangeiros os anarquistas, e exploradores dos operários brasileiros; b) debochar os seus propósitos e inventar mesmo alguns bem repugnantes e infames; e) exaltar a doçura e o patriotismo do operário brasileiro; d) julgar que eles têm razão nas suas reivindicações; que a dinamite não deve ser empregada, etc.; que devem esperar, pois a câmara vai votar o código do trabalho, etc., etc. Seria melhor mandar o Celso Vieira redigir uma circular, em papel da chefatura de polícia, e, mediante pagamento razoável, publicá-la em todos os jornais. Viver às claras . *** Hélio Lobo, sua defesa, em A Noite, de 1-12-18. *** Quando eu passo, à noite, pelo Flamengo, que as gentes elegantes, com as suas horríveis casas, fizeram banal, lembro-me do Helesponto, de Leandro e de Hero, que deve estar lá, em Icaraí. Infelizmente, eu não sei nadar. *** A Gazeta, de 1 e 2-12-18, denuncia uma violência do delegado da 17a sob o pretexto de anarquismo. *** João Francisco comprou um apito e uma gaita, para atrair os pardais. *** 27 de dezembro Hoje, aqui, no Hospital Central do Exército, estando na varanda, das seis para as sete, eu vi um grupo de irmãs atravessar o jardim, em demanda a uma outra enfermaria. Uma delas, ao pisar nas terras, recentemente trazidas para um canteiro, passou levantando os pés, como se estivesse a atravessar um terreno encharcado, e levantou a bata com os ademanes bem femininos, com ambas as mãos. Tarda muito a morrer na mulher a coquetterie. A menina burguesa, mais ou menos rica, surgiu debaixo da irmã. *** João Francisco Filho continua a chamar os pardais e a ouvi-los cantar óperas, valsas, etc. *** No retrato de Josefina, que ilustra as minhas memórias de Barras, compradas em segunda mão, havia a seguinte nota, da mão naturalmente do primeiro possuidor: “Veja o retrato na obra de J. Turquan, pág. 1.” *** Escrever alguma coisa sobre o João Francisco e os pardais. Foi meu companheiro no Hospital Central do Exército. João Francisco, alferes reformado, tipo raté da Escola Militar, as suas manias matemáticas, a sua terminologia, megalômano etc. Encontrei no Hospital Central do Exército. Escrevia cartas a todos os reis e potentados, aconselhando isto ou aquilo. Tinha um tratado de mecânica, etc. Caso patológico das manias dos militares saídos da Escola Militar há trinta anos. *** Chagas — boêmio. Nezumano — positivista. Nepomuceno — caricato. *** Sem data. Fui aposentado por decreto de 26-12-1918. Presidente da República, vice em exercício, Delfim Moreira e ministro da Guerra, Alberto Cardoso de Aguiar. *** Sem data. No Peau de Chagrin, de Balzac, há o seguinte pensamento muito semelhante a um de Nietzche: “L’homme est un bouffon qui danse sur des précipices. 1919 Janeiro Estive no Hospital Central do Exército, de 4 de novembro de 1918 a 5 de janeiro de 1919. *** 25 de fevereiro O meu Gonzaga de Sá, editado em São Paulo, apareceu no Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 1919. *** “Mais que diable allait-il faire dans cette galère?” Molière, F. de Scapin. *** Março O negócio do Antônio Claro, diretor da fábrica de tecidos, está no artigo de Ramos da Paz, Jornal do Comércio, de 10 ou 11 de março de 1919. *** “Le Latin, qui dans les mots brave 1’honnêteté”... *** A mulher do H., com quem estive em avançadas intimidades, narrou-me há tempos que o pai gastava razoáveis dinheiros para levar toda a família a Petrópolis. Falando-me em passear com ela, lembrei-lhe a Tijuca, o Jardim, o Pão de Açúcar, as Paineiras, o Corcovado. O pai é fiel da Armada e se tem em grande conta. Eles e ela saíram todos assim. *** Eu veria a Vitória de Samotrácia com o mesmo olhar e a mesma emoção com que vejo um manipanso africano. São documentos sociais ambos. *** 13 de março “A Liga contra o football.” Lima Barreto, entrevistado pelo Rio-Jornal expõe os inconvenientes do football. Um jogo de pés que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação. A notícia de que Lima Barreto e alguns companheiros tratavam de fundar uma ‘Liga contra o Football’, levou-nos esta manhã à sua casa, para obter mais esclarecimentos sobre os destinos e fins da liga. Lima Barreto reside, há dezesseis anos, na pacata estação suburbana de Todos os Santos. A sua casa é modesta, porém clara e ampla, cercada de fruteiras e respirando sossego. A sua sala de trabalho, ao mesmo tempo dormitório, é também clara e ampla, tendo livros, móveis, quadros — tudo em ordem. A desorganização de Lima é para uso externo. Estava lendo os jornais matutinos, quando chegamos. — Você por aqui! exclamou ele logo ao ver-nos. — É verdade. Quero saber bem esse negócio da ‘liga’ que você fundou. Nós já nos havíamos sentado e o Lima, na cadeira de balanço, deixou os jornais e respondeu: — O negócio é simples. Há cerca de um ano eu e o Valverde... Você não conhece o Valverde? — Conheço. — Bem. Eu e ele, conversando sobre os sports, em uma confeitaria do Méier, Valverde me expôs, com a sua competência especial de médico que conhece o seu ofício, os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital. Ele mós explicou singelamente, sem pedantismo, nem suficiência doutoral. Impressionei- me. Dias depois, ele me lembrou a fundação da liga. Passaram-se dias e meses e não mais falamos nisto; ultimamente, porém... — Com a decisão da congregação do Pedro II, proibindo o football? — Não; antes. Eu explico a você. Nos últimos meses do ano passado, estive no Hospital Central do Exército, tratando-me. Lá, sem ter que fazer, nem distrações, eu, por desfastio, lia todas as seções dos jornais, inclusive as esportivas que são as únicas enfatuadas e enfáticas. Verifiquei que havia uma irritação inconveniente entre os players. — Você já sabe a técnica do football? — Isso é técnica? Player está ali no Valdez. — Vamos adiante. —...entre os players, amadores, torcedores, enfim entre o público do bola-pé de lá e o daqui. Você sabe disso? — Sei. — Saindo do hospital, tive notícias mais completas. Entre a gente do football de lá e a daqui há uma rivalidade feroz que se manifesta em chufas, vaias, apelidos deprimentes, até em rolos. A esse respeito escrevi dois ou três artigos... — Onde? — No A.B.C. ... Mas, a coisa não seria tão importante, se nestes últimos dias, realizando- se no Recife, um match entre um club de lá e um daqui, não se repetisse as chufas, as vaias e os rolos. — Concluiu você, daí... — Concluí que, longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral .entre as divisões políticas da União, separava-as: — Não será exagerado, Barreto? — Julgo que não. Entre São Paulo e Rio foi assim; entre Rio e Recife também; e o lógico é provar que as coisas se repetirão entre Rio e Belém, entre Rio e Porto Alegre, etc. etc. — É um argumento. — E não é só este. Os grandes oclubes daqui, aqueles que têm para cerimoniais o caucásico Coelho Neto, são portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça etc., você não pode negar isto! — Não nego; é verdade. — Está aí, uma grande desvantagem social do nosso football. Nos nossos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do pontapé propaga a sua separação e o governo o subvenciona. — Subvenciona? — Sim. Parece que a Liga e a tal Confederação estão inscritas no orçamento da despesa da República. Não estou certo, vou verificar; mas, favores e favorezinhos, elas têm recebido do governo para lançar cizânias entre Estados da União e criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros. — Que favores são esses? — Os poderes governamentais reconheceram de utilidade pública a tal Confederação, o que naturalmente redunda em alguma vantagem de ordem administrativa; e aquela casa de espantos, que é o Itamarati, quando há os tais matches internacionais, subvenciona clandestinamente as équipes que vão para as repúblicas vizinhas ‘defender as nossas cores’, como dizem eles infantilmente. De modo... — Você é capaz de provar que receberam essas subvenções? — Nem eu nem ninguém. O Itamarati, depois de Rio Branco, fez-se a caixa dos segredos e das mistificações da nossa administração. Não há quem arranque de lá a mais simples certidão... — Então, como você? — Como? Digo, sob a responsabilidade de meu nome, denuncio, e chamem-me a juízo. Espero. Contudo... — Mas, Barreto, penso em que vocês não ficarão nesse aspecto político-social- administrativo do footboll — não é? — Não ficaremos aí. Esta é a minha parte, mas a que se refere à higiene pessoal, ao funcionamento da boa saúde, às reações de ordem psicológica, às perturbações ao desenvolvimento mental que ele possa trazer, esta parte difícil, árdua e técnica é com o Valverde. Eu tratarei da minha, no que tenho o apoio de todos, pois nenhum de nós está disposto a admitir que o Brasil pague impostos, para o governo obter dinheiro e ele venha a dar um pouco desse dinheiro à sociedade dos que cavam a separação, não só das divisões políticas da nação, mas entre os próprios indivíduos desta nação. Você pode dizer que nós não estamos dispostos a consentir que se forme, à custa dos contribuintes, uma aristocracia que se baseia nas habilidades dos pés... Representaremos ao Congresso... A conversa ameaçava eternizar-se, despedimo-nos, pois; o serviço do jornal nos esperava. 1920 Sem data. A segunda vez que estive no hospício de 25 de dezembro de 1919 até 2 de fevereiro de 1920. Trataram-me bem, mas os malucos, meus companheiros, eram perigosos. Demais, eu me imiscuía muito com eles, o que não aconteceu daquela vez que fiquei de parte . *** Tenho um conto no Malho, segundo semestre de 1919, que não guardei. Não sei o número . *** Sem data. O cálculo do valor das terras de São Paulo, segundo o Cincinato Braga. Fazer uma charge a respeito . *** Revista da Semana, de 7-8-20. Logo no primeiro artigo aconselha reformas suntuárias na cidade. Em seguida sob o título “Um prado de corridas no Leblon” — pede que a Prefeitura e o Ministério da Agricultura o construam, visto “gastar-se muito dinheiro em coisas inúteis” (textual). Por aí vai nas suas elegâncias . *** A ordenação do Reino (manuelina) que equipara as bestas aos escravos é encontrada no livro IV, título xvi. *** “A saudade escreve entranhado.” Camões, Elegia. 1921 Sem data. Num domingo de fevereiro de 1921, houve um grande rolo, quando, na Praia de Botafogo, jogavam uma partida de water polo os clubes Natação e São Cristóvão. Foi tremendo e dentro d’água. *** Setembro. João Henriques de Lima Barreto. Nasceu em 19 de setembro de 1853. Foi chefe de turma das oficinas de composição da Imprensa Nacional, depois de trabalhar como tipógrafo em várias oficinas particulares e de jornais do tempo; mais tarde, chegou a mestre da referida oficina da mesma Imprensa, donde foi demitido com o estabelecimento da República, em 1889. Pouco depois, foi nomeado para as Colônias de Alienados que o Governo Provisório acabava de fundar, na ilha do Governador, como escriturário; anos após, foi almoxarife, administrador, aposentando-se, em 1902, devido a pertinazes sofrimentos que o impossibilitaram de toda e qualquer atividade até à data do seu falecimento. Era viúvo e deixa três filhos e uma filha, solteiros, todos os quatro, e o mais velho é o escritor Lima Barreto. Traduziu e publicou um volume, o Manuel de l’apprenti compositeur, do célebre impressor francês Jules Claye. *** 21 de setembro. (Cópia). “John C. Branner Stanford University President Emeritus . July 27, 1921. Califórnia Ilmo. Sr. Capistrano de Abreu. c/o F. Briguiet & Cia. Rua Nova do Ouvidor. Rio de Janeiro, Brazil. My dear Capistrano: — I received your letter of April 26, and the book and papers you kindly sent, but I have been in poor health for more than six months on account of my heart, and my correspondance has necessarily been very much neglected. Only a few days ago was I able to read Lima Barreto’s Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. I am delighted with it. I thank you very much for sending it. I don’t remember whether I ever thanked you for calling my attention to some of the writings of Monteiro Lobato. Some of them seem to me remarkably well done. Though I am still shut up indoors by the physicians, such strength as I have is spent in the preparation of an autobiography. Naturally there is a good deal about Brazil in it. Remember me kindly to my friends. Faithfully yours, (a) Branner.” Observação: O original o Capistrano deixou para que eu o visse na livraria Schettino, Sachet, 18, com o Francisco Schettino, em começos de setembro de 1921. Mandei-o traduzir oficialmente pelo Guaraná . *** 13 de dezembro Hoje, 13 de dezembro de 1921, recebi de dona Rafaelina de Barros, que viveu com Emílio de Meneses, um terno de fraque, um de casaca, quatro camisas, gravatas, etc., etc., que foram dele. Obrigado à dona Rafaelina e que Deus fale n’alma do Emílio. Amém. *** Sem data As alfaces de Deocleciano — Diocleciano. *** “Quando a natureza nos deu lágrimas, foi para mostrar que nos criou para a piedade. Juvenal, Diálogo dos Oradores. *** Criptomnésia — conflito do inconsciente com o subconsciente. Vide Delírio em Geral, Franco da Rocha, caderno VIII. Ch. Labitte Divine Comédie avant Dante. Aroux: “Dante hérétique, revolutionnaire et socialiste.” *** Maus quartos de hora de um plantador de mangas, o plantador de mangas. Jurujuba + pescoço louro, amarelo. Papagaio louro. Tamoios assim chamavam os franceses. Vi no Benício. CLARA DOS ANJOS Primeira versão incompleta 1904 “ L’oeuvre d’art a pour but de manifester quelque caractère essentiel ou saillant, plus complètement que ne le font les objets réels “ ( Taine ) I A cidade do Rio de Janeiro é regularmente edificada. Não se infira daí que ela o seja conforme o estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas; antes se conclua que a cidade se tem erguido, acorde com a topografia do local onde se assentou e com as vicissitudes históricas que sofreu. Se não é regular com a estreita geometria de um agrimensor, é, entretanto, com as colinas e encostas, que a distinguem e fazem-na formosa. Enquadra-se garridamente nelas, explicando-as e continuando-as. Ao nascer, no topo do Castelo, não foi mais que um escolho branco, surgindo no revolto mar de florestas e brejos. Aumentando, desceu pela venerável colina abaixo, coleou-se, pelas várzeas, em ruas estreitas. A necessidade de defesa externa obrigou-as a ser assim, e a polícia recíproca dos habitantes contra malfeitores prováveis fez com que elas continuassem do mesmo modo, quando de piratas pouco tinham a temer. O quilombola e o corsário projetaram a cidade. Surpreendida pela fereza das lavras de Minas, que fizeram dela seu entreposto de exportação, a velha São Sebastião aterrou apressada alguns brejos; e todo e qualquer material foi-lhe útil para tal fim. A população, preguiçosa de subir de novo morros, construiu sobre um solo de cisco, e o rei dom João veio descobrir praias e arredores cheios de encantos, cuja existência ela ingenuamente ignorava. Uma coisa compensou a outra; e logo que a Corte quis se firmar e tomar ademanes solenes... Quem observa uma carta do Rio e tem de sua antiga topografia modestas notícias, define plenamente as preguiçosas sinuosidades das suas ruas e as imprevistas dilatações que elas oferecem. Ali, uma ponta de montanha empurrou-as; aqui, um alagadiço dividiu-as em duas azinhagas simétricas, deixando-o intacto, à espera de um lento aterro. Na fisionomia das casas estereotipam-se as coisas da nossa história. Um observador