Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação, tão mesquinha foi ela que bem parece ter sido dada por mãos avaras e pobres; contudo boa ou má dele herdou, e o confessamos, a literatura e a poesia, que chegadas a este terreno americano não perderam o seu caráter europeu. Com a poesia vieram todos os deuses do paganismo; espalharam-se pelo Brasil, e dos céus, e das florestas, e dos rios se apoderaram.

A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da castalha, o trépido sussurro do Lodon e do Ismeno, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira. Enfeitiçados por esse nume sedutor, por essa bela estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram levar por seus cânticos, e olvidaram a simples imagem que uma natureza virgem com tanta profusão lhes oferecia. Semelhante à Armida de Tasso, cuja beleza, artifícios e doces palavras atraíram e desorientaram os principais guerreiros do exército cristão de Gofredo. É rica a mitologia, são belíssimas as suas ficções, mas à força de serem repetidas e copiadas vão sensivelmente desmerecendo; além de que, como o pássaro da fábula, despimos nossas plumas para nos apavonar com velhas galas, que nos não pertencem.

Em poesia requer-se mais que tudo invenção, gênio e novidade; repetidas imitações o espírito esterilizam, como a muita arte e preceitos tolhem e sufocam o gênio. As primeiras verdades da ciência, como os mais belos ornamentos da poesia, quando a todos pertencem, a ninguém honram. O que mais dá realce e nomeada a alguns dos nossos poetas não é certamente o uso dessas sediças fábulas, mas sim outras belezas naturais, não colhidas nos livros, e que só o céu da pátria lhes inspirará. Tão grande foi a influência que sobre o engenho brasileiro exerceu a grega mitologia, transportada pelos poetas portugueses, que muitas vezes poetas brasileiros se metamorfoseiam em pastores da Arcádia, e vão apascentar seus rebanhos imaginários nas margens do Tejo e cantar à sombra das faias.

Mas há no homem um instinto oculto que o dirige a despeito dos cálculos da educação, e de tal modo o aguilhoa esse instinto que em seus atos imprime um certo caráter de necessidade, a que chamamos ordem providencial ou natureza das coisas. O homem colocado diante de um vasto mar, ou no cume de uma alta montanha, ou no meio de uma virgem e emaranhada floresta, não poderá ter por longo tempo os mesmos pensamentos, as mesmas inspirações, como se assistisse aos olímpicos jogos, ou na pacífica Arcádia habitasse. Além dessas materiais circunstâncias, variáveis nos diversos países, que muito

influem sobre a parte descritiva e caráter da paisagem poética, um elemento há sublime por sua natureza, poderoso por sua inspiração, variável, porém, quanto à sua forma, base da moral poética, que impluma as asas do gênio, que o inflama e fortifica, e ao través do mundo físico o eleva até Deus; esse elemento é a religião.

Se sobre tais pontos meditassem os primeiros poetas brasileiros, certo que logo teriam abandonado essa poesia estrangeira, que destruía a sublimidade de sua religião, paralisava-lhe o engenho, e o cegava na contemplação de uma natureza grandiosa, reduzindo-os afinal a meros imitadores. Não, eles não meditaram, nem meditar podiam; no princípio das coisas obra-se primeiro como se pode, a reflexão vem mais tarde. Acreditava-se então que mitologia e poesia era uma e a mesma coisa. O instinto, porém, e a razão mais esclarecida os foram guiando e posto que lentamente, as encanecidas montanhas da Europa se humilharam diante das sempre verdes e alterosas montanhas do Novo Mundo; a virgem homérica, semelhante à convertida esposa de Eudoro*, abraça o Cristianismo, e, neófita ainda, mal iniciada nos mistérios arcanos de sua nova religião resvala às vezes, e no enlevo da alma, no meio de seus sagrados cânticos se olvida e adormentada sonha com as graciosas mentiras que ao berço lhe embalaram. Não, ela não pode ainda, posto que naturalizada na América, esquecer-se dos sacros bosques do Parnaso, à cuja sombra se recreara desde o albor de seus anos. Dirias que ela é combatida pela moléstia da pátria, e que nos assomos da nostalgia à Grécia transportada se julga, e com seus deuses delira; saudosa moléstia que só o tempo curar pode. Mas enfim é já um passo, e praza ao céu que a conversão seja completa, e que os vindouros vates brasileiros achem no puro céu da sua pátria um sol mais brilhante que Febo, e angélicos gênios que os inspirem mais sublimes que as Piérides.

Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontraremos como se entre o fim do século passado e o nosso tempo presente ao menos um século medeara. Devido é isso a causas que ninguém ignora. Com a expiração do domínio português muito se desenvolveram as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa, e como Nação é filho dessa revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura e os cetros dos reis.

