A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória e o reflexo progressivo de sua inteligência. E, quando esse povo, ou essa geração, desaparece da superfície da terra, com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores do tempo para anunciar às gerações futuras qual fora o caráter e a importância do povo, do qual é ela o único representante na posteridade. Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte, e diz: em tal época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do globo existia um povo cuja glória só eu a conservo, cujos heróis só eu conheço. Vós, porém, se pretendeis também conhecê-lo, consultai-me, porque eu sou o espírito desse povo e uma sombra viva do que ele foi.

Cada povo tem sua história própria, como cada homem seu caráter particular, cada árvore seu fruto específico, mas esta verdade incontestável para os primitivos povos, algumas modificações, contudo, experimenta entre aqueles cuja civilização apenas é um reflexo da civilização de outro povo. Então, como nas árvores enxertadas, vêm-se pender dos galhos de um mesmo tronco frutos de diversas espécies. E, posto que não degenerem muito, os do enxerto brotaram, contudo algumas qualidades adquirem, dependentes da natureza do tronco que lhes dá o nutrimento, as quais os distinguem dos outros frutos da mesma espécie. Em tal caso, marcham a par as duas literaturas e distinguir-se pode a indígena da estrangeira.

Em outras circunstâncias, como as águas de dois rios, que em um confluente se anexam, as duas literaturas de tal jeito se aliam que impossível é o separá-las. A Grécia, por exemplo, tinha uma literatura que lhe era própria, que lhe explica suas crenças, sua moral, seus costumes, uma literatura toda filha de suas idéias, uma literatura, enfim, toda grega.

A Europa de hoje, ou tomemos a França, ou a Inglaterra, ou a Itália, ou a Espanha, ou Portugal, apresenta o exemplo da segunda proposição. Além da literatura que lhe é própria, dessa literatura filha de sua civilização, originária do cristianismo, nós aí vemos outra literatura, que chamamos enxertada, e que não é mais do que uma lembrança da mitologia antiga e uma recordação de costumes que não são seus. E não só as duas literaturas marcham a par, como muitas vezes o mesmo poeta se vota à cultura de ambas e, como diz Tasso, falando do mágico Ismeno:

Anzi sovente in uso empio e profano
Confonde le due leggi a se mal nota.


Para prova da terceira proposição, no caso em que as literaturas de modo tal se mesclam que não é possível separá-las, vemos, na literatura romântica da Espanha, uma mistura de idéias cavalherescas e arábicas, restos da antiga civilização dos Árabes; algumas vezes ela é cristã na sua matéria, é arábica quanto à forma.

Mas não são estas as únicas modificações que entre os diversos povos experimenta a literatura; outras há que, da natureza mesmo [sic] do homem, da civilização e do progresso, dependem. Porque seja qual for a modificação que sofra a literatura, há sempre algum acordo entre ela e as circunstâncias peculiares e temporárias do povo a que pertence e da inteligência que a produz. Assim, a literatura é variável como são os séculos; semelhante ao termómetro que sobe ou desce, segundo o estado da atmosfera.

Por uma espécie de contágio, uma idéia lavra às vezes entre os homens de uma mesma época, reúne-os todos em uma mesma crença, seus pensamentos se harmonizam e para um só fim tendem. Cada época representa então uma idéia que marcha escoltada de outras que lhe são subalternas, como saturno, rodeado dos seus satélites. Essa idéia principal contém e explica as outras idéias, como as premissas do raciocínio contêm e explicam a conclusão. Essa idéia é o espírito, o pensamento mais íntimo de sua época; é a razão oculta dos fatos contemporâneos.

A literatura, abrangendo grande parte de todas as ciências e artes e, sendo elas filha e representante moral da civilização, é mister um concurso de extensos conhecimentos para se poder traçar a sua história geral ou particular e não perder-se de vista a idéia predominante do século, luminoso guia na indagação e coordenação dos fatos, sem o quê a história é de pouco valor e seu fim principal iludido.

Aplicando-se agora, especialmente ao Brasil, as primeiras questões que se nos apresentam são: qual é a origem da literatura brasileira ? Qual o seu caráter, seus progressos e que fases tem tido ? Quais os que a cultivaram e quais as circunstâncias que, em diversos tempos, favoreceram ou tolheram o seu florescimento ? É, pois, mister remontar-nos ao estado do Brasil depois do seu descobrimento e daí, pedindo conta à história - e à tradição viva dos homens - de como se passaram as coisas, seguindo a marcha do desenvolvimento intelectual e, pesquisando o espírito que a presidia, poderemos apresentar, senão acabado, ao menos um verdadeiro quadro histórico da nossa literatura.