amoroso e perspicaz não precisa ler, ao alto, a data, entre os ornatos de estuque, para saber quando uma delas foi edificada. Esse casarão de dois andares que vemos na Rua do Sabão ou da Alfândega, é dos primeiros quinze anos da Independência. Vede-lhe a segurança afetada; a força demasiada das paredes; a valentia dos alicerces que se adivinha... Quem a fez, sabia das lutas do Primeiro Reinado, vinha seguro de possuir uma terra sua para viver a vida eterna da descendência. O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos morros da Saúde alguma coisa de cubata africana, e a tristeza do cais dos Mineiros é saudade das ricas faluas que não chegam mais de Inhomirim e da Estrela, pejadas de mercadorias. O bonde, porém, perturbou essa metódica superposição de camadas. Hoje, o geólogo de cidades atormenta-se com o aspecto transtornado dos bairros. Não há mais terrenos paralelos; as estratificações inclinam-se; os depósitos baralham-se; e a divisão da riqueza e novas instituições sociais ajudam o bonde nesse trabalho plutônico. No entanto, este veículo alastra a cidade; cria nas pontas de seus trilhos núcleos de condensação urbana. Onde ele chega, desenha-se uma venda, surge um botequim, um quiosque; em torno, edificam-se casebres. Ondulações concêntricas a esse núcleo encontram as de outro próximo, dando nascimento a uma travessa mal povoada, tristonha, esquecida das autoridades municipais, e que vive anarquizadamente, fora de toda a espécie de legislação, a poucas centenas de metros de outras, apertadas num cinto de posturas. Por elas, o capim medra viril e orgulhoso; os cabritos desembaraçadamente pastam; as lavadeiras sem cerimonia coram as roupas; e as poucas casas que há, hesitam entre casa e casebre e dão-se ao luxo de ter jardim na frente. As casas são em geral isoladas, separadas, umas das outras, por cercas de espinheiros ou bambus; mas, às vezes, juntam-se em grupo, cavalgam- se umas às outras, de jeito que, quem as vê, considera a extensão da terra e a muita que por aqueles lugares sobra. A população que as povoa é heteróclita. Na generalidade, operários e pequenos empregados; mas, se algum descuidado se aventura por uma dessas travessas adentro, surpreender-se-á sem razão ao cruzar com algum elegante da Rua do Ouvidor. Cavalheiros de extraordinária exuberância amorosa, e de apoucados rendimentos, resolvem o problema de sua natureza, gastando com a família o mínimo, num desses corredores, e o máximo, nos alfaiates e aperitivos platônicos com as cocottes nas confeitarias. Entre Rio Comprido e Catumbi, numa travessa dessa espécie, residia, em 1886, com sua família, Manuel Antônio dos Anjos, contínuo da Secretaria da Agricultura. Era pequena a família: ao contínuo e à mulher se juntavam unicamente uma filha, a orçar, por esse tempo, pelos dezesseis anos, e uma velha preta, a babá, que, já escrava já livre, rolara até aos cinqüenta e tantos anos, quando viera parar às mãos deles. Desde 1882 que se estabeleceram ali e, como gostassem do lugar e a casa fosse em conta, ficaram. Viviam bem. Os hábitos regulares do marido e a sagaz economia da mulher extraíam do mesquinho ordenado do contínuo o bastante para um passadio medíocre e igual, que satisfazia a todos. Sempre que tinham ocasião de se referir ao seu feijão quotidiano, dona Florência ou seu marido repetiam: — Deus nos dê sempre isso! E quem dera, acrescentavam, que todos o tivessem! De manhã, às oito e um quarto, o Manuel Antônio descia para a cidade em bonde certo; muma-se, na curva da Rua do Conde, de um jornal, lia-o atento até à Rua da Constituição, onde, ao acabar a leitura, dobrava-o cuidadosamente, a fim de que sua filha pudesse ler o folhetim. Findo o expediente, volteava pelas ruas centrais da cidade; dava dois dedos de palestra aqui, ali; e, pelas quatro horas, subia a jantar e a descansar em família. Era assim a sua vida. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, excetuando os de gala e os de descanso, que ficava em casa, nenhum merecia do austero contínuo a honra da menor discrepância naquele programa. Sua mulher, também, pouco saía; em um ou outro domingo, excepcionalmente, assistia à missa em Sant’Ana e dos festejos fugia com resignação satisfeita. Não era de festas, dizia, e o que de divertimento ainda lhe pudesse caber, ela, de bom grado, legava à Clara, que, com efeito, não só recebia esse legado, como também concentrava todas as fortes energias de seu pai. Durante a sua segunda infância, ele de modo decisivo se esforçara por lhe ministrar uma melhor educação. Para isso, aduziu, ao trabalho habitual, outros extraordinários, que lhe deram com que custear a estadia da filha no Externato de Nossa Senhora do Amparo, no Estácio de Sá. Há uns tempos atrás, como se sentisse fatigado com aquela dupla labuta, retirara-a do colégio, embora, para completar o estudo de português faltasse, a Clara, a sintaxe, e do piano trouxesse alguns prolegômenos, suficientes para fazê-la tocar as valsas em voga — o que ela desandou a fazer sofregamente, furiosamente. Fechado esse parêntese da educação da filha, o viver de Manuel dos Anjos voltou a ser aquele equilibrado de antigamente. Para Clara, porém, a vida não era tão monótona e encarrilhada, como para seus pais. Havia sempre uma diversão, um desvio: por novembro e agosto, e algumas vezes em outros meses, ia às festas em casa do padrinho, onde as suas habilidades de pianista eram gabadas e requeridas. Constituíam esses festejos a sua forte preocupação. Em setembro, chegava-se ao pai e dizia: — Papai, preciso de botinas para ir ao aniversário do meu padrinho, em novembro. Em abril era costume ela recomendar: Olhe, papai, em agosto é aniversário de casamento de meu padrinho, e ainda não tenho um vestido para ir. Afagando a face do velho mulato, a filha lhe pedia eloqüentemente o que as palavras só deixavam perceber. Seu padrinho era o senhor Carlos Alves da Silva, primeiro oficial da Secretaria do Império, a quem o Manuel dos Anjos, quando voltou do Paraguai, em 1869, conhecera ainda amanuense. Partindo para o Rio da Prata, logo em começo da companha, o contínuo a fizera até à ocupação de Assunção, onde deu baixa de um batalhão de voluntários. De volta à Corte, obtivera com alguns empenhos e aquele seu título de voluntário um lugar de contínuo interino da Secretaria do Império e pouco depois efetivo na da Agricultura. Durante a interinidade, o antigo voluntário travou conhecimento com o Alves da Silva, ainda nesse tempo um rapazola franzino, tagarela, de qualquer modo poeta, abolicionista, e que viera ter à burocracia com um curso gorado de Direito e o peso da manutenção da mãe, pois que seu pai, major do Exército, morrera em Lomas Valentinas, legando-lhes uma velha escrava, uma casinha em São Cristóvão e o exíguo meio soldo. A entranhada simpatia do contínuo pelo Alves da Silva não nascera, porém, do trato diário da repartição, que era severo e não permitia demasias. Essa afeição nascera-lhe forte em uma tarde, que ficou célebre na sua vida. Havia pouco que o Brasil definitivamente domara o Paraguai: com essa vitória o país tinha tomado consciência de si mesmo — era como um tímido que, superada grave dificuldade de sua vida, acredita na sua energia, no seu valor e, quiçá, na efetividade de sua existência. Um tal sentimento que naquela época se apoderara fortemente da nação, traduzia-se num explosivo desejo de progresso, de engrandecimento. Àquela chuva de borrasca, que foi a guerra, pelo Brasil rebentaram tumultuariamente novos e vigorosos brotos. Conjuntamente, vieram agitar-se as grandes questões de povoamento, de instrução e viação. Mas o que veio a constituir, depois dela, a verdadeira questão palpitante de norte a sul do Império foi a que se chamou a do elemento servil. A guerra, pondo em apertado contato senhores e recentes escravos, fazendo-os sofrer os mesmos perigos e as mesmas agruras, aproximou-os, dando nascimento a uma mútua simpatia entre eles e a uma melhor compreensão das suas necessidades. Com o pleno sucesso das armas imperiais, espalharam-se por todos os recantos do país gente tomada de generosos sentimentos pelos escravos, e essa foi a sementeira donde brotou mais tarde a árvore da abolição. Entretanto, a poesia nacional, que mais ou menos já colaborara em algumas das nossas transformações políticas, muito antes, já começava a preparar os artigos de fundo de alguns anos depois. As escolas de Direito eram o seu centro de irradiação e o Carlos Alves da Silva, chegado do Recife, vinha impregnado dela, e mesmo para o seu gasto pessoal trazia alguns tropos escolhidos e cinco ou seis argumentos irrespondíveis, que, ao seu julgar, seriam as pedras com que o minúsculo David havia de matar o Golias negreiro... Fora o Manuel dos Anjos, como bom contínuo que era, ajudar a servir na festa que o seu chefe dava pelo batismo do seu primeiro neto. Bailara-se e já o baile ia em meio, quando, no fito de descansar os pares infatigáveis, alguém lembrou que se recitasse. dona Adelaide, a filha mais moça do dono da casa, convidara já a quatro rapazes, quando convidou o amanuense Alves da Silva. — Seu Carlos, recite qualquer coisa, disse a moça. — Oh! Minha senhora, estou constipado (tossiu.), rouco e não tenho toda a poesia de cor, retrucou, desculpando-se. — Não faz mal. Recite o que souber, objetou dona Adelaide, logo interrogando, indagou: — Qual era? — As Vozes d’África... Conhece? — Sim, senhor! Não é de Castro Alves? — Pobre rapaz; refletiu o chefe, que estava em frente sentado num sofá. Na flor da idade, com aquele talento, continuou ele, abanando desconsoladamente a cabeça, morrer assim — foi uma pena! De que morreu ele, senhor Silva? perguntou, fechando a reflexão. O amanuense não teve tempo de responder, pois, como essa conversa parecesse querer se prolongar e desviá-lo recitativo, algumas moças pressurosas vieram reiterar o pedido de dona Adelaide. Instado, o Alves da Silva acedeu. Encostando-se ao piano, onde já havia quem acompanhasse, começou: “Deus! ó Deus, onde estás...” Continuando, as estrofes voavam pela sala, impetuosas, guindadas, enquanto o piano respondia com notas veladas e dolentes. Em meio do recitativo, o Carlos estava extraordinariamente animado. A gesticulação não correspondia à letra do poema, e, com um murro erguido ao teto, foi que ele sublimou: “O universo, após ela — doido amante Segue cativo” etc. A assistência não notava as discordâncias. Hipnotizada, bebia as suas palavras como se contivessem grandes e novas verdades. Percebendo o efeito, o Carlos Alves dobrava a sua incongruente dramatização, continuando: “Negro, sombrio, pálido” etc. No fim, com toda a ênfase de que era capaz, imprecou, erguendo as mãos espalmadas à altura do olhos: “Escuta o brado meu lá no infinito, Meu Deus! Senhor, meu Deus!” A sala recebeu o final com um triplicado bravo, e o Carlos, agradecendo e enxugando o suor, partiu em direção à sala de jantar. Foi durante esse recitativo que a alma do Manuel dos Anjos se sentiu invencivelmente presa à do amanuense. Da porta que ligava a sala de visitas ao corredor, ele ouvira-o todo e quando, com trêmulos na voz, o amanuense Alves disse: “Se choro... bebe o pranto a areia ardente!” — o pobre do contínuo quase chorou, abrangendo de um só lance de vista o hediondo e vazio espetáculo das fazendas. O eito, o tronco, o banzo apavorante, a encher de aluados as melancólicas senzalas, para ele, naquele instante, tiveram existência concreta. Ele os sentiu em si e palpou-os; e, conquanto não houvesse sido escravo, se julgava preso à sorte dos cativos por fortes laços de sangue e raça. Saiu já alta madrugada. Partilhando o padecer do cativeiro e exuberante de afeição pelo Alves da Silva, o contínuo Manuel vinha descendo o morro vagarosamente. Aquelas retumbantes palavras, compreendidas a meio, tinham-lhe revolvido a alma e a memória. Tênues sentimentos obscuros afloravam; rompiam com reminiscências fugaces a forte couraça de sua rudeza. Quis entrar na causa das coisas, na lógica oculta da vida, no sobrepor fatal dos acontecimentos. O dia surgia. O Sol, ainda escondido por detrás das montanhas, anunciava a aurora com um feixe de claridade aberto em leque para as nuvens. Aos poucos vinha; e antes que o rosicler tingisse de ouro e sangue as franjas do céu, a luz opalescente espalhava-se, esgarçava-se pelos altos morros, cujas curvas doces e caprichosas eram como dobras de pernas, arredondados de colos, anfractuosidades de tórax emergindo de um lençol de gaze. Pareceu-lhe que, pela noite, estreitados, dormiam os dois, aos casais, trocando beijos de paixão, delirando em espasmos, e que, mal vinha a alvorada, despertavam bruscamente para de novo ser os rudes cerros do dia claro. Quantas vezes não vira já o amanhecer? Quantas! Pelos quatro anos de campanha, o sol nascente encontrara-o mil vezes de olhos abertos nas sentinelas regimentais. Mal apontava, as cornetas do Exército estridulavam pela amplidão em fora. Uma seguia outra; as notas delas se perdiam, esvaíam-se ondulando, as da primeira empurrando as da segunda, e por fim um retinido pairava no ar, logo abafado pela agitação da tropa, que se movia desordenadamente, como um formigueiro atacado. Minutos depois, tudo era ordem. Os corpos formavam. Guardas que iam, guardas que voltavam... Fora uma vez — lembrava-se como se fosse hoje — nas vésperas da batalha do Estabelecimento, que esse caso se dera. Ia ele com outro soldado fazer não sei o que... O certo é que ia com o Urbano... Um negro, alto, delgado, de pele macia e reluzente, vindo do Norte, onde, escravo, libertado, fora dado como substituto do filho do barão de Cajaí... Iam os dois de manhã, caminhando. Madrugada ainda. Frio que Deus dava. Num encontro de caminhos, uma moeda de ouro no chão atraira a atenção de Urbano. Um soldado oriental, que a vira também, correra ao mesmo tempo que o nortista. O brasileiro agarrou-a antes do uruguaio, q e não se satisfazendo u com essa prova de propriedade, alterou-o: — És mio. Yo lo vi primeiro (?). — Qual teu o ‘que! É minha, esta aqui, e mostrou a mão fechada. O montevideano olhou Urbano de alto abaixo e, desdenhoso de lábios e ombros, disse: — Suyo... negro... Vá-te (?). Muitas ocasiões depois lembrou-se desse fato. Sempre que o Exército formado se lhe apresentava aos olhos, considerava um a um os homens que o compunham. Via-lhe os matizes da pele e com amargura recordava a frase do gringo. Alguns milhares de suyos levavam pelos pantanais do Paraguai o prestígio do Império e um enxame igual borrifava no país com sangue a sua riqueza! Faziam jus a um futuro melhor, então o gringo... A rua a que chegara começava a se animar. Vacas de leite arrastavam bezerros, plangendo compainhas. As tavernas se abriam, e os sacolejos dos jacás de uma tropa, voltando do mercado, dava um tom de roça à paisagem urbana. Pretos do ganho, quitandeiros, ainda pretos, passavam. De repente, de uma esquina adiante, veio ter à rua uma leva de escravos, em marcha para a casa de comissão. Eram poucos. Dois ou três guardas bastavam. Uma anafada “crioula”, com o bamboleio dos quadris, polvilhava de sensualidade o grupo a andar. Insidiosamente veio-lhe à mente os versos do recitativo. Esforçou-se recordá-los. A memória rebelde resistia. Chegavam duas palavras, as antecedentes não vinham, e as seguintes, arrancadas, não faziam sentido com as que já achara. Por fim, já o grupo se esbatia no fundo da