O gigante da nossa idade mandou o justo com as suas baionetas até à extremidade da Península ibérica e o neto dos Afonsos, aterrorizado como um menino, temeu que o braço vitorioso do árbitro dos reis cair fizesse sobre sua cabeça o palácio dos seus avós. Ele foge e com ele toda a sua corte; deixam o natal país, atravessam o Oceano e trazem ao solo brasileiro o aspecto novo de um rei, e os restos de uma grandeza sem brilho. Eis aqui como o Brasil deixou de ser colônia e foi depois elevado à categoria de Reino Unido. Sem a revolução francesa, que tanto esclareceu os povos, esse passo tão cedo se não daria. Com esse fato abriu-se para o Brasil uma nova série de coisas favoráveis ao seu rápido desenvolvimento, tornando-se o Rio de Janeiro a sede da Monarquia. Aqui pára a primeira época da sua história. Começa a segunda, em que, colocado o Brasil em mais larga estrada, se apresta para conquistar a liberdade e a independência, conseqüências necessárias da civilização.

Os acontecimentos notáveis da história do Brasil se apresentam neste século como espécies de contrapancadas ou ecos dos grandes fastos modernos da Europa. O primeiro, como vimos, devido foi à Revolução Francesa; o segundo à promulgação da constituição em Portugal, que apressou o regresso do rei D. João VI a Lisboa, deixando entre nós o herdeiro do trono. O Brasil já não podia então viver debaixo da tutela de uma metrópole, que de suas riquezas se nutrira, e pretendia reduzi-lo ao antigo estado colonial. A independência política tornou-se necessária; todos a desejavam, e impossível fora sufocar o grito unânime dos corações brasileiros ávidos de liberdade e de progresso. E quem pode opor-se à marcha de um povo que conhece a sua força, e firma a sua vontade? A independência foi proclamada em 1822 e reconhecida três anos depois. A Providência mostrou mais tarde que tudo não estava feito! Coisas há que se não podem prever. Em 1830 caiu do trono da França o rei que o ocupava, e no ano seguinte deu-se inesperadamente no Brasil análogo acontecimento! A coroa do Ipiranga que cingia a fronte do Príncipe português, reservado pela Providência para ir assinalar-se na terra pátria, passou à fronte de seu filho, o jovem Imperador, que fora ao nascer bafejado pelas auras americanas e pelo sol dos trópicos aquecido.

De duas distintas partes consta a história do Brasil: compreende a primeira os três séculos coloniais; e a segunda o curto período que decorre desde 1808 até os nossos dias. Examinemos agora quais são os escritores desses diversos tempos, o caráter e o progresso que mostra a nossa literatura.

No século décimo-sexto, que é o do descobrimento, nenhum escritor brasileiro existiu de que tenhamos notícia. No seguinte século alguns aparecem poetas e prosadores dos quais trataremos mais em particular em um capítulo separado, limitando-nos agora a dizer em geral que, fundando-se as primeiras povoações do Brasil debaixo dos auspícios da religião e pelos esforços dos Jesuítas, a literatura nesse século mostra instável propensão religiosa, principalmente a prosa, que toda consiste em orações sagradas.

É no século XVIII que se abre verdadeiramente a carreira literária para o Brasil, sendo a do século anterior tão minguada que apenas serve para a história. Os moços que no século passado iam à Europa colher os frutos da sapiência, traziam para o seio da pátria os germes de todas as ciências e artes; aqui benigno acolhimento achavam nos espíritos ávidos de saber. Destarte se espalhavam as luzes, posto que a estrangeiros e a livros defendido fosse o ingresso no país colonial. Os escritos franceses começaram a ser apreciados em Portugal; suas idéias se comunicaram ao Brasil; dilataram-se os horizontes à inteligência; todos os ramos da literatura foram cultivados, e homens de subida têmpera mostraram que os nascidos nos incultos sertões da América podiam dilatar seu vôo até as margens do Tejo e emparelhar com as Tágides no canto.

No começo do século atual, com as mudanças e reformas que tem experimentado o Brasil, novo aspecto apresenta a sua literatura. Uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela, ou em seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em um nova Nação, tais são os objetos que ocupam as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo interessam.

Tem-se notado, e com razão, que contrárias à poesia são as épocas revolucionárias; em tais crises a poesia, que nunca morre, só fala a linguagem enfática do entusiasmo e das paixões patrióticas, é a época dos Tirteus. Mas longe estamos por isso de amaldiçoar as revoluções que regeneram os povos; reconhecemos sua missão na história da humanidade; elas são úteis, porque meios são indispensáveis para o progresso do gênero humano, e até mesmo para o movimento e progresso literário. É verdade que quando elas agitam as sociedades, pára um pouco e desmaiar parece a cansada literatura; mas é para de novo continuar mais bela e remoçada na sua carreira; como o viajor se recolhe e repousa assustado quando negras nuvens trovejam e ameaçam a propínqua tempestade; mas finda a tormenta, continua a sua marcha, gozando da perspectiva de um céu puro e sereno, de um ar mais suave, e de um campo por fresca verdura esmaltado.

Aqui terminaremos a vista geral sobre a história da literatura do Brasil, dessa literatura sem um caráter nacional pronunciado, que a distinga da portuguesa. Antes, porém, de entrarmos na exposição e análise dos trabalhos dos nossos primeiros escritores, uma questão se levanta e requer ser aqui tratada, questão toda concernente ao país e aos seus Indígenas.