Mas, ante de encetar a matéria, uma consideração aqui nos demora e pede o caso que a explanemos. Lugar é este de expormos as dificuldades que na execução deste trabalho encontramos. Aqueles que alguns lumes de conhecimento possuem, relativos à nossa literatura, sabem que mesquinhos e expassos [ sic] (escassos) são os documentos que sobre ela se podem consultar. Nenhum nacional, que saibamos, ocupado se tem até hoje de tal objeto. Dos estrangeiros, Bouterwech, Sismonde de Sismondi e Mr [sic] Ferdinand Dinis alguma coisa disseram. O primeiro, apenas conhecia Claudio Manuel da Costa, de quem alguns extratos apresenta; o segundo, inteiramente se pautua pelo primeiro e a menção que faz de alguns Brasileiros fora mesmo excluída do plano da sua obra sobre a Literatura do Meiodia da Europa, se nela não entrasse como um apêndice à história da literatura portuguesa. No resumo da história literária de Portugal e do Brasil, por Mr [sic] Ferdinand Dinis, posto que separadas estejam elas, e porventura mais extenso desenvolvimento ofereça a segundo, contudo basta um lance d‘olhos para ver-se que ainda está longe de ser completa, servindo apenas para dar uma idéia a estrangeiros.

Eis tudo o que sobre a literatura do Brasil se tem escrito até hoje, se só por isso nos guiássemos, na impossibilidade em que ficaríamos de nada poder acrescentar; teríamos preferido traduzir esse pouco, o que de nada serviria para a história. Empenhados em dar alguma coisa mais meritória, começamos por estudar a nossa história e, desde aí, encontramos grandes embaraços para o nosso escopo. Necessário nos foi a leitura do imenso trabalho biográfico do Abade Barbosa, para podermos achar, por acaso aqui e ali, o nome de algum Brasileiro distinto no meio desse aluvião de nomes colecionados, às vezes com bem pouca crítica. Ainda assim, convinha ler suas obras; eis aí uma quase insuperável dificuldade. Embalde por algumas delas, de que tínhamos notícia, investigamos todas as Bibliotecas de Paris, de Roma, de Florença, de Pádua e de outras principais cidades da Itália que visitamos. Foi-nos preciso contentar-nos com o que pudemos obter. Acresce mais que, dos nossos primeiros poetas, até ignoramos a época do seu nascimento que tanto apreço damos nós aos grandes homens que nos honram, desses homens cuja herança é hoje nossa única glória. Essa dificuldade já foi reconhecida pelo ilustre editor do Parnaso Brasileiro*, cujo trabalho, tão digno de louvor, muito serviu-nos. Enfim, depois de um longo e enfadonho estudo, vimo-nos quase reduzidos, sem outro guia mais que nosso próprio juízo, a ler e analisar os autores que pudemos obter, esperando que o tempo nos facilite os meios para o fim a que nos propomos.

Todos estes tralhos e obstáculos, mencionamos, não com o fito de realçar o mérito deste bosquejo, mas sim para merecer desculpa das muitas faltas e penúrias que se notem e, outrossim, para que, à vista de tal incúria e mendiguez[sic], mais zelosos sejamos em pesquisar e conservar os monumentos de nossa glória para a geração de uma futura, a fim de que nos não exprobre o nosso desmazelo e de bárbaros não nos acuse, como, com razão, o poderíamos fazer em relação aos nossos maiores.

Nós pertencemos ao futuro, como o passado nos pertence. A glória de uma Nação que existe, ou que já existiu, não é senão o reflexo da glória de seus grandes homens. De toda a antiga grandeza da pátria dos Cíceros e dos Virgílios, apenas nos restam suas imortais obras e essas ruínas que tanto atraem os olhos do estrangeiro, e, no meio das quais, a moderna Roma se levanta e se enche de orgulho. Que cada qual se convença do que diz Madame e de Staël: "a glória dos grandes homens é o patrimônio de um país livre; depois que eles morrem, todos participam dela".

O aparecimento de um grande homem é uma época para a história e, semelhante a uma jóia precisa, que só possuímos quando podemos possuí-la, o grande homem jamais se apresenta, quando o não merecemos. Ele pode existir no meio de nós sem ser conhecido, sem se conhecer a si mesmo, como o ouro nas entranhas da terra, e só espera que o desencavem para adquirir o seu valor. A incapacidade que o desconhece, o anula. Empreguemos os meios necessários e temos grandes homens. Se é verdade que a recompensa anima o trabalho, a recompensa do gênio é a glória e, segundo um belo pensamento de Madame de Staël: "o gênio no meio da sociedade é uma dor, um febre interior de que se deve tratar como verdadeira molestia, se a recompensa da glória lhe não adoça as penas".