perspectiva, quando na memória boiou-lhe esforçado um verso inteiro: “Quando o chicote do simum dardeja”... A cena da sala se lhe representou novamente. Imaginou, então, o Alves da Silva, armado com milhares daquelas poesias, derrubando senhores de fazenda com a mesma facilidade que as balas do Bahia derrubavam as cristas de Humaitá. A imagem do amanuense brilhou-lhe resplandecente de santidade. Era como um apóstolo e doravante queria a sua benevolência; os seus menores gestos, havia de interpretá-los como os de um orago, como os de um santo padroeiro... Quando chegou em casa — na casa em que morava com sua mulher — tinha decidido que o Senhor Carlos Alves da Silva seria o padrinho do seu filho a nascer. O apaixonado declamador das Vozes d’África entrara em casa momentos antes e, ao entrar, mal sabendo que a sua filantrópica tirada lhe valera um compadreco, repreendeu severamente a velha escrava, porque, aquela hora, ainda não tinha aprontado o café matinal. Eram os restos — quem sabe? — das inflamadas estâncias de Castro Alves. Recebendo o convite do contínuo para levar à pia batismal um filho dele a nascer, Alves da Silva não lhe deu resposta definitiva. Sorriu, intimamente lisonjeado, e risonho, com um “veremos” entre os dentes, encareceu a distinção que havia no aceitar. Pela s gunda vez, depois e de nascer-lhe a filha, quando novamente Manuel dos Anjos foi lembrar o convite, o Carlos da Silva lhe disse: — Filho, teria muito prazer, mas, tu sabes, com essa canalha de padres não quero conversa. — Seu Silva, obtemperou-lhe o contínuo, a coisa dura instantes, é rápida, num segundo a menina está batizada. O senhor marca um domingo, nós vamos à igreja, e em menos de meia hora está realizada a cerimônia. — Oh! Manuel! Não é lá pela demora, retrucou o amanuense. São outros motivos. Indo batizar, terei que me ajoelhar, que rezar, não é?... e isso constitui uma quebra de opinião. Sou contra padres, como tu bem sabes, foi dizendo ele, erguendo um tanto a voz — e compreendes que, homem de responsabilidades futuras como sou, devo ter uma inflexível linha de conduta. Devo pôr de acordo os meus atos com os meus pensamentos. Não, filho, não. Que dirão os meus inimigos mais tarde, sabendo que fui rezar a uma igreja? Que dirão? Hein? O simples do contínuo, na sua santa simplicidade, não compreendia que alguém jogasse seu futuro só porque fosse rezar um Credo, e uma Salve Rainha, a surdina. Não percebia, e, como não respondesse, Alves da Silva asperamente falou: — Nada... Nada... Precisamos ter firmeza de opiniões. O Brasil nada é por causa dessa nossa mudança contínua de crenças. Hoje liberal, amanhã conservador, depois republicano. Nada... Precisamos de caráter... Não posso... O humilde voluntário ficou estatelado. Todos os seus castelos, todas as suas esperanças derruíam-se. O padroeiro não o queria e ele ia andar pelo mundo sem anjo da guarda. As rugas de seu rosto paralisaram-se e, fazendo esforço por falar, calou-se, porque lhe parecia que, falando, se ia abrir em pranto. Com voz meiga pôde, minutos depois, dizer: — Mas, “Seu” Silva, eu já disse a toda a gente que o senhor era o padrinho. Já preparei tudo. Como há de ser? Com que cara vou ficar, Seu Silva? A isso, sem pronunciar palavra, eles ficaram ao lado um do outro. Alves da Silva ia devagar escrevendo no papel timbrado — “À S. Exa, o Exmo Sr Ministro...”, enquanto o Manuel dos Anjos, encostado à mesa, olhava amorosamente as letras, uma a uma, escorrendo da caneta. Por fim, o Silva levantou a cabeça e ternamente indagou: — Quem é a madrinha? — É Nossa Senhora da Conceição. — Qual Nossa Senhora da Conceição! motejou o Carlos da Silva. Pois Nossa Senhora pode lá ser madrinha de alguém! — É um modo de dizer, Seu Silva. Nossa Senhora é a protetora, mas quem leva à pia é uma amiga de minha mulher. — Bem. ‘Está direito. Pelos reis... É tarde? — Não senhor. — Pelos reis batizarei tua filha. E, depois de uma pequena pausa, o amanuense Silva inquiriu: — Já tem nome a tua filha? Já, sim senhor. Clara foi o que lhe pusemos. Se não lhe agradar, o senhor pode escolher outro. — Não. Não precisa. Fica esse mesmo. O batizado realizou-se na época marcada, e, como Alves da Silva ficasse noivo, algum tempo antes, foi sua noiva a madrinha. O contínuo relutou entre a noiva do amanuense e Nossa Senhora da Conceição, já escolhida para madrinha; e, depois de maduramente refletir, decidiu aceitar a noiva do amanuense. Era mais pronta a proteção, mais fácil de solicitar-se — conveio. Depois de casado, o Alves da Silva e sua mulher passaram a tratar a família do contínuo com uma benévola proteção. Recebiam ao Manuel e à mulher, em sua casa, sentavam-se com o humilde par à mesa, mas sempre, com um mínimo qualquer, faziam sentir a distância que os separava. Longe de se agastarem com esse tratamento, o contínuo e a esposa acolhiam-no com orgulho. Guardando a convicção de sua real inferioridade, um tal tratamento era para eles, como um prêmio conferido à retidão de sua honesta vida de casal. Em começo, o casal Silva levou uma vida trabalhosa. O amanuense, para fazer face às despesas do ménage, foi obrigado a procurar trabalhos fora da secretaria. Pelas casas de comércio, levava as tardes a escriturar e, ao chegar ao lar fatigado, aborrecido, os beijos da mulher estavam longe de lhe tirar o azedume de que vinha forrado. Dois anos depois, porém, devido a influência de parentes de sua esposa, fora promovido e, alguns meses em seguida, recebera, por morte de um parente seu, uma pequena herança, que lhe deu com que comprar uma casa regular no Engenho Novo. Repentinamente a depressão fugiu-lhe, e a pontinha de arrependimento, que já começava a ter do seu novo estado, aparecia-lhe agora como um grande crime. Dormia cedo, satisfeito, convicto de possuir uma vida inabalável; e de manhã, logo aos primeiros albores da madrugada, erguia-se e olhava o sol a escalar o nascente, amaciando o sonho da chefia da sua seção e um bom casamento para a filha que já tinha. Crescendo-lhe a filha, Alves da Silva procurou dar reuniões. Ele por si não gostava, mas era preciso que, desde menina, Olímpia se acostumasse à sociedade, porquanto, com o futuro que lhe preparava, impunha-se que, desde já, ela se fosse habituando. Escolheu alguns dias nos anais da família e nesses dias festejava com ruído os obscuros acontecimentos que simbolizavam. Aos primeiros festejos, o Manuel dos Anjos e a mulher não foram, embora convidados, mas, por fim, animados por convites reiterados, foram sempre. Chegavam cedo, antes de todos; e o contínuo tirava o paletó e ajudava nos últimos preparativos. — Oh compadre! Você me faz um favor, dizia dona Adélia da Silva prazenteiramente. — Pois não, comadre. — Você me vai ali na padaria buscar um quilo de farinha de trigo. Ou senão: — Florência!... Florência! gritava o Alves da Silva da sala de visitas. — Senhor, compadre, respondia. — Faz-me aí uma limonada e me manda trazer. Está ouvindo? De tarde, porém, vestiam-se convenientemente e, cheios de respeito, ficavam na sala de jantar assistindo a festa que ia na de visitas. Mais tarde, com o crescimento da filha, a maneira do casal de Catumbi cumprimentar os seus compadres do Engenho Novo mudou. O pai levava a filha, deixava-a lá, vinha-se, e no dia seguinte ia buscar. *** Nesse ano, o aniversário natalício do padrinho de Clara prometia ter um brilho desusado. Caindo em domingo, era obrigatório que a festa começasse sábado e durasse se prolongando, até segunda-feira de manhã. Ao contrário, porém, de toda a expectativa, o sábado amanhecera chovendo. O céu enfarruscado era atravessado por grossas nuvens a galopar de um quadrante para outro. De quando em quando, uma forte pancada de chuva desabava, interrompendo qualquer esperança de melhor dia. dona Adélia não cessava de se lastimar: — Oh! os doces! Meu Deus! Tanta coisa... e não vem ninguém! Que diabo! E antes do marido sair, recomendou muito que fosse buscar Clara. O Manuel estava adoentado e com certeza ela não tinha com quem vir, dizia dona Adélia. — Demais, acrescentava, você sabe, Carlos, não temos ninguém pro piano. O Zezé toca duas contradanças e mais nada. Sem Clara, filho, não temos festa. Olha bem. Vai até lá. O Silva, cheio ainda das recomendações da mulher, entrou pelas quatro horas em casa do Manuel dos Anjos. O dia continuava chuvoso, e, deixando o guarda-chuva a escorrer na modesta sala de visitas da casa, ele foi entrando para a sala próxima, onde o contínuo repousava numa cadeira de balanço. Vendo o Silva, o velho mulato levantou-se a custo e estendeu-lhe a mão para cumprimentar. O antigo amanuense dirigiu-lhe com amabilidade pequenas perguntas de boa educação. — Não é nada, compadre. Umas dores... O reumatismo que não me deixa. — Tens te tratado, Manduca? — Sim, senhor. Fui aí a um médico, receitou-me umas fermentações, mas, com essa mudança de tempo, piorei. Não há de ser nada com ajuda de Deus. — Assim espero. Você se deve agasalhar melhor, Manuel. Olha, estás sem meias e quase de costas para o vento. — Não é o que te digo, Manuel? interrompeu dona Florência. Há que tempo, compadre, estou dizendo ao Manuel: calça as meias, muda essa cadeira de lugar, e ele teima em ficar; depois... — Qual o que! Aqui não há vento nenhum, objetava o contínuo. Convencido, afinal, de que havia corrente de ar no lugar, o contínuo mudou a cadeira para um canto da sala mais abrigado. A Babá tinha começado a pôr a mesa e, sendo convidado para jantar, o Silva respondeu: — Não, obrigado. Eu vinha buscar Clarinha. Você estava doente, dirigiu-se ao Manuel, e por não ter ela com quem ir, talvez não fosse lá em casa, o que entristeceria a mulher e Olímpia. — Mas, compadre, objetou dona Florência, com esse tempo... e Manuel assim... — Que diabo! Florência, eu não estou à morte. Deixe a rapariga ir... disse agastado o contínuo. — Não é isso que quero dizer. O compadre bem me compreende. Pode-se precisar qualquer coisa, de noite. Babá está velha... — Qual nada! Deixa-te disso, Florência. Clara, disse o contínuo com império, vai te vestir para ir com teu padrinho. O Carlos da Silva que até ali se mantivera calado, disse afinal: — Eu não quero obrigar. Mas se a comadre não acha bom, ela não vai; entretanto... — Não... Não... Porque não há de ir? Não estou à morte. Anda Clara. Dentro de meia hora, Clara voltava vestida e, quando ela se despediu do velho pai, ele lhe disse: — Diverte-te. Diverte-te, minha filha, enquanto sou vivo. O dia continuava chuvoso. Grandes nuvens negras esgarçavam-se aqui, contraíam-se ali e por vezes baixavam tanto, que pareciam roçar na cobertura do veículo em que iam a afilhada e o padrinho. Abriam uma fresta entre elas, em outras, e um pedaço de sol rompia bruscamente aquela espessura macia. A luz, então, respigava pelas encostas, e fracas manchas de tons claros mosqueavam o verde escuro que as atapetava. Depois, continuavam a agitar-se. Acumulavam-se nas dobras das montanhas e vinham de vôo, como grandes aves agoureiras, roçar de novo o carro de ferro. Clara pela primeira vez supôs grave a moléstia do pai. Que seria? Tantas dores, e ainda a noite passada gemera tanto! O padrinho virara-se e, olhando as bandas da Tijuca, prognosticou: — Amanhã não teremos chuva. Aposto até. Clara entrou em casa do Alves da Silva satisfeita e alegre, e recordando muito a recomendação do pai: — Diverte-te, minha filha, diverte-te enquanto sou vivo. II — Oh! como está lindo, madrinha! disse Clara ao chegar à janela da sala de jantar. Venha ver só...vem Olímpia. Olha como se vêem os Órgãos daqui, continuava a menina entusiasmada. — Deixa-te disso, Clara, vem tomar café e depois então te fartarás de ver. Anda. E as três à roda da mesa, sentadas, começaram a mastigar a refeição matinal. A sala estava clara, de uma luz azulada, penetrante e macia; e o ruído do pão entre os dentes era como um cantar de cigarras. Tendo acabada a refeição, todas as três se puseram na janela, olharam em roda; no começo, trocaram algumas palavras, mas depois ficaram minutos a fio caladas, recolhidas, a olhar diferentes pontas de horizonte. Tivera razão o Alves da Silva: amanhecera fazendo bom tempo, e mais do que bom tempo surgira um belo dia. Pelo céu não havia mais nem uma nuvem. Era límpida, tranqüila, azul, a abóbada que se engastava nas colunas verde-negras dos morros. Dava gosto olhar; a claridade jorrava; não havia pelo céu alto um canto escuro; e o olhar, passeando vagaroso, detinha-se tristonho ante aquela massa de montanhas. Ela manchava melancolicamente o esplendor da manhã e espalhava pelo ambiente uma vaga sombra. Dir-se-ia que, apesar de límpido, o céu ainda tinha nuvens e que essas nuvens escondidas debuxavam nas coisas uma fugace tristeza, prestes a fugir a um súbito arrepio de contentamento. Na casa do antigo amanuense se ergueram cedo, e a cantante beleza do dia estimulou-lhes a espera dos convidados. Esperavam com ânsia e i paciência. Pelas duas horas, foram chegando m aos poucos. — Quase não vínhamos, dizia dona Eugênia Gomensoro, ao chegar, acompanhada dos filhos. Imagine, dona Adélia, que o Zezé, o pequenino, tem passado mal... — Que é que ele tem? — Nada. Uma pontinha de febre, que está teimosa. Coisa dos dentes. Demais, essa sua moradia, aqui, tão longe, e com aquele tempo de ontem. Depois, o Chico anda tão atarefado. É chamado pr’aqui; é chamado pr’ali. Inda se pagassem! Não pagam, todos pensam que o médico vive de “brisas”; que não tem mulher e filhos. Um inferno! O Chico, de quem dona Eugênia falava, era seu marido, doutor Francisco Gomensoro, médico clínico em São Cristóvão, que pela monotonia do seu receituário parecia ter descoberto a panacéia universal. No campo de sua visão clínica, só havia uma moléstia; para essa moléstia uma única medicação: um purgante e sulfato de quinina. Era invariável. Um doente tremia de sezões, lá ia o especifico; escarrava sangue, o mesmo. Gozava no entanto de boa reputação. Lhano, afável, todos estimavam: chamavam-no. Às vezes, pagavam, em geral, não. Ele não se incomodava. Continuava a tratar do mesmo jeito e com a mesma solicitude. Receitava pelos bondes e da ponta de um banco inquiria, na janela, do estado de um cliente: — Vai melhor? — Sim, senhor doutor. — Repita. E, o bonde afastando-se, ele se voltava para o companheiro mais próximo, continuando a discutir a queda do gabinete. Não viera com sua esposa, mas pelas quatro horas, quando a casa estava cheia, achava-se lá, na varanda, a conversar com o primeiro oficial Alves da Silva, seu antigo colega de colégio, e alguns outros convidados. O Alves da Silva centralizava a palestra. Sentado em uma cadeira de vime, tinha ao seu lado o doutor Gomensoro, junto ficava-lhe o “seu” Monteiro, um velho português, calvo e gordo, baixo e sangüíneo, em quem um rosto cheio sempre barbeado dava um esquisito realce aos bigodes brancos, cingindo uns lábios polpudos e jovens, O Senhor Monteiro era homem de fortuna, ganha muito, muito honestamente, em empreitadas de estradas de ferro. No interior do Império, onde vivera os primeiros anos, a construção de uma via dessas viera supreende-lo com uma pequena taverna. Em falta de lugar melhor, o engenheiro encarregado da construção tomava refeições em suas casas e animara-o a aceitar a empreitada de um trecho. Ganhara dinheiro na tentativa, experimentara uma segunda. Fora feliz, e daí por diante a fortuna cresceu-lhe com segurança. Há oito anos enviuvara, e os