Quem não terá ouvido falar nesse lendário Vidocq, cuja legenda floreia aí pelas enciclopédias, em todos os idiomas? Iniciado na vida, quase ao abrir dela, por um furto de milhares de francos ao próprio pai, evadido logo após, errante entre vagamundos, palhaço, alistado no exército, desertor, soldado, em seguida, no estrangeiro, condenado ao açoite nas fileiras austríacas, fugitivo, realistado em França, divorciado outra vez da bandeira, outra vez aventureiro, reincorporado à linha, aí promovido a oficial, restituído então ao jogo e ao roubo, falsário, condenado como tal às galés, três vezes fugitivo e três devolvido à grilheta, cansado, por fim, da perseguição policial, e pesaroso de malbaratar na indústria do crime a longa experiência, a ciência consumada, que adquirira na batota, no lupanar e na calceta, teve, em 1809, a lembrança de oferecer a sua serventia à polícia de Bonaparte e endereçou-lhe um memorial, onde se propunha a demonstrar que, para rastrear ladrões, necessário era ter sido ladrão.
Aceitaram-lhe os préstimos, sob a condição de curtir algum tempo mais de pena, encerrado nas enxovias do cárcere de la Force. Aí, na companhia dos condenados, profundou os seus estudos na psicologia do mal, na arte do crime, no vocabulário do calão, e, posto depois desse retiro, no serviço da polícia, à frente de uma esquadra de forçados, assombrou com as suas proezas de sagacidade o vulgo e os especialistas, até que, afinal, tendo organizado ele mesmo, num rasgo de amor pela vocação primitiva, uma espantosa aventura de salteadores, que desorientou os mais finos lebréus da prefeitura de Paris, decaiu da confiança do seu chefe, que o pôs vilipendiosamente fora do cargo, dissolveu a companhia de criminosos reabilitados, e nunca mais admitiu às funções da polícia investigativa senão pessoas, que exibissem folha corrida.
Já se vê que não acabou com boas notas o ensaio do emprego de pessoas sem moralidade na moralização dos costumes sociais. O chanceler Pasquier, sob cuja administração policial, no segundo lustro do século, fora acolhido a vez primeira entre o funcionalismo da repressão aquele bandido, nos diz, nas suas Memórias, dadas a lume há poucos anos, estranhando o acesso, com que os relaxados escrúpulos do império, da restauração e da monarquia de julho elevaram a tão delicados postos de confiança um tuno de tal calibre: “Em meu tempo, não se lhe consentiria transpor o limiar da minha antecâmara, e com ele só tinha relações o chefe da secção que o utilizava. Essa confiança publicamente concedida, com tamanho despejo, a um condenado, foi de péssimo efeito, e muito contribuiu, em várias ocasiões, para desconsiderar a polícia francesa”. E o certo é que o famanaz do pilhante nunca mais logrou volver ao teatro das suas glórias oficiais. Decretada a república, em 1848, envidou ele esforços, por tornar à carreira laureada; mas Lamartine, a quem ofereceu a proficiência de príncipe dos secretas, rejeitou desenganadamente aquela parceria da autoridade com a gazua.
Essa lição devia ser a morte, para todo sempre, ao menos em matéria política e administrativa, da veleidade, que já consignavam os nossos mais velhos adágios, de fazer do ladrão fiel. Pouco importa que o nosso anexim nos esteja a dizer, há mais de trezentos anos: Queres fazer do ladrão fiel, fia-te dele. O contraste dos fatos nos dotou, mais tarde, com outros ensinamentos. A moral dos governos afastou-se das tradições desse desdém pelo asseio dos instrumentos do poder. A França, com a sua superioridade na vulgarização do mal e do bem, nos acudiu com o exemplo mais típico das decepções do sistema. E, ao cabo, a prudência humana regressou ao bom senso, melhor engastado noutro rifão popular, que os hábitos devotos de nossos maiores facetaram nesta lapidação semi-religiosa: Contas na mão, e olho no ladrão.
Eis senão quando, agora, porém, a teoria acaba de renascer, e dignificada com a coroa cívica, no parlamento brasileiro. Foi um dos nossos confrades quem relatou o caso na sua inocência, uma dessas a que a fraseologia da moda chamaria simplesmente adorável. Justificando o projeto do arrocho comercial, leu anteontem, na Câmara dos Deputados, o seu ilustre autor certo lanço de um periódico inglês, onde se argüia o Banco Alemão de ser aqui o centro da baixa: com o que declarou o orador estar do mais pleno acordo. Seria preciso não se achar na assentada o Sr. Fausto Cardoso, para lhe não ir, no mesmo ponto, com os embargos, com que foi: “E V. Ex.ª apóia o ministro, que nomeou, para dirigir o nosso primeiro estabelecimento de crédito, o diretor de um banco baixista?” — “Apóio; sim; porque, assim fazendo, usou do hábil estratagema de transformar o ladrão em fiel.”
Se fosse da nossa pena que irrompesse uma tal frase a propósito do ato do Ministério da Fazenda em relação ao Sr. Petersen, era a maior das afrontas ao banqueiro e ao secretário de estado. Mas, na boca de um amigo do Governo, será, talvez, até para agradecer. Bem se compreende a razão, que é justa. Articulada por nós a sentença, seria malefício de ironia. Decorrente de um ministerialista, é a ingênua confissão de uma intimidade, que devia ser enunciada sem ambages, para evidenciar a candura da situação. Não há de que nos escandalizarmos, quando o sentimento corre assim a froixo dos mananciais da consciência tranqüila, no cristal da mais límpida sinceridade.
A filosofia do apotegma é simples. Quer dizer apenas que, a respeito de cada vício, a incumbência da sua eliminação há de cometer-se a ele mesmo. Não será o que nos ensina, em Bacteriologia, a noção dos micróbios e toxinas? Não será o que se pratica em homeopatia, segundo o lema terapêutico de cura de cada enfermidade pelo agente que a produziria? Nada mais científico, nem mais hahnemannico. Qual é a doença reinante? Bubões. Logo, Tarantula cubensis. Porque a mordedura desse aracnídeo gera sintomas de peste. Logo, a previne. Logo, há de curá-la. Agora, na Bolsa, qual é a praga? Especulação. Agiotagem. Baixa. Logo, baixista. Logo, agiota. Logo, especulador. Logo, o diretor do Banco Alemão.
Muito bem. Apliquemos o princípio. Corrompe-se a administração? Ponhamos-lhe à testa um corrompido. Venalizou-se a municipalidade? Chamemos de Nova York, para inaugurar a reforma, o chefe de Tammany Hall. Quer-se fidelidade nas funções fiscais? Instale-se no sistema tributário do país a delação. Vai escasseando a moeda até para a paga das tropas? Queime-se dinheiro. Há desvios na metade feminina da espécie? Entregue-se a Taís a direção dos internatos. Vai feio o contrabando? Sejam providos na superintendência aduaneira os melhores contrabandistas. Assanham-se os larápios? Confie-se a polícia ao insigne Afonso Coelho.
Grande caleidoscópio de surpresas a cena financeira. Do individualismo spencerista passamos, de um salto, ao socialismo ultramoscovita. Agora de um fiscalismo implacável nos atiramos ao vidocquismo. Permitam-nos batizar assim, com o nome que a sua associação histórica lhe dá, a moral política do ladrão convertido em fiel. Quando se erigir o herôon da nossa época, alvitramos que esta seja a inscrição do monumento.