seus filhos educavam-se na Europa, em companhia de parentes de sua mulher. Alves da Silva animava essa amizade, mais do que a do doutor Alfredinho, com quem também conversava, bacharel novel e filho do visconde da Meia Ponte, senador por Goiás. Doutor Alfredo estava em pé, encostado ao gradil da varanda, tendo ao lado o alferes Boaventura, um conhecimento do Feliciano, sobrinho do antigo amanuense, que também fazia parte da sociedade. Boaventura, Boaventura Iperoig da Silva, alferes-aluno, era um rapaz de estatura meã, que roçava então pelos vinte e três anos. Com as bochechas fortemente salientes, o seu rosto redondo e acobreado repousava, atormentado, sobre um pescoço demasiado delgado para o volume da cabeça, que era grande e coberta de grossos cabelos, lisos e muito negros. Acabava na Escola Militar da Praia Vermelha o curso de engenharia militar, gozando nesse estabelecimento de uma fama de geômetra que o próprio Newton invejaria. Se sobre o Boaventura, de qualquer seu colega se fosse ouvir a opinião, seria essa só: — Boaventura! É habilíssimo. Tem talento, sabe muito bem matemática. O curso todo é só distinção e quem tira distinções no templo da Ciência é porque é coisa como diabo! De fato, Boaventura tinha um curso brilhantemente distinto. Seus atos anuais congregavam uma larga assistência. — Hoje, era do “zunzum” dos corredores, Boaventura faz exame — você não vai assistir? A princípio, isso acanhou-o; com a continuação, porém, ele se foi habituando e, como tivesse grandes sonhos de mando, aproveitou para ensaiar efeitos oratórios. Preparava-se para as truculentas sessões das assembléias políticas. Desde muito que abraçara o positivismo científico e filosófico, mas, há alguns tempos atrás, convertera-se à religião da humanidade. Baniu dos seus hábitos o café, o fumo e o álcool. para o qual, justiça lhe seja feita, fora sempre remisso. Transformara-se em quase positivista ortodoxo e a toda a gente se lastimava de ainda não se poder considerar como tal. Com estar já demasiadamente avançado na “doutrina regenadora”, Boaventura, entretanto, não lhe sentia pesar na consciência a sua posição de cientista oficial e, sobretudo, a de militar. Achara (ele ou outro iluminado) pequenos acomodamentos com as “suratas” da Politique; e o apóstolo da extinção de todas as academias — os entraves à total regeneração — continuou a fazer placidamente os seus atos escolares. No exame de Mecânica, já completamente assimilado ao “regímen definitivo”, como incidentemente um examinador se referisse ao teorema de Sturm, raivoso e solene, Boaventura contestou desabridamente — O teorema é de Fourier, porque, na série dos grandes servidores da humanidade, Fourier fica muito mais alto que Sturm, que foi um puro algebrista. O velho docente olhou-o e sorriu com bonomia; e, aprovado grau dez, distinção, pela escola correu, para sua maior glória, que “espichara” o lente F. Vogava assim o distinto Iperoig da Silva envolvido na névoa acariciadora que dá a fama; e ao seu orgulho de oficial (era alferes-aluno), de bom grado juntou o de cientista e filósofo. E a r de ver como ele se referia aos senadores, ministros, à gente em evidência enfim. Uns literatos! Metafísicos! Ignorantes! Literato era na sua boca uma extraordinária infâmia. O que de injurioso havia nesse vocábulo empregado por ele, sobrevalia aos mais soezes que um carroceiro da Saúde empregasse. Não é que Boaventura detestasse a literatura; muito ao contrário, prezava-a, distinguindo somente a alta e “a que anda por aí”. E tanto Boaventura prezava a alta literatura é que, às escondidas, sacrificava as musas. Lia o Guerra Junqueiro e depois pingava em quatorze versos a sua profundeza sabichona. A lei dos três estados merecera-lhe nove sonetos; e a Revolução Francesa, comemorada, data à data, tipo a tipo, uma profusão deles. Os episódios da história pátria estimulavam a sua musa. Tiradentes provocava-lhe um poema. Certa vez, fundaram na escola uma revista e Boaventura, convidado a colaborar, aparecera pelas páginas dela, assinando um soneto “Augusto Comte.” A obra foi lida e relida, e um verso, creio que o último — mostrando aos homens o dever do justo — foi citado, gabado, e viveu durante muito tempo na memória dos seus condiscípulos. Como lhe parecesse que a sua fama exigia um trabalho de ciência ou filosofia, no quinto número, o Boaventura publicou — “A classificação das ciências Estes dois trabalhos muito ajudaram a cimentar a alta autoridade científica de que ele veio a gozar. Boaventura Iperoig da Silva foi sempre, como dessa vez, coerente com a sua teoria — prezou a alta literatura: — Dante, Petrarca, Shakespeare... esses, sim! como ele dizia. Com todos esses predicados, Boaventura tinha uma conversa desagradável. O seu espírito rígido falava por dogmas; e não possuía a flexibilidade precisa para borboletear pelos pequenos assuntos. Em conversa sobre coisas altas, se era fortemente contraditado, fraqueava; e pouco e pouco se acastelava em breves axiomas invariavelmente os mesmos. Seu espírito não amava à análise. Discutindo, do mais insignificante argumento, retrucava com uma suntuosa generalização sabida e decorada. Às vezes, no palestrar, se enfurecia; e por seus olhos perpassavam os mesmos relâmpagos que fuzilaram nos dos chefes árabes, ao tempo da expansão islâmica. Utopista, ele tinha um grande descontentamento da realidade, a se manifestar num constante azedume, agressivo e insolente para tudo e para todos. Tudo o irritava. O que, a qualquer de nos, pareceria coisa de nonada, aos seus olhos ganhava a proporção de um sacrilégio. Bastava a fórmula de um decreto, o comparecimento de um governante a uma festa anódina, uma condecoração conferida ou recebida. Azedo, quase sempre, e hostil, seu gênio lhe valera múltiplas desavenças entre os colegas; e, se não fora o seu prestígio de inteligente e estudioso, teria tido péssimas conseqüências. Sua irritabilidade era uma fúria a lhe perseguir, turvando-lhe os melhores momentos da vida; entretanto, na casa do Alves da Silva, se transformava um tanto. Palestrando polidamente, quase que se não adivinhava nele o feroz dilatador da fé positivista na Praia Vermelha. A palestra, que, na varanda, até ali se mantivera fria, começava a se animar. O velho português, que, com seus hábitos de viúvo vagabundo, bisbilhotava a vida de toda a gente, preparava-se para contar um caso escabroso, acontecido há dias. A criada veio interromper-lhes oferecendo vermute. O velho Monteiro já havia citado os nomes e a parentela das pessoas em jogo, quando de novo foi interrompido por um bando de moças, entre as quais ia Clara. Ele lançou um olhar furtivo sobre o grupo e, quando afastado, recomeçou. Relatou-o em poucas palavras. Uma moça e um rapaz, casados de pouco, se separaram, havia dias, com grande escândalo, trazendo a moça uma moléstia horripilante. Entre risotas, comentou-se compadecidamente o caso. Boaventura fechou o rosto e nada disse. Fez exceção. O Alves da Silva aventou um remédio pra evitar no futuro casos idênticos. — O pai, dizia ele, ao se lhe pedir uma filha em casamento, deve pesquisar não só a limpeza da família de que procede o noivo, como também lhe incumbe descobrir os costumes íntimos do rapaz, os seus defeitos, etc. Só assim, só assim, repetiu, se evitariam desgraças dessa natureza. A opinião do Alves da Silva foi ouvida com acatamento, mas o doutor Alfredo aventurou-se a contradita-la: — Qual, Seu Silva. Isso era inútil, perfeitamente inútil. — Como inútil, doutor? Então, se... — Inútil, retrucou o bacharel. Inútil. A um noivo esperto seria fácil embair o pai; mesmo porque, ao pai, a menos que não fosse um profissional, faltaria a competência científica, legal, por assim dizer. Não acha, doutor Gomensoro? — Perfeitamente. Sou da sua opinião. — Então, não há remédio? perguntou o dono da casa. — Há. Como não há! Na legislação sobre os casamentos, pode-se estatuir que eles não se realizem, senão depois dos noivos apresentarem certidões comprobativas de que não estão afetados de moléstias transmissíveis. O doutor Alfredo falava devagar, pesando bem as palavras, a sua justeza e a propriedade delas. Parecia estar redigindo um artigo de lei; e, quando acabou de expor, disse com firmeza, sacudindo o cigarro na mão esquerda: — É o único remédio plausível, no meu fraco entender. Preguiçosamente o doutor Gomensoro apoiava-o com freqüentes: de acordo, de acordo; e logo que o legista acabou de falar, disse com indolência: — Eu já tinha pensado nisso. Recostou-se na cadeira em que estava sentado puxando uma forte fumaça. O Alferes Boaventura julgava a medida uma exorbitância do Estado, porquanto, afirmou ele, na época de transição em que estávamos, a sindicância, a haver uma, competia às famílias; e quando chegássemos ao regímen normal, em plena sociocracia — então sim! — a situação regular-se-ia perfeitamente com os “casamentos castos”. O auditório ficou surpreso e se entreolhou, prendendo uma gargalhada. Quiseram meter à bulha a “história” dos casamentos castos, mas lembraram-se logo da fúria com que o alferes recebera a troça, feita, há tempos atrás, numa das suas idéias. Afinal o doutor Gomensoro indagou: — Admite, então, o senhor que, enquanto não vem essa época normal, o governo deve consentir nesse contínuo apodrecimento da raça? — Admito, pois não. — O senhor admite isso? inquiriu admirado o velho empreiteiro. — O papel do Estado moderno deve unicamente consistir na manutenção da ordem interna, não intervindo na esfera espiritual de forma alguma, quer seja religiosa, científica, ou mesmo artística, disse Boaventura tal qual como se recitasse um trecho de catecismo. — Dir-me-á o senhor como ele deve manter essa ordem, se?... ia interrogando o Alves da Silva. — Muito simplesmente, cortou-lhe a palavra o Boaventura. Mantendo plenamente a propriedade e... — Se assim é, observou o bacharel, o tenente chega à conclusão que a escravatura deve ser mantida. Mantendo plenamente a propriedade, repisou lentamente o doutor Alfredinho, como querendo fazer melhor compreender o seu raciocínio. — É um sofisma. A escravatura é nos tempos modernos imoral e criminosa. Restabelecida na América, foi um retrocesso na História. A influência do catolicismo, benéfica quando a fez desaparecer da Europa, foi criminosa apoiando-a na América. Portanto, não há fundamento na sua objetação. — Como não, tenente? Bem examinando, nas suas origens, nos seus primórdios, qualquer espécie de propriedade é imoral e criminosa, retrucou com segurança o bacharel novato. — Ora! Ora! meu caro, exclamou o Boaventura. Isso é divagação metafísica muito estimada dos pedantocratas acadêmicos. Não forme opinião por eles. A secura de suas almas, os baixos pendores que os movem, tudo isso não permite que eles tenham um verdadeiro pensamento social, humano e altruístico, pois que, como já resumiu numa admirável máxima um moralista moderno, “os grandes pensamentos vêm do coração”. Estas palavras foram ditas com calor, cheias. A fisionomia do alferes, ao dizer as últimas, tinha uma estranha expressão de beatitude. Os vermutes, nos seus copos, sobre uma cadeira, pacientemente esperavam lábios que os bebessem. O doutor Gomensoro foi o primeiro a servir-se, os outros imitaram-no, exceto o Boaventura, que não bebia O sobrinho do Alves da Silva, que até ali nada dissera, animou-se a entrar na conversa, perguntando: — Você é abolicionista, Boaventura? — Não sou abolicionista nem escravocrata, como não sou nem a favor nem contra os eclipses. Os acontecimentos sociais regidos como quaisquer outros por leis invariáveis, desvendados pelo maior dos filósofos de sempre, realizam-se independentemente da nossa vontade. É em vão querer ou não querer, respondeu o alferes. — Eu, cá para mim, sempre quero alguma coisa, atreveu-se a motejar o antigo amanuense. Não quero a abolição, pois trará desastradas conseqüências econômicas. Deixei os liberais... — Não se preocupe com liberais e conservadores, interrompeu com fogo o alferes. Quer uns, quer os outros, são incapazes de nos dirigir. Ignorando por completo as leis que regem a atividade do homem no planeta, são perfeitamente inábeis para presidir a passagem do regime metafísico para o positivo, porquanto, segundo afirma uma lei de filosofia primeira, todo intermediário deve se subordinar aos extremos, cuja ligação ele opera. Boaventura falara extraordinariamente animado. Excepcionalmente se conduzira polidamente na conversa. Mais ou menos, os convidados do Alves da Silva conheciam o gênio do alferes; e, sabendo a consideração em que o tinha o dono da casa, evitavam agastá-lo; e muito a medo animavam-se a discutir-lhe as idéias. Ele tomava a fraqueza da réplica como uma prova de inferioridade mental dos outros, chegando a adivinhar em alguns uma ponta de conversão à sua magnífica doutrina. O alferes tinha também a mania da catequese, e não é de admirar que a tivesse, quando sem número eram os incrédulos. Já um tanto amável, o Boaventura preparava-se para continuar, quando a presença de uma pessoa no portão cortou-lhe as primeiras palavras: — Que é comadre? disse o Alves da Silva, levantando-se. — O Manuel tem passado mal; arqueja; pergunta por Clara. E eu vinha pedir licença ao senhor pra levá-la. O antigo amanuense coçou a cabeça e por fim, com alguma rudeza, disse: — Licença! Pois é sua filha — leve-a. — O compadre há de me desculpar, mas o Manuel pede... chora, fez dona Florência com humildade. — Deixe estar, minha senhora, interrompeu o doutor Gomensoro, amanhã irei vê-lo. Há de ser uma forma de impaludismo e mais nada. Clara saiu em meio de uma tristeza geral. Levava metade da festa, e com ela o piano também parecia ir. Anunciado o jantar, o Carlos Alves da Silva pôs-se a carregar cadeiras para a sala de jantar; e, como uma se atravancasse no corredor e resistisse os seus arrancos, o despeito contido rompeu-lhe: — É isso! Essa gentinha pilha-se assim, assim, julga-se gente... Tem uns dengues, uns derriços... A mesa esperava-o. Contados antes cautelosamente, os convivas eram quatorze. A sopa fumegava em frente ao anfitrião, na cabeceira. O porco, o assado, o peru, atravancavam a mesa com o arroz de forno, a salada etc. etc. Discutiu-se abolição; e a república também. Boaventura achava a república fatal, porquanto, dizia ele, no Brasil não havia tradições, nem nobreza, e por isso... — Não há nobreza! contestou o Alves da Silva. Há, sim senhor. Está aqui um que é. Sou nobre; por parte de minha mãe, descendo dos marqueses de La Rochart, fidalgos franceses. Há, sim senhor! Como não? O militar evitou a questão e, pela sobremesa, em seguida ao bacharel Alfredo, que brindara ao dono da casa, saudou o belo sexo — a providência moral do homem — na frase do grande filósofo Augusto Comte. Pouco depois de findo o jantar, o médico caridoso despediu-se, saindo em companhia da mulher, as filhas e a ama. A viagem foi feita no mais absoluto silêncio. A negrinha, a cochilar, levava ao colo o pequeno Zezé a dormir. O Oscar, o mais velho, de dez anos, sentado, dormia recostado nos joelhos da mamã. O doutor vinha absorto, cogitante. Olhava fixamente uma fresta do teto. Sonhava... Cismava. De onde em onde, aspirava fortemente o cigarro; e, entre duas fumaças, sua fisionomia vincava-se, contraía-se rudemente. Sua mulher olhava-o de esguelha, com a fisionomia aberta de satisfação. Seguia dobra a dobra as contorsões do seu rosto; parecia querer entrar na sua cogitação, no alto pensamento que o devorava. Logo, ao chegar ao lar, mesmo antes de despir-se, o doutor correu à biblioteca, tirou um volume, consultou-o nervosamente, em seguida outros, e depois veio para sua mulher, exclamando: — Filha! Que desgraça, meu Deus! Que desgraça! Tantos anos perdidos em vão! Soluçando, enchia o quarto com as suas longas passadas. Passado o espanto, sua mulher, enternecida, perguntou com doçura: — Que é, Chico? Que é que você tem? Diga, que é... Gomensoro nada dizia. Mastigava monossílabos. Deixou-se f car numa cadeira e, com as i mãos na cabeça, curvara-se sobre uma pequena mesa. Sua mulher insistia; afinal, arrancou a causa do seu incômodo: — É a língua, filha! É a língua! — Mas que língua é essa? — A língua em que hei de escrever a minha obra. — Ué! Pois não é português? — Em português, sim; eu não sei português... — Como? Você não fala, já não escreveu alguma coisa, como é, então? — Falo, escrevo, Genica. Mas a língua que falo não é português, não é nada. É um vazadouro de imundícies, cheio de galicismos, anglicanismos, africanismos, indianismos, cacófatons, cacotenias, erros de regência, o diabo, filha. A obra imperecível deve ser escrita no português de Barros, de Vieira. Como há de ser? Que trabalho! disse o médico com angústia. Sua m lher, com quinze anos de casamento, já estava habituada àquelas deliqüescências. u Elas aumentavam-lhe o orgulho que tinha do marido. Casada pouco depois de sair do colégio das irmãs, Genica só conhecera dois sábios: o capelão do colégio, um padre francês, sabido nos manuais do bacharelato; e seu marido. Pelos seus sete anos, sua mãe fugira de casa e com um caixeiro janota do pai, um probo negociante português da Rua da Quitanda. Seu pai, que se casara por amor, recebeu a injúria com uma sobranceria superior. Meteu a filha no colégio da Imaculada. Fugiu do mundo. Fez-se provedor, andador, benfeitor de várias ordens terceiras, e, quando sua mulher lhe escreveu dizendo-se na miséria, enviou-lhe uma pensão mensal até que ela se veio a findar de tuberculose no Porto. Aos domingos, invariavelmente, ele ia buscar a filha para passeios. Andavam pelos arrabaldes silenciosos, cada um entregue aos seus pensamentos; jantavam juntos em hotel, e pela tardinha entregava a menina à irmã superiora. Durante os oito dias, Genica vivia no colégio a decorar frases do manual de conversação francesa e a fazer trabalhos vistosos de bordado e desenho. Aos bocados, o temperamento da menina se firmou frio, cauteloso, mas doce e resignado. E, quando ao sair do colégio, seu pai a aproximou do Francisco Gomensoro, ainda quintanista, ela ingenuamente se tomou de amores pelo rapaz com quem veio o casar. Dentro de um ano, após o consórcio, seu pai morrera. O velho negociante conhecera o pai de Gomensoro, de quem fora amigo. Era ele um espanhol que, tendo fugido de Espanha por ocasião de um pronunciamiento abortado, refugiara-se em Portugal. Casado aí, veio para o Rio como guarda-livros de uma casa de objetos cirúrgicos. As lojas ficavam perto e os dois, à tarde, com mais outro companheiro, jogavam o solo pachorrentamente. Em poucos anos, o revolucionário espanhol tornara-se proprietário da loja, e o filho que aqui nascera-lhe, tratando diariamente com médicos e estudantes, tomou-se de gosto pela arte deles. O velho Gomensoro morreu logo após o menino encetar os preparatórios; e a viúva ficou com a casa, dirigindo a educação do órfão, até o terceiro ano, quando morreu. O probo negociante português, pai de Eugênia, liquidara a casa na melhor forma, tutelou o jovem Francisco com munificência; e, ao morrer, sentindo-os casados e felizes, foi leve e sorridente apresentar-se a Deus. Fizera uma felicidade e a regara com algumas dezenas de contos. Terminadas as formalidades do luto, o casal partiu para o velho mundo. O doutor freqüentou clínicas, notabilidades, hospitais, e a dona Eugênia viu as cidades pelas portinholas da carruagem e das janelas dos hotéis em que se hospedara. Em vão seu marido chamava-lhe a atenção para as maravilhas. Ela não queria. Tinha medo, acanhava-se. Tanta gente, todos a olhavam; e impertinentemente pediu a volta. Estabelecendo-se de vez na cidade natal, Gomensoro começou a aprofundar a teoria concebida desde os tempos de estudante: o paludismo é o fundo de todas as moléstias nos países quentes. A sua biblioteca de rapaz decuplicou. Lia obras, tratados, memórias, revistas, em três línguas. Nervosamente tomava notas em papelinhos e, como se fosse esquecendo das notas, por fim deu para tomar nota das notas. Lia, lia, doidamente, desordenadamente. Fugia sempre de escrever, porém há oito dias começara a passar para o papel o resultado de suas meditações. E foi por isso que a questão da língua surgira-lhe. Sua mulher tinha por ele um respeito religioso. Era o sábio, o homem que conhecia um outro mundo que rege este. Era o doutor, o bonzo-homem, formado, respeitável e grandioso; e, ao lhe vir um desespero daqueles, ela o animava, dizia-lhe pequenas lisonjas sinceras. O Chico sorria, acalmava-se e beijava-a muito. No dia seguinte, continuava: lia, lia, desordenadamente e doidadamente. O patrimônio deixado pelo português filantrópico já estava gasto a meio. Gomensoro não se incomodava com a direção dos seus bens. Sua idéia cegava-o e a tola educação que sua esposa recebera não lhe permitia corrigir as desmandadas despesas do médico. Uma vez, ele lera, numa revista francesa, a notícia de um livro: As Formas Palustres nas Índias Neerlandesas, do doutor Van Bree. Imediatamente mandou buscar um exemplar; e, como não compreendesse o holandês, correu a cidade, foi ao consulado, ao cais; e arranjou um marinheiro que o traduzisse, mediante oito libras por capítulo, e para meio português. Recebendo o estipulado pelo primeiro capítulo, o marinheiro saiu. Logo adiante tomou uma grande bebedeira; esfaqueou um polícia e foi recolhido à detenção. Gomensoro empreitou advogados; pagou-lhes regiamente, e o marítimo morreu de beribéri antes de entrar em julgamento. O paludismo tudo exigia. Fora dessa idéia, pouco lhe preocupava o resto da atividade mental. Não lia filosofias, nem teorias sociais e muito menos literaturas; e, se por acaso era chamado a falar sobre esses assuntos, a sua lucidez era segura, perfeita, própria, com algo de paradoxal, o que o admirava por supor a de toda a gente. Não conhecendo as teorias a respeito, só via os fatos, dos quais tirava conclusões pessoais e imprevistas. Como de costume ao vê-lo em diluimento, sua esposa tratou de o consolar. Animando-o, interrogou-o: — Chico, essa língua é diferente da de hoje? — Muito, querida. Muito... Nem se compara. — Então é como se fosse outra, continuou a dona Eugênia. — É... É... É como se fosse outra, acabou, afinal, o Gomensoro por dizer. — Então você não tem mais que comprar uma gramática e estudá-la, concluiu triunfantemente a esposa do médico. — Mas é verdade, Gênica, fez admirado o Chico Gomensoro. Mas é verdade! Amanhã seguirei o teu conselho. E num afluxo de ternura, elogiou-lhe o talento, beijando-a nos olhos, no rosto e na boca. Sossegou, dormindo quieto. No dia seguinte, logo pela manhã, viu alguns doentes, e depois do almoço desceu à cidade, donde depois iria ver o contínuo Manuel em Catumbi. O médico, perseguido pela idéia tenaz de uma língua lídima, andou pelas ruas de comércio, buscando nas livrarias a famosa gramática do século XVI. Num sebo da Rua de São José, encontrou, sossegadamente esquecido, um velho exemplar da Enssynança de bem cavalgar, d’El Rei dom Duarte e adquiriu-o, para servir de leitura da nova língua que ia estudar, embora o livro fosse do século XV. Eram três e um quarto quando procurou o ponto dos bondes da companhia de São Cristóvão. Aí veio a encontrar o doutor Alfredinho, filho do visconde da Meia Ponte, senador por Goiás. — Oh, doutor! Por aqui? — É verdade! Vou ver um doente. E o doutor, onde vai? — Vou ao Rio Comprido, procurar o conselheiro Rosemiro. Esse negócio da legação tem me dado um trabalho, que o senhor não imagina... Que bonde toma? — Eu? Itapiru. Porque? — Em que rua vai? perguntou o bacharel, sem responder a pergunta. — Na Travessa do Laje. — Podemos fazer uma coisa, doutor: vamos juntos no bonde na Estrela, que lhe deixa próximo, propôs o advogado. O médico relutou um pouco; e, concordando afinal, os dois embarcaram, quando o veículo se punha em movimento para as ruas estreitas da velha cidade. Logo assentados, relembraram o dia anterior, a palestra, o jantar, as pessoas; e as “coisas” do Boaventura vieram à baila. — Doutor, perguntou o médico ao advogado, esse Comte era militar ou monge? — Nem uma nem outra coisa. Porque? — A sua doutrina é ferrenha, cheia de regrinhas, de disciplinas estreitas, medidas. Parece uma ordenança militar ou uma regra monacal. — Não há dúvida; mas até, ao contrário, o Comte prega a transformação dos exércitos em milícias e quer a paz universal, dis se o bacharel, após curta pausa. — Admira então que, refletiu o Gomensoro, admira que os nossos militares, de uns tempos para cá, convertam—se e propaguem-na. — É simples. Uma questão de vaidade profissional. A matemática é a pedra angular do sistema, e os militares estudam um pouco dessa ciência, dai... Demais, o prestígio do Benjamim concorre. — Oh! o Benjamim, o Benjamim, disse o médico, com um risinho de escárnio. — É um geômetra, doutor. — Geômetra — é muito, ou antes é pouco. Benjamim, para geômetra, faltam-lhe obras, documentos quaisquer de sua sabedoria. É antes..... — E “A Teoria das Quantidades Negativas”? indagou o filho do visconde. — Um artigo de estudante “furão”, e mais nada. Para mim, como ia lhe dizendo, f z o e Gomensoro, Benjamim é um visionário, um utopista perigoso. Em resumo: bom homem e amigo do Pedro II. E riu devagar, concertando os óculos, ao tempo que o bonde parava na cauda de outros enfileirados na rua. Os poucos passageiros levantaram-se: — Que há? Que foi? Não anda? indagaram. — Nada, responderam o cocheiro e o condutor, já pachorrentamente sentados no meio- fio da calçada. Um caminhão que está descarregando uns fardos numa loja, e não deixa o carro da Tijuca passar. O bacharel pôs-se impaciente. Erguia-se, olhava raivoso, cofiava os pequenos bigodes e, por fim, disse para o médico com lancinante desprezo: — Isso não é terra, doutor. É uma “droga”... — Porque, porque houve uma pequena interrupção no tráfego dos bondes? — Não. É tudo! É tudo! Uma cidade feia, suja, esburacada, sem estética, sem parques. Um relaxamento... maldita colônia... O médico não tinha o que responder e sentia-se constrangido disso. Calou-se. O bacharel, adivinhando-o magoado, virou-se para o Gomensoro e lhe disse confidencialmente: — Sabe o que nos matou? — Não, respondeu com simplicidade o paciente esculápio. — Foi o negro. O médico pareceu não se admirar muito do segredo e com alguma ironia retrucou: — Pois olhe, doutor. Eu julgava o contrário. Eles fizeram o Brasil. Lavraram as minas; plantaram a cana; guerrearam; e hoje colhem o café e cavam estradas. Chegava a pensar que fizeram a nossa unidade. Vejam como são as coisas, doutor Alfredo? — De fato fizeram alguma coisa disso, mas são inferiores, incapazes pra civilização. Não são árias, doutor Gomensoro, não são árias. — Que diabo é isso? — Oh! doutor. Não conhece a teoria dos árias? interrogou espantado o moço advogado. — Árias, árias... Ah! Espere... Recordo-me... Quando estive na Europa, alguém me falou nisso. É, se não me engano, uma hipótese alemã muito engraçada, que expli... — Hipótese, não, doutor. Uma conquista da ciência. A Filologia, a Lingüística, a Arqueologia, a Pré-História comprovam-na, e os recentes estudos de religiões comparadas afirmam-na soberanamente. Não é uma hipótese, absolutamente. — Não importa, retrucou o médico. Seja uma verdade... vá... mesmo porque o que é hipótese na Europa é certeza aquém da linha equinocial. Diga lá a teoria, doutor Alfredo. O moço bacharel atirou fora o cigarro que fumava, enquanto o médico dava duas olhadelas a um passageiro próximo. Depois, expôs a teoria. — Em uma época anterior a todo o testemunho histórico, e que se esconde na noite dos tempos, uma raça cresceu no plateau de Pamir, na antiga Bactriana, Ásia Central. Em migrações sucessivas e em instantes diversos, irradiou pela Europa e foi ao norte da Índia. Já no plateau originário, tinha uma língua admirável, onde se vinham refletir suas afeições meigas, suas admirações ingênuas e arroubos para um mundo superior. Eram pastores, crê-se que também agricultores. Conheciam o ouro, a prata, o bronze, exceto o ferro, que não conheciam. Como se fossem raios do sol — um dos focos da elipse de translação da terra — os árias, mestres, senhores — emitidos do plateau de Bactriana — seguiram vetores e pararam aqui, ali, pela Europa, pela Ásia, ao norte, ao noroeste, a oeste e a sul, com os nomes de lituanos, eslavos, germanos, celtas, gregos, latinos, persas e hindus, que quase fecharam a elipse alongada. O que caracteriza o ária é a capacidade para a civilização. Rapidamente evoluíram e vão ficando senhores do mundo. É o que veio revelar as afinidades do latim com o grego, do grego com o alemão, do alemão com o persa, e deste com o sânscrito... Eis, doutor, esboçada a teoria dos árias, a teoria da raça civilizadora. — Bonito! exclamou sem querer o calmo doutor Gomensoro. — Do grego-latino, continuou o filho do titular, do iraniano e do ramo hindu surgiram civilizações poderosas, o que... — E dos lituanos, eslavos, germanos, celtas, não? disse de repente o médico. — Estes povos mantiveram um relativo estado de cultura até que foram absorvidos na civilização romana, objetou o filho do senador por Goiás. —Estado de cultura, fuzilou Gomensoro, que de forma alguma é uma civilização... — Sim... concordo, mas é cultura... — De modo que dos árias, a raça da civilização, só os gregos criaram uma civilização. Os que ficaram no mágico plateau nada fizeram e os da Índia, imobilizados nas castas, e tão se s deixando roubar pelos primos da Europa? — Com os da Índia aconteceu isso, devido às condições do meio e a presença de raças inferiores, retrucou o doutor Alfredo. O médico calou-se, pensou, olhou o passageiro que o interessava e levantou a objeção: — Com as condições favoráveis da França nada fizeram, entretanto os da Índia... — Foram as raças inferiores, objetou apressado o doutor Alfredo. — Raças inferiores, respondeu, depois de uma pausa, o médico. Como essas raças se influiriam maléficamente? Por ação de presença, só? Não é possível? Na humanidade, as reações se fazem por via sexual, e esta, terminantemente, não operou nos Ganges, pois a religião proibia, e os costumes também, que os casamentos e até a mais simples união sexual se fizesse entre indivíduos de castas, e, sobretudo, raças diferentes. O bacharel não sentia a argumentação valiosa. Pareciam-lhe argumentos de um simplório e, entretanto, não sabia combatê-los. Para fechar a conversa disse: —O que lhe acabo de dizer é resultado de pacientes trabalhos. Max Muller, Pictet, Juin e outros sábios criaram essa teoria, desenvolveram-na e demonstraram-na. Demais, doutor, ligou ele rapidamente, se todos os outros ramos nada tivessem feito, bastava Grécia e Roma. — Concordo, disse frouxamente o médico, e concluo que a civilização não é intrínseca na raça, não depende... Ah! Espere... E sofregamente correu o banco vazio até a ponta e daí falou ao passageiro que ia na frente: — Desculpe-me..., desculpe-me... Sou médico e o senhor vai perdoar-me... Nunca teve maleita, sezões, febres? O desconhecido voltou-se com ar estúpido e obedientemente respondeu: — Nunca. — Tem estado doente? — Algumas vezes. Tive sarampão, bexigas doidas e que me lembre nada mais. — Sofre de prisão de ventre? — Não, senhor. — É curioso, insistiu o médico. E dores de cabeça tem tido? — Às vezes, tenho, retrucou o desconhecido um tanto impacientado. — Sempre? — Não, doutor. Uma vez ou outra. — E seu pai? — Meu pai, fez aborrecido o interrogado, meu pai teve febres, sezões, maleitas, prisões de ventre. — Ah! exclamou o médico satisfeito. Tome quinino, amigo; tome quinino. E, depois de pedir muitas desculpas, voltou ao seu lugar e disse baixo ao bacharel: — É um caso de paludismo hereditário, perfeito, tachado. Aquelas “orelhas de abano” não negam. O doutor Polyenesky, de Varsóvia, verificou seiscentos e vinte e sete casos idênticos na Bessarábia, e eu... O bonde corria célere pelo Rio Comprido, e o Alfredinho, que tinha consultado o relógio, verificou que chegava à hora de jantar em casa do conselheiro. — Doutor Gomensoro, onde vai? — Eu já não lhe disse? Vou ver o compadre do Carlos. — Aquele contínuo? Agora me lembro... Sua mulher esteve ontem lá. Eu conheci-o. Era um bom homem. Obediente, honesto, trabalhador, bom chefe de família... Quando meu pai foi ministro, ia sempre lá em casa levar papéis. Uma coisa. Vou com o senhor, doutor. Há inconveniente? — Nenhum. E, logo ao chegar no lugar propício, os dois saltaram e se embrenharam pelo labirinto de ruas ainda mal povoadas. III A medicação do doutor Gomensoro não fora milagrosa. O doente pouco melhorou e, levantando-se dias depois, recaiu em seguida mais gravemente. De recaída em recaída, ora melhor, ora pior, o ex-voluntário morreu numa quarta- feira de fevereiro, fulminado por moléstia do coração. Precavido, ele se fizera inscrever em algumas sociedades de socorro mútuo, as quais, dando pequenas quantias para o enterramento, pouparam à família dificuldades com esse piedoso ato. A viúva economizou alguma coisa dos auxílios; e os cuidados com a vida futura atenuaram em alguma coisa a dor da perda que sofrera. Durante os primeiros tempos, tendo delineado um plano a seguir, tratava de cumpri-lo. Para ela, queria roupa a lavar, e a filha iria trabalhar em um atelier de costuras, onde a sua virtude correria menor perigo. A preta velha encarregar-se-ia da casa; e assim levariam a vida até quando Deus quisesse. Diariamente saía e dava os passes que julgava precisos. Pedia a um, pedia a outro e, pela tardinha, voltava à casa, naquela travessa esquecida, às vezes desanimada, em outras esperançada de encontrar no dia seguinte o trabalho desejado. No fim de alguns dias, arranjou alguma roupa, mas era a de uma família residente no Catete, e, lavada que ela fosse, as despesas de transporte absorveriam o lucro possível. Não acertou. O plano lhe pareceu mau, pensou outro. Alugar-se-ia como criada; colocaria a filha como “ama” em alguma casa. Mas a babá? Que havia de fazer dela? Empregá-la? Estava tão velha, enferma, reumática, num estado de saúde que não permitia prestar trabalho fixo, certo... Além do que, Clara inquietá-la-ia, se o executasse. Moça ainda, com finura de mãe, adivinhava os perigos que ia correr. Fora de suas vistas estaria exposta a ser desviada do bom caminho. Conhecera tantas que como “ama”... Coitada da filha! Tão moça! Tão boa! E, toda a vez que ela evocava tais coisas, redobrava de energia em seguir o seu primitivo plano. Ao sair, olhava Clara, púbere ainda, de seios túmidos meio formados, contemplava-a em instantes enchendo os olhos d’água, e, com a vista empanada, jogando o xale aos ombros, antes que a filha lhe percebesse a comoção, punha-se em campo com ânimo. Deus Nosso Senhor havia de ajudá-la! Casaria a filha, estava certa, pobre naturalmente, humilde também, mas seria honesta, honrada. Entretanto, os seus esforços eram vãos; os dezessete anos de casada, sem ter que prover a subsistência, não lhe tinham dado a prática, o faro de viver. Os conhecimentos eram poucos e desvaliosos; e, mesmo da família de que fora cria, nenhum restava capaz. Semeados pelo Brasil, aqui, acolá, arrastavam uma vida desgraçada de infortunados. As relações do marido esquivavam-se delicadamente; e, já sem crédito qualquer, na vida das três mulheres havia fome. As coisas de algum valor foram vendidas e a casinha estava quase nua de trastes. Atrasada nos aluguéis, eram diárias as ameaças do proprietário ou seu preposto. Desenvolvia um tato enorme para contê-los. Nem sempre era feliz; suas palavras por vezes erravam o alvo e, longe de apaziguá-los, enfurecia-os mais. Como certa vez ela lembrasse a pontualidade do falecido Manuel, o cobrador se enchera de raiva e raivoso dissera que, assim fazendo, não fizera nenhum favor algum; era obrigação dele unicamente. Dona Florência, em desespero de causa, resolveu procurar o Alves da Silva. Uma manhã, na estação inicial de Pedro II, pôs-se a aguardá-lo, cheia de angústia. Tinha oito dias para mudança, assim a intimava o procurador — a menos que não quisesse sofrer despejo judicial: havia quase três meses de atraso, e não estava pra isso... nada tinha com dificuldades... não era pai de ninguém, dissera ferozmente, numa cena violenta, que a resignada dona Florência ouvira toda com pejo e ódio. A viúva saiu cedo. Chegada à estação, encostou-se bem perto do lugar de desembarque e, entre os passageiros que chegavam, com o olhar, catava sofregamente o compadre. O calor era sufocante. O dia de mormaço, baço, tristonho, enchia as almas de opressão. Todos andavam cabisbaixos; não havia um riso. Esperando até às onze horas, não via chegar o Alves da Silva, contudo ele não lhe teria podido escapar. Devorava angústias. Figurava resoluções. Talvez fosse melhor dar um pulo até à casa do compadre. Ia incomodá-lo. Não havia de gostar; e tinha razão — que tinham os mais com sua sina? Nada. Devia agüentar-se só; não tinha nada que importunar os outros... Veio até à porta do edifício. O jardim em frente tinha as árvores abatidas à temperatura do dia; uma névoa quente crestava tudo. Era como um bafio de forja. O rolar dos veículos levantava muito pó; e a poeira ficava pairando à meia altura, sobrecarregando ainda mais o ambiente já por si pesado. Alguém chegou e lhe falou: — dona Florência, como vai? — Oh! É o senhor, seu doutor? respondeu ao dar com a pessoa. — Eu já lhe tinha visto, mas não a conheci logo. Agora, ao se virar, é que lhe pude ver bem as feições. Soube, acrescentou, soube que seu marido morreu...Meus pêsames. De que foi? — Muito obrigada. Do coração. O Manuel não se tratava; era teimoso..., foi uma desgraça, disse a viúva com um suspiro. — Coitado! Era moço? perguntou o interlocutor. — Quarenta e cinco anos, seu tenente. — Moço... Vai tomar o trem ou vem de cima? perguntou o Alferes Boaventura. — Não, senhor. Esperava o compadre, mas... — O senhor Alves da Silva? — Sim, senhor. — Está doente, afirmou o militar. — De que, seu doutor? — Nada, uma coisa ligeira. Uma constipação, um pouco de febre. Não há gravidade. Boaventura tinha se chegado à humilde mulher muito naturalmente. Ao seu temperamento fundamental, acessível e compassivo, sem preconceitos — a não ser o de militar e sábio — as doutrinas utópicas que professava, e com as quais estava fabricando de si mesmo uma imagem diversa, se soldavam para que fosse mais chão e mais ameno de trato com os pobres. Com estes, o seu azedume habitual se apagava e falava-lhes com doçura mesclada de piedade. Não temia que o vissem na rua a discretear com eles, pois a ninguém fazia mistério de suas idéias igualitárias e da sua simpatia pelo sofrimento do povo. Sempre que tinha dois minutos de reflexão, procedia de acordo com elas. Detestava a riqueza, a burguesia, o fausto; queria a paz universal, mas tinha as pequeninas idéias dos seus companheiros de profissão. O Exército era uma coisa sagrada, intangível — a arca santa da pátria — na sua frase. As concessões especiais de foro, de prisão, de instrução separada, para filhos e netos de militares, ele as achava legítimas, naturais, defendia-as extremamente. Desse modo, de um salto, passava das inovações generosas, para admirar a Alemanha militar. Os teoristas da guerra desse país juntava às prédicas do fundador da religião da humanidade. E, como os humildes não percebessem essas contradições e se curvassem também ao seu saber matemático, Boaventura junto a eles perdia o azedume nascido da comparação da grandeza do seu sonho com a zombaria que era recebido. Era notável que, considerando o saber matemático a única forma de sabedoria, condenasse, no entanto, toda a exploração já feita ou nova, tendente a alargar o domínio dessa ciência. Afora determinadas explanações sobre teorias elementares, qualquer outra incursão no campo da análise matemática era para ele, além de sem significação, imoral. A ciência estava completa, o mais era algebrismo acadêmico — dizia. Viera, conforme dissera à viúva, consultar o horário e voltava ao quartel-general, indo à tarde fazer uma visita ao Alves da Silva. Depois das primeiras explicações trocadas, dona Florência insensivelmente foi lhe fazendo confidências. Boaventura ouvira-a atento e triste, sinceramente triste. Enterneceu-se. O seu fundo emotivo, exagerado com sonhos humanitários, interessou-se por aquele padecer. Mesmo sem saber como, ofereceu-se a ajudá-la, prometendo-lhe que a procuraria no dia seguinte em casa. — Contudo, disse ao despedir-se, não é mau ir ver seu compadre. Vá. Quando a envelhecida Florência entrou em casa de seu compadre, o doutor Alfredo saía. Saudou-a cerimoniosamente, ao encontrá-la na escada de pedra, enquanto da porta a menina Olímpia dava grandes mostras de agrado. Mal falou com a moça, foi ter com o compadre. Conversava Alves da Silva, na sala de jantar, com o doutor Gomensoro. Vestia de linho branco e tinha chinelas de tapete. A fisionomia estava algo abatida. O rosto anguloso tinha um tom mate, e o nariz adunco e firme perdera um pouco de sua dureza habitual. Os cabelos grisalhos saltavam da moldura azul que um gorro oferecia, cobrindo-lhe a calva. A barba estava crescida. As primeiras palavras que dirigiu à comadre foram exatamente as mesmas que lhe dissera no dia do enterro. — Paciência, comadre. Paciência. As coisas hão de se arranjar com o tempo. É triste, eu sei, a morte de um chefe de família, mas o que se há de fazer? O médico maníaco mantinha-se calado. De vez em vez, firmava muito o seu olhar vivo, de costume inquieto, sobre a viúva, medindo-a de alto abaixo. Logo que era percebido, disfarçava, fugia com olhos, passeando-os em torno pelos quadros pendentes das paredes. Reparava a reprodução da Ceia em oleogravura, a lagosta muito vermelha, o quadro das frutas, depois descia a vista palpando o etagère, o guarda-louças e o pano da mesa com guarnições encarnadas. Fatigado, mirava as pontas dos pés separados, e com os dedos nodosos tilintava sobre a beirada da cadeira. O oficial de secretaria continuava a repetir consolos. A comadre, mal sentada na cadeira, contemplava-o respeitosamente. O seu rosto miúdo, de traços empastados, com rugas precoces, não tinha uma expressão definida. Havia respeito, desespero, dúvida e esperança a um só tempo. — O que eu sinto, comadre, dizia com fadiga o Alves da Silva, o que sinto é que a minha casa não tenha cômodos, senão. O médico quis dar volta à conversa. Perguntou ao Carlos se ia à cidade no dia imediato. Respondida afirmativamente, os três estiveram por algum tempo mudos. A viúva, animando-se, com a voz embargada, falou nas dificuldades, na mudança, na necessidade de dinheiro... Alves da Silva, coçando a cabeça, encostou-se melhor na cadeira de lona e murmurou: — É, comadre. As coisas estão tão ruins. Ainda agora, essa moléstia... Nesse ponto, chegou do interior a mulher. Vinha de matinée de cassa, sem colete e com uma saia de ramagens claras. — Oh! Florência, como está você? Pensei que você estava zangada! De repente, sentindo que o seu acolhimento benévolo surpreendia o grupo, dona Adélia fechou a fisionomia, fez que procurava um objeto num móvel, apanhou-o e, olhando o marido de soslaio, saiu da sala dizendo: — Florência, antes de você ir, fale comigo. O Gomensoro, então, indagou: — Mas quais são as dificuldades, dona Florência? A viúva as explicou redundantemente. Contou as diabruras do proprietário, as vergonhas que estavam sofrendo. — Tenha paciência, espere hoje e amanhã, depois vá, ou mande sua filha lá em casa, que lhe poderei fazer alguma coisa. A fisionomia apalermada da mulher iluminou-se. Os seus olhinhos de conta muito abertos agradeceram melhor do que os repetidos: obrigada doutor, obrigada — que ela dizia. — É isso, comentou no fim o Alves da Silva, você se sofreu tudo o que contou, foi porque quis; se nos tivesse procurado há mais tempo tinha evitado esses desgostos. A mãe de Clara pediu licença e foi ao interior falar com dona Adélia. Olímpia fazia crochet na saleta, ao lado de sua mãe, que lia um jornal. Chegando a viúva, arredou um pouco a folha e indagou: — O que trouxe você aqui, Florência? Antes que pudesse responder, Olímpia por sua vez perguntou: — Como está Clara? Porque não veio? Florência respondeu à menina e explicou a dona Adélia os motivos que a traziam. — E você arranjou o que queria? — Sim, arranjei. — Foi o Carlos quem te ofereceu? — Não. Foi o doutor. — Ahn! fez a dona Adélia. — Quem te disse que o Carlos estava doente? perguntou ela logo em seguida. — Foi seu alferes Boaventura. — É verdade! exclamou dona Adélia... Depois, refletindo um pouco, disse para a filha: — Olímpia, fica aí, enquanto eu vou com Florência ate ao quintal. A dona da casa, logo que ficou fora dos ouvidos da filha, disse para a viúva: — Florência! eu queria saber uma coisa. Mas fica entre nós — olhe lá!... — Oh! comadre! Eu sei guardar segredos; sou de caixa encouradas... Assegurada da discreção da comadre, dona Adélia perguntou: — Clara nunca te disse se o Boaventura “gostava” de alguém? — Nunca. E como ela me podia dizer, se pouco conversava com “seu” Boaventura? — Não... Sim... É... E depois de uma série de volteios e meias palavras, a mulher do Alves da Silva contou à sua humilde comadre que, pelo seu sobrinho Alípio, soubera que o alferes “gostava” da filha. Por ela, dona Adélia achava um bom casamento, mas, sondando o marido, este lhe objetara. — Não lhe conhecemos a família. Ele diz que tem, mas nunca fala dela. E figurando mais o caso como sendo possível, dona Adélia havia já interrogado o marido assim: — E se ele te pedir a menina em casamento? — Se ele ma pedir, retrucou o Alves da Silva, exigirei um prazo e investigarei os seus precedentes de lar. Se forem bons, sim; senão, não. É coisa muito delicada. O segredo comunicado, mútuas promessas de guardá-lo foram feitas; e a viúva do contínuo, embora muito admirada que sua comadre, à vista das suas dificuldades, só achasse valioso falar-lhe dos namoricos da filha, prometeu, todavia, indagar de Clara alguma coisa de positivo. Entrando na sala em que o médico e o seu antigo companheiro de colégio conversavam, Florência não encontrou o Alves da Silva. Recebia, na sala da frente, uma visita de cerimônia. E, enquanto esteve só com o médico, Gomensoro lhe reiterou a promessa, dando-lhe conselhos. — É mude-se. Vá morar pra Laranjeiras ou Botafogo. Por lá arranja trabalho facilmente. Há muitas famílias ricas. Minha mulher poderá mesmo lhe recomendar a algumas de suas antigas colegas bem casadas. Conhece o chefe de esquadra Valadão? Sua mulher foi colega da minha. Mora na Bica da Rainha, e assim muitos outros. *** Andamos pela vida apavorados, trêmulos de medo do futuro e, quando o que se conta no dia seguinte e no de hoje é mediano, nós nos pomos quietos, a olhar os astros, e na nossa alegria há menos palavras que na nossa dor. O júbilo é interno e tememos que o exteriorizando ele se evole como um perfume sutil, contido em frasco frágil. Clara, sua mãe, e a preta velha, acabados os arranjos domésticos, se puseram sossegadas n porta da cozinha. As fraldas de Santa Teresa cobriu-as com a sua sombra a e as três, sentadas no chão, poucas palavras trocavam. Antes, no tempo do contínuo vivo, ele também se sentava e — como homem, andava pelas ruas e lia jornais — tinha sempre o que contar... *** Naquela tarde, pela primeira vez, depois da morte do Manuel, elas voltavam ao seu antigo hábito. Sem acordo algum, as três, uma a uma, se foram chegando, sentando—se, com as suas respectivas tarefas. A velha Florência, de onde em onde, soltava um longo suspiro, olhava a ponta do Corcovado, punha-se de olhos parados para o morro, estupidamente. Parecia temer que ele desabasse... Conforme o costume, ao anoitecer, a conversa se animou. Clara tinha vindo de interrogação em interrogação, nesse salteio caprichoso de diálogo, até perguntar à preta velha como viera até nós... *** A babá, ao saber que a escravatura vai acabar, se admira, não acredita, acha impossível e diz que o mundo vai acabar. Clara retruca-lhe que não, e porque ela (a babá ) indaga quem vai trabalhar nas fazendas: — Os livres, os que quiserem. — Qual! Qual! — Mas porque? Na Inglaterra, na França, não há escravos e há fazendas! — Mas é que lá não há negros (babá). *** A visita do alferes foi o assunto do dia seguinte. dona Florência estava certa que ele viria, mas que ele lhe poderia ser útil não atinava. Se fosse dinheiro, ele lhe teria dado ontem, e, em todo o caso, bem podia ser que, não tendo, fosse adquiri-lo e delicadamente lhe trouxesse. Incapaz de compreender espontâneo o ato do oficial, a viúva procurou inutilmente um motivo, mas, quando comparou o movimento dele com as confidências da comadre. num clarão lhe veio explicada a sua generosidade. Em começo, aquilo lhe pareceu baixo, naturalmente ele lhe iria pedir pequenos serviços de apaixonado, cartas a levar, cartas a trazer, flores, e se não fosse a ela, seria à filha. Mas não tinha razão dona Florência. Boaventura, lhe oferecendo auxílio, procedera muito generosamente e desinteressadamente; e, embora ele já se sentisse tomado de amores pela filha de Alves da Silva, desprezando os comezinhos meios dos namorados de profissão, não queria de Florência nem da filha os serviços que aquela suspeitava. Saindo da estação central, ele subira para uma das portas do quartel-general, até o pavimento superior e, logo ao sair, dera com o capitão Meireles. Era de infantaria, mas tinha suas letras. Fora jubilado no segundo ano do curso da Praia Vermelha, quando tenente, e voltara a servir na sua arma. Nas rodas militares, falava-se muito do seu nome, a sua profusão de anedotas picarescas, a sua jovialidade inquebrantável, e o seu estro de poeta satírico eram os motivos da sua popularidade. Com já estar na casa dos quarenta, desse seu gênio colegial pouco perdera; contudo, de alguns anos para cá, embora não se fechasse em grande taciturno, andava calado e mastigando idéias ultimamente se soubera o que o perseguia. Era nem mais nem menos que a adoção dos pombos correios no Exército. Uma ponta de inveja o movera a isso. Verificando que uma série de oficiais, por gênio tumultuário ou por estudos, atravessavam o âmbito estreito das companhias e estabelecimentos, para viver na fama da plena rua, ele também sonhara ter um nome assim. E estudara para isso os pombos correios, tão importantes na organização dos exércitos europeus. Assimilara ligeiramente noções de anatomia e fisiologia das aves; lera tratados e artigos históricos e, justamente naquela ocasião em que encontrara o Boaventura, trazia o memorial em que lembrava ao ministro da Guerra a conveniência de adotar aqueles mensageiros no Exército. Era um calhamaço de cinqüenta páginas manuscritas em papel almaço, e ele ia lê-lo do começo ao fim, quando o Boaventura objetou-lhe que tinha pressa. — Ah! — lhe respondeu — ouve só uma parte da introdução. Ouve: “A colombofilia militar evidenciou sua utilidade no último cerco de Paris, e nenhuma nação européia desmereceu dos seus meios de defesa a telegrafia aérea. Esse fato veio despertar as grandes nações germânicas e, enquanto estas se aprestavam para defender, os países latinos, renunciando o próprio desdém, suicidam-se. A ciência da guerra é também uma necessidade inerente à conservação social. Diz um insigne intelectual: ‘não crede senão na força temperada por uma longa disciplina’. “A força é a grande lei da natureza, indiscutível e insuprímível. O mundo tem por base a força, mas o olhar dos povos, principalmente os da raça latina, nas crises da sua história, só vê o momento presente. Baldado é o intento de faze-lo alcançar mais longe. Desmintamos estas asserções. Entre os auxiliares do exército se deve contar como um dos mais proveitosos os pombos correios — Bem! Mas você é atrasado, Meireles. A missão do Exército não é mais esta... — Qual é então? — É a regeneração da sociedade. Formados como a elite do povo, a nossa forte cultura científica nos prepara para governarmos no período científico-industrial. Estamos destinados a substituir os bacharéis em Direito. Até logo... E saiu, deixando boquiaberto o capitão, com o calhamaço descansando sobre o peitoril da janela. *** Como houvesse fogos em vários trechos da cidade, e um se queimasse em Vila Isabel, no Boulevard, bem perto da sua casa, Clara, com algumas outras raparigas da vizinhança e um irmão de uma delas, foi vê-los. A rua era cheia, e, se bem que larga, a multidão se espremia, contida entre os dois lados. Aproveitando os largos terrenos vazios que havia nas margens, o povo derivava por eles, enchendo-os. Clara e os companheiros, muito a custo, avançaram por entre o povo até à altura da Rua d’Aldeia Campista e, aí, sendo boa a posição para ver os fogos, ficaram. Tudo ofegava. A noite feia ameaçava chuva; entretanto, ninguém desanimava. Desde quinze... *** — Que é? — Um rolo... — Onde? — Espera, eu vou ver — disse o rapaz que acompanhava as moças. — Pouca coisa — disse ele, voltando. Ali, junto à confeitaria, havia um grupo: um rapaz, filho, parece-me, de um capitão de mar e guerra, a ompanhava umas moças, sendo, me parece, c uma delas namorada dele, e como um sujeito a olhasse muito insistentemente, ele tomou satisfações; o outro, que não era mole, respondeu no mesmo tom, e o final foi que o tal rapaz das moças saiu ferido com a cabeça quebrada... — Coitado! fizeram as raparigas. — Não, pouca coisa: uma racha aqui — e apontou o parietal esquerdo. — Ele desmaiou... Foi pra botica? inquiriu Clara de repente, mostrando muito interesse. — Desmaiou e foi pra botica. — Mas não tem novidade o ferimento? perguntou, ainda, Clara. — Não. Alguns pontos falsos e daqui a dias está curado, não foi nada. — Que diabo! Que interesse! Você conhece o rapaz? — Não conheço, não. Nunca o vi. — Pois não parece, retrucou a outra com malícia. — Está sempre com essas coisas, Adelaide. A gente não pode ter pena, dó, de um rapaz que se fere, que você não venha com “coisas”, disse Clara, meio zangada. — Não te zangues, Clarinha. Estou brincando, disse a outra, animando a rapariga. Quando eles vinham pra casa, Clara ouviu um grupo, que acaso parara junto de onde eles pararam, a narração do caso. Adquiriu certeza de que o caso se passara com o adolescente, mas ao fim da conversa chegou um latagão forte, um desses rufiões de arrabalde, que foi indagando pormenores. — Ah! Se eu estou lá... O sujeito conhecia o jogo? — Não sei. A verdade é que lhe foi assestando a bengala e o Alfredo caiu. — E a noiva, a namorada? — A noiva deu um faniquito e foi levada para o interior da confeitaria. IV A casa de Clara era uma pequena habitação de telhado cortado ao jeito de chalet, edificada ao lado de outras iguais, a correr numa só linha, como o que se denomina atualmente uma avenida... Na frente, um corredor comunicava-as com a travessa, que ia terminar na Rua de São Francisco Xavier. Aos fundos, um capinzal cobria um grande baixado. Essa última rua, por esse tempo, estava parcamente povoada; de extensão a extensão, alguns grupos de casas pontuavam vastas porções de terreno, coberto de capim plantado. Na esquina da travessa em que ela morava com a Rua de São Francisco, havia uma grande chácara, vasta como um sítio, que, murada do lado da rua principal, era na orla da travessa cercada por uma sebe compacta de bambus. Quando Clara desembarcava do bonde, costumava encontrar a babá ou sua mãe que a vinham esperar; nas noites de verão, porém, as duas velhas se poupavam desse trabalho. Na tarde de segunda feira, nenhuma das duas viera, e Clara, de volta do atelier, andando vagarosamente, muito concentrada nos seus pensamentos, foi surpreendida, logo ao dar os primeiros passos, com o encontro do adolescente que a esperava. A lua brincava nas pontas dos bambus que balouçavam, e a projeção da touceira dividia a rua em duas partes, negra e branca, quase iguais. Era como uma bandeira bicolor estendida e, aos meneios da sebe, ela se agitava tal qual uma bandeira que estivesse desfraldada. A angústia daqueles três dias de separação atirou-lhe fremente para o rapazola e se explicaram com palavras entrecortadas pela comoção. Sua mãe, justificava o adolescente, quisera dele uma comissão em Santa Cruz, no curato, e ele fora sem poder avisá-la. Uma carta despertaria suspeitas; não tinha como prevenir; o trem partia cedo, de madrugada, ele foi. — Se te vim esperar aqui, dizia ele, foi porque temi que me recebesses mal, e se isso se desse no bonde seria um destempero. — Oh! Qual! Eu gosto tanto de ti... — E eu, meu anjo, tanto, tanto... que não sei mesmo... — Meu Deus, como eu te gosto, tu não me amas mesmo, hein? — Muito! Muito! Insensivelmente os dois se foram aproximando, de tal jeito o fizeram que não se poderia dizer bem qual dos dois beijou o outro primeiro. Por alguns minutos estiveram aos beijos, e palavrinhas doces, ditas pela metade, entremeavam-nos. Por fim, o rapazola, temendo que alguém viesse a passar e o visse ali com ela, rematou: — Adeus! Aqui não é bom lugar para nos explicar-mos. Espera-me amanhã... Sai um pouco antes e vai-me encontrar no Largo de São Francisco, atrás da Escola Politécnica. Quero-te falar. Saindo dali, o rapazola conteve a comoção, pois que seria feio ele se apresentar aos outros comovido por ter dado uns beijos numa mulata, e foi ao encontro da roda. — Então? indagaram em coro. — Oh! Não conto nada! A mulata está “embeiçada” por mim... Quando me viu... Dá-me um cigarro? — Toma. — Quando me viu quase chorou. Caiu que nem um patinho. Quem tem fósforos? — Eu! — Amanhã me vai esperar. Está tudo arrumado. — Olha lá! — Qual! Não há nada. Se a coisa arrebentar, papai me passa um “carão” e abafa a coisa. Você empresta-me a chave do chateau? Sim? Está ouvindo, Freitas? Ao sair de casa, Clara pediu a sua mãe que a mandas-se esperar, pois, esperando serão, viria mais tarde. No atelier, Clara, pretestando moléstia, obteve da contramestra permissão para sair mais cedo. Pilhando-se na rua, ela apressou o passo em demanda do ponte de encontro. Ia entre sôfrega e inquieta. Que queria ele? Oh! Se fosse isso, nunca! Ela resistiria. Deus a livre guarde. Coitada da sua mãe, se soubesse, morria. Depois ela estaria desgraçada pra sempre. Ainda se... qual... filho de quem ele era, nada aconteceria. O capitão de mar e guerra não deixaria que fosse amante. Havia de pôr empenhos, dinheiro, e a coisa ficaria em nada. Na altura da Rua de Uruguaiana, quis voltar, tomar logo o bonde. Arrependeu-se e continuou. De mais a mais, ela tinha prometido, e em ir não havia mal algum. Quando dobrou a esquina, encontrou o empreiteiro. — Oh, dona Clarinha, onde vai com tanta pressa? — Não... Nada... Vou aqui fazer uma compra e ainda volto ao attelier. Boa tarde. — Boa tarde. O Largo de São Francisco, àquela hora, ainda estava movimentado. Grandes magotes de povo atravessavam-no em várias direções. Da Rua do Ouvidor, a onda a chegar era volumosa, e para lá marchava a maior parte. Nas outras ruas e travessas, o espetáculo era o mesmo. Delgados filetes de gente iam e vinham, cruzavam-se, baralhavam-se. O largo mantinha inalterável a mesma quantidade: era como um reservatório a se encher e a se esvaziar eqüitativamente. Clara atravessou-o aos últimos raios do sol de verão, em procura da travessa atrás da Politécnica. — Tardei? — Não. Chegaste a tempo. — O que é que você quer comigo? Disseram os dois ao se encontrar. —Que pressa; se é com ela que vieste, vai t’embora, que não é coisa pra minuto, disse o rapazola azedamente. O adolescente tinha percebido que Clara estava “arisca” e, certo disso, atirou fora o ar de timidez com que se cobrira durante o namoro todo e armou-se de atitude firme, que melhor lhe parecia servir aos seus fins, Clara, recebendo aquela resposta, ficou rapidamente enternecida. Para que aquilo? Aquele desabrimento? Ela não tinha razão e meigamente respondeu: — Você se zangou? — Não... Não me zanguei... Mas tu vens assim, dessa maneira. Uma pessoa fica espantada. Parece que vou te engolir... — Você sabe, se eu demorar... Se alguém passa por aqui..., retrucou Clara com a voz meio embargada. — Tem razão. Saiamos daqui. Clara como um cachorrinho acompanhou-o. Os dois foram andando calados. A noite caía vagarosamente. As últimas estavam no Largo do Rossio... — Entra, disse o rapazola. Entra. Era uma pequena confeitaria pouco freqüentada. Nas poucas mesas, quase ninguém havia. — Que querem? — Cerveja, não é? indagou o adolescente. Olhe, traga cerveja e uns doces, recomendou ele ao caixeiro. — Cerveja e doces? — Sim. Enquanto ia buscar o caixeiro, o adolescente começou a animar Clara. Ela, inquieta, olhava de um lado a outro. Nada dizia; só pela sua fisionomia transtornada se percebia o desencontrado dos seus sentimentos. — Sabe porque é isso, Clara? — Não. — Faço anos hoje e quis te oferecer um banquetezinho. — Parabéns. Parabéns. — Tanto mais que eu, dando uma fugida de casa, aproveitei a ocasião para te declarar que sou, de hoje em diante, o teu noivo; entretanto, como não quero que se saiba já, peço-te que não o digas a ninguém. Com estas palavras, Clara se acalmou um pouco, e o copo de cerveja que bebeu veio lhe dar uma lassidão, uma vontade de dormir que a dominou. Estiveram algum tempo calados e depois saíram; os combustores já brilhavam acesos. De braço dado, eles seguiram ao longo da grade do jardim. Ao atravessar de novo a praça, numa olhadela, ela percebeu o velho empreiteiro, que a vigiava. Lembrou-se de sua mãe: “Olha, minha filha, esses homens... — Onde é que vamos? disse ela, estacando subitamente. — Vamos aqui. Que diabo, não sou teu noivo? Vamos, disse o efebo imperiosamente. Clara se tinha deixado tomar de inércia. Alcoolizada, com as promessas do rapaz e sobretudo aquele seu temperamento de torrão de açúcar, não lhe ajudavam a resistir ao forte querer do adolescente. Ela se sentia arrastada, puxada. Queria despedir-se, mas não podia. O bafo quente do rapaz, a esquentar-lhe a carne palpitante e sequiosa de outra, impelia-a a ir com ele, ao seu lado, a dar-lhe beijos, abraços; mas, bem depressa, cortando-lhe o frêmito que lhe resolvia as entranhas, surgiam-lhe as recomendações de sua mãe. Então, atemorizada, esforçava- se por despregar-se, por fugir dele, que a prendia magneticamente. Não tinha forças e, amolentada, seguiu-o. Dobrou uma esquina e achou-se num beco. Entrou por uma casa escura, meio suja e, em pé, petrificada, esperou uns instantes que o seu companheiro achasse a chave na algibeira, com a qual abriu a porta do quarto, onde os dois penetraram. Pelas paredes, algumas figuras eróticas despertaram-lhe logo idéias sinistras. Olhou desvairada em roda e na reles cama de ferro, que guarnecia o aposento, sentou-se chorando. Chorava de um choro nervoso, de quando em quando interrompido; quando assim, com os olhos abertos, a lacrimejar, olhava o adolescente em pé, que procurava sossegá-la. — Que é isso, Clara? Deixa-te disso! Olha se ouvem e se vem a polícia. O adolescente, temendo que a ocasião escapasse, ameigava a rapariga, ora terno, ora áspero, ia empregando o velho arsenal da sedução. Ajoelhou-se, jurou por Deus, sob sua palavra de honra, que se casaria, que não faria a infelicidade dela, e para que esperar mais um mês, um ano, dois, quando ela, agora, poderia felicitá-lo, provar o seu amor por ele. Já fatigada e amaciada com aquelas juras, que lhe saíam bem ao paladar, a mulata sentada na cama ficou sem ação. O rapazola, meio inclinado, beijou-a no rosto pela primeira vez, na segunda no pescoço, desabotoou-lhe o casaco, com um fraco protesto dela, beijou-lhe os seios. A rapariga parecia outra. Não arquejava, trepidava de volúpia, como uma caldeira de vapor. Os olhos cheios brilhavam, parecendo querer ver longínquas regiões, satisfações não vistas e muito desejadas. Entontecida de amor e de desejo, foi deixando, deixando. Quando os beijos deixaram de estalar no quartinho, já eram quase dez horas. Clara, mais leve, lepidamente tomou o bonde para o lar. A babá esperava-a e sua mãe angustiada também. — Oh! mamãe! Foi o serão, adiantou-se. Há muitas encomendas. Com as festas que devem haver, tem havido muito serviço. Foi por isso só. — Amanhã haverá ainda? — Creio que não. Se houver, eu não farei. Já disse lá que moro longe e que minha mãe é doente e sozinha. Os encontros no beco se repetiram; agora menos demorados, mas mais gostosos. Clara, habituada e segura que nada se suspeitava, ia para lá contente e dele voltava transbordando de satisfação. *** Clara, de temperamento ardente, apreciava aqueles encontros, mas o adolescente, satisfeito, e temendo as conseqüências judiciárias, procurava fugir. Certa vez, ela lá indo, em vez de encontrá-lo, encontrou um outro. Convidando-a a entrar, ela recusou e, ao sair, mal tinha dado alguns passos, deu com o Monteiro. Dissimulou, mas por melhor que o fizesse, ela não pôde deixar de trair-se. Sua mãe ia aos poucos definhando, apatetara-se e dentro de seis meses definhou de tal forma, que... *** O lugar dos encontros era ainda no tal beco e no mesmo quarto meio sujo, meio escuro, para onde, naquela tarde, o adolescente a levara. Com o gênio ordeiro de Clara, o aposento, entretanto, tinha ganho mais limpeza, e uma arrumação mais cuidada disfarçava a exiguidade de seus móveis. A cama de ferro, calçada, tinha o colchão de capim coberto de lençóis limpos, alvos, e uma colcha de chita de ramagens cobria-a por dois terços. As figuras eróticas das paredes substituíra Clara por cromos de folhinhas, e, disponho-os ingenuamente simétricos, o ar do quarto era de um aposento de moça pobre. As suas relações duravam há oito dias, e, com ser ainda recentes as relações, o adolescente parecia à Clara um tanto aborrecido. Não mais carinhos, pedidos, coisas mínimas, que ela tanto estimava. De tarde, ao sair, ela dirigia-se rapidamente ao beco. Subia, já o encontrava, sentado, esperando-a. Mal chegada, antes mesmo de repousar os embrulhos, ela ia muito humilde, muito doce, amimá-lo. Os carinhos eram quase indiferentemente recebidos pelo rapaz, respondia a um beijo ou a uma carícia e, como fatigado, dizia mal-humorado: — Deixa-te disso... Deixa-te disso... Clara murmurava uma queixa, mas continha-a e ficava em pé com as mãos nos cadarços da saia, a olhá-lo, com os seus olhos redondos, humildes, parados, espantados. O adolescente, então, intervinha e com império mandava: — Despe-te. Anda. Satisfeito, ele se levantava rápido, aborrecido, respondendo monossilábicamente às perguntas da rapariga, obrigava-a a vestir-se de novo, fazia-a sair, e ela, logo que o imaginava longe, saía a se coser pelas paredes, envergonhada, vexada, apreensiva. Dentro de dias, havia já nele um grande arrependimento, nascido do sentimento confuso do temor das leis, da sociedade, da honra, dos preconceitos. Aquelas carícias, aquela intimidade da rapariga não eram próprias, não competiam a ele, era uma confiança. E como mesmo lhe fora tão forte o desejo dela que lhe chegara a prometer casamento? Ele e ela, casados... Oh! Oh! E continha a risada. A risada que queria explodir era contida pelo temor do código, do escândalo, da polícia. Mas daí não havia senão perigo passageiro. Seu pai repreendê-lo-ia, amarraria a cara, evitaria o código, a polícia e, afinal, havia de achar coisa de somenos, pândega de rapaz. Entretanto, o que mais aborrecia-o eram as carícias dela. A demasiada doçura com que o tratava, os afagos de noiva, uma criada, quase. Convinha pôr um termo àquilo; já tinha o que queria, e se a coisa continuasse podia “pegar”, era o diabo! Na última vez que estiveram juntos, no sábado; ele pedira à Clara que viesse segunda-feira cedo, almoçariam juntos no chateau, passariam o dia e a tarde, iriam ver as festas, mesmo porque, acrescentou ele no fim, tinha muita coisa a dizer-lhe, relativamente ao futuro de ambos. Naquele dia, Clara, dizendo à sua mãe que ia com sua companheira assistir as festas da Libertação, saiu de casa por volta das nove horas e foi direito ao quartinho do beco. As ruas cheias eram atravessadas pelo bonde entre ululos, a multidão não satisfeita com as provas públicas de regozijo continuava a enchê-las, percorrendo-as animada, a parecer que, sem destino nem fim, teimava a andar pela via pública de baixo para cima. No quartinho, como de costume, a rapariga encontrou o adolescente e de contrário do habitual ele aparentava mais gentileza e se esforçava por ser prazenteiro. O almoço, que fora frugal e breve, veio pô-los em maior intimidade. — Clara, disse o rapazola, eu te queria dizer alguma coisa, mas espero que, com o que te vou dizer, não te ponhas aí a fazer um escarcéu, mesmo porque não há razão para isso... — Que é? — Vou te dizer, mas primeiro hás de me prometer que tu não farás nada, isto é, não te surpreenderás, nem te irás pôr a chorar e a dizer bobagens... Prometes? — O que é? — Promete, primeiro, senão... — Prometo. Que é, então? — Vê-lá. Prometes? Juras? — Juro. Juro. Diz lá. — Bem. Como você sabe, eu estou estudando, vivo da pensão que meu pai me dá, tenho que lhe dar contas de mim e, nessa época de exames, eu fui reprovado nos últimos que me faltavam para me matricular; sendo a segunda vez, meu pai zangou-se, repreendeu-me, aborreceu-se, mas acontece que agora, num dos Estados do Norte, haverá exames para o mês que vem, uma segunda época, e meu pai, que é amigo do presidente da província e tem muitas relações lá, com os professores do liceu, vai me mandar lá completar os preparatórios. Mas o que e isso? Que cara! Deixa-te disso. Você me prometeu... — Você volta? — Volto. A coisa é segura, os exames lá são fáceis, mesmo com empenhos que levo nem que fossem difíceis, e, dentro de um mês e tanto, estou aqui e matricular-me-ei em medicina. Portanto, como você vê, é uma separação breve, eu voltarei e então tu já sabes. A rapariga tinha ouvido o adolescente, contendo a máxima angústia. De quando em quando, ela queria dizer qualquer coisa, objetar que ela sentia a verdade, que ele não ia só prestar aqueles exames, mas separar-se dela, cortar as relações que ia mantendo, retirar-lhe a promessa e deixá-la por aí, desonrada, isolada, desgraçada, tanto mais que lhe era agora a coisa abominável, pois que já se suspeitava, e já, entre dentes, ela ouvia referência indiretas e aproximações. O trabalho do empreiteiro não fora em vão e, se bem que ela não o visse nas proximidades do quarto, nem tampouco ele lhe houvesse dito qualquer coisa, ela sentia que ele sabia, tinha certeza que ela vinha ali naquele quarto reunir-se com um rapaz. E, ele sabendo, saberia seu padrinho, e ela perderia com isso a única proteção. Que ia ela ser, desonrada, sem ajuda de ninguém, desprotegida? E lhe passou, então, pelos olhos, a visão rápida, dramática, de um futuro doloroso. Seria assim como aquelas que, na janela, passam dia e noite, a chamar homens, a arrebatá-los pelo casaco, viveria assim de tamancos ao meio do pé, vestida com chitas ralas, a se ver a metade do corpo, a bebericar, até que um dia o ciúme de um ébrio, de um mau, com quem naquela vida ela estava arriscada a travar conhecimento, a matasse cosendo de facadas, no fundo horripilante de uma daquelas alcovas. Não pôde então impedir de chorar. Chorava, com um choro seco, em começo, e depois, como se o choro contido tivesse aberto todas as válvulas, ela chorou abundantemente e livremente. O adolescente, sentado, afagava-a, fazia-se terno, amimava-a, e ela, entre soluços, disse-lhe: — Você volta? Você vai me deixar? — Volto, Clara, volto, quem te disse... — Você quer me deixar. Eu sei. Eu sei. Se você não me queria, porque então me namorou, me desviou? Ah, eu logo vi! Logo vi. Bem me dizia minha mãe. — Mas, Clara, ouve. Atende. Se eu te quisesse abandonar, viria te dizer? Eu não poderia ir me embora, sem nada avisar, hein? — É... É... Mas, fez Clara, abalada com a argumentação do rapazola, mas, continuou, mas não sei, eu penso que você não volta, que você vai me deixar. — Mas que interesse tinha eu em te avisar? Para que? Diz? — Não sei. Não sei. — Ouve, Clara, eu volto dentro em breve, e nós haveremos de ser felizes, vamos morar numa casinha, eu, você e tua mãe; eu me empregarei, enquanto tirar meu curso. Então... Clara, pouco a pouco assegurada, acalmou-se; o choro não lhe vinha mais, e, quando de toda sossegada, o rapazola disse-lhe: — Lava o rosto. Endireita as tuas roupas. São quase três horas e eu preciso sair. Obedecendo, Clara pôs-se a concertar o vestuário e a tirar da fisionomia os vestígios da cena que vinha de ter. Servia-se pra isso dos poucos objetos de toilette que havia no chateau e procurava o pente, quando na porta severamente bateram. — Que é? — Não sei, Clara. Eu vou ver, disse ele, abrindo a porta e saindo. — Foi um sujeito, disse ele, em breve, voltando, que, por engano, julgou que morava aqui um tal de Costa. Clara olhou-o algo desconfiada, mas de tal forma a sua fisionomia era leal, que ela continuou placidamente a pentear o cabelo. — Clara, disse o adolescente de repente, você espera aí um pouco, que eu já volto, vou aqui à Rua do Senado levar essa carta, que meu pai pediu-me que levasse e já volto. Saindo o rapazola, Clara nem sequer lembrou-se de fechar a porta, pôs-se em frente ao espelho do lavatório de ferro a dar a última mão no penteado. Quando ela punha o último grampo, ela sentiu que lhe entravam no quarto, virou-se e deu com um rapaz na sua frente: — Não se assuste, benzinho. Não se assuste. Não respondendo, Clara foi olhando o rapaz. Era alto, membrado, de testa quadrada e curta de estúpido obstinado. De repente, como se virasse um pouco, ela viu que, pelo pescoço dele, atrás da orelha, lhe saía uma mancha v rmelha, e lembrou-se logo que o havia visto. Onde? e Quando? Ah, foi na noite dos fogos, com o rapazola que ali a trouxera. E compreendeu, então, a armadilha que lhe fora armada, e nitidamente se lhe desenhou a sua situação. — Benzinho, não se espante. Sou eu, que lhe quero muito bem. O seu andar tortuoso, cambaleante, denunciava-lhe a embriaguez, e o seu olhar de crapuloso desferia chispas. Clara não sabia o que dizer, calada, olhava o rapaz em frente e recuava até a janela. O rapazola ia chegando, aborrecido com aquela resistência, começava a se enfurecer, as suas palavras não eram as mesmas, melosas, de ainda então; um vocabulário de injúrias soezes saía de sua boca. — Vá, sua negra. Deixe-se disso. Clara, aproveitando uma ocasião em que tropeçara no lavatório, empurrou a velha enxerga de ferro para o meio da sala e, de uma das guardas, suplicava: — Deixe-me, pelo amor de Deus. Deixe-me. O latagão do outro lado armava o salto para um lado e outro, no fim de engancha-la. Por fim, de um salto, agarrou-lhe pela toalha, que ela tinha ao redor do pescoço, que lhe ficou nas mãos. Enfurecido, ele corria da direita para a esquerda, atrás de Clara, saltava a cama, enganava- a, e sempre a rapariga, murmurando pedidos, escapava dos seus botes, com um seguro instinto de conservação. Por fim, já sentindo que as forças lhe iam faltar, Clara pôs-se a gritar por socorro; gritou uma, duas, três, seis vezes, ao fim das quais, violentamente empurrada, a porta do quarto se abriu, e algumas pessoas entraram e levaram os dois até o rondante e daí para a subdelegacia. O rapagão, a quem o exercício curara de algum modo a semi-embriaguez com que entrara, tomara acordo de si e, à ordem de prisão recebida, quis resistir a princípio, depois disse que iria só, não com polícia, que era estudante, filho de boa família. Afinal, tendo obedecido, os dois foram à subdelegacia. *** — Vossa Excelência compreende que a situação é delicadíssima. Eu, que o conhecia muito de nome, vendo que ele vinha à tona em semelhante coisa, parei, embaí um pouco e obtive que a coisa ficasse nisso mesmo. Entretanto, não foi tanto que os jornais não pudessem pegar, e agora, de manhã, ao lê-los, foi com surpresa que vi o nome da rapariga por extenso e o dos rapazes pelas iniciais, com o seu também desse modo, denunciando a filiação... Eu sou velho, tenho perto de sessenta anos, e nos meus tempos de rapaz essas coisas não tinham nenhum valor, eram pândegas de rapazes, muito natural na sua idade, e mesmo com o seu filho a coisa talvez não tivesse nenhuma repercussão, se não fora esse estouvado amigo dele, que, semi-ébrio, e de um comportamento abaixo de qualquer estima, se não fosse, dizia, se não fosse ter consentido que ele se introduzisse no quarto e quisesse violentar a rapariga, mas... — Senhor major, há provas contra meu filho? — Muitas. O depoimento da vítima, da mulatinha, disse ele, emendando logo, a denúncia do valentão, seu amigo, que foi preso quase em flagrante, contou a coisa por miúdo, e o encarregado da casa de cômodos, que, depondo, afirmou que desde um mês ela, a vítima, digo a mulatinha, e um rapaz, com os sinais de seu filho, se reumam ali, entretanto... — E qual é a pena que o código crimina para “isso”? — A não ser que o indiciado queira proceder casamento... — Oh! isso absolutamente não, disse ele com um imperceptível “isso”. Não se compreende que a lei obrigue a se casar gentes de situações diferentes, de cores, de educação, só porque se encontraram... —Vossa Excelência...