— Esta é, senhores, a verdadeira história da minha tragédia. Julgai agora se os suspiros e palavras que ouvistes e as minhas lágrimas, não eram ainda menos do que deveram. Pesando bem a minha desgraça, reconhecereis que por demais vos fora o tentar-lhe consolações; é mal já agora sem remédio. O que só vos peço, e com facilidade me podereis fazer, é aconselhardes-me onde poderei passar a vida, antes que de mim dê cabo o temor de ser achada pelos que me andam procurando. Eu sei, verdade seja, que o muito amor que meus pais me têm me afiançava da sua parte muito bom acolhimento; mas tamanha é a vergonha que de mim se apossa, ao pensar que lhes hei-de aparecer tão diferente do que eles esperavam, que por melhor tenho desterrar-me para sempre da sua vista, que torná-los a ver, lembrando-me que eles ao encarar-me estão sofrendo no interior pensamentos tão alheios da honestidade que de minha parte deviam esperar.
Calou-se aqui, e se lhe cobriu o rosto de uma cor, que bem claramente mostrava o sentimento e quebranto do seu ânimo. Tanta lástima excitou nos ouvintes, como admiração por tão porfiosa desgraça.
O cura quis logo tentar-lhe consolações e conselhos, mas antecipou-se-lhe Cardênio, dizendo:
— Com que, senhora, sois então vós a formosa Dorotéia, a filha única do rico Clenardo?
Admirada ficou Dorotéia quando ouviu o nome de seu pai, e reparou no somenos que era quem lho proferia (já está sabido o maltrapilho que ele andava) e disse-lhe:
— E vós quem sois, irmão, que assim sabeis o nome de meu pai? porque eu até agora, se bem me lembro, nunca na minha narrativa o nomeei.
— Sou — respondeu Cardênio — aquele sem ventura, que, segundo vós, senhora, aí dissestes, Lucinda declarou ser seu esposo; sou o desditado Cardênio, a quem a perfídia do mesmo de quem também sois vítima reduziu a este estado que vedes, roto, nu, falto de todo o conforto humano, e, o que é ainda pior, falto do juízo, pois só o tenho quando nalguns breves intervalos o céu se lembra de mo emprestar. Sou, sou eu, Dorotéia, aquele que se achou presente às infâmias de D. Fernando, e se deteve aguardando o sim de Lucinda; sou o que não teve ânimo para esperar o desfecho do desmaio dela e aguardar o que resultaria do papel que lhe acharam no seio. Faltou-me valor para tanto padecimento junto; fugi da casa descorçoado, deixei a um hospedeiro meu uma carta a Lucinda para lhe ser entregue, e corri para estas soledades determinado em acabar nelas a existência, que desde aquele instante fiquei aborrecendo como inimiga mortal. Não aprouve porem à sorte livrar-me dela; contentou-se com tirar-me o juízo; foi talvez a sua idéia que eu sobrevivesse para a boa ventura que hoje tive em dar convosco, pois, sendo verdade, como acredito, o que nos haveis contado, ainda não era impossível, que a ambos nós nos reservasse Deus melhor êxito nos nossos desastres, do que nós supomos; porquanto, não podendo Lucinda casar com D. Fernando por ser minha, nem D. Fernando com ela por ser vosso, tendo ela manifestado tão solenemente a verdade, bem podemos esperar que a Providência nos restitua ainda o que nos pertence por direito incontroverso. Uma vez que temos esta luz no futuro, e esta esperança não remota, nem fundada em quimeras, suplico-vos, senhora, que mais acertadamente se encaminhem os vossos honrados pensamentos; outro tanto farei eu da minha parte; sujeito-me a esperar por melhor fortuna. À fé de cavaleiro e cristão vos juro não vos desamparar enquanto vos não veja em poder de D. Fernando; juro mais, que, se com razões o não puder trazer ao conhecimento do que vos deve, usarei então da licença que me dá o ser cavalheiro, e poder com justo motivo desafiá-lo pela sem-razão que vos faz, sem me lembrar então dos meus agravos particulares, cuja vingança deixarei por conta do céu; na terra só os vossos me importam.
Com o que a Cardênio ouviu, acabou Dorotéia de se maravilhar, e por não atinar com agradecer tamanhos oferecimentos, quis beijar-lhe os pés, no que ele não consentiu.
Respondeu entre ambos o licenciado, e aprovou a boa resolução de Cardênio; sobretudo lhes rogou, aconselhou, e persuadiu que se fossem com ele à sua aldeia, onde se poderiam refazer de todo o necessário, e depois se entenderia no procurar a D. Fernando, ou no levar-se Dorotéia a seus pais, ou no que mais conveniente parecesse. Agradeceram-lhe Cardênio e Dorotéia, e lhe aceitaram o prometido favor.
O barbeiro, que a tudo tinha estado suspenso e silencioso, fez também a sua boa prática, e se ofereceu, com tão boa vontade como o cura, para tudo em que os pudesse servir. Contou em breves termos a causa que os ali trouxera, e bem assim a estranha loucura de D. Quixote, acrescentando que estavam esperando pelo escudeiro, que tinha ido à sua procura.
Deslizou na memória a Cardênio, como por sonhos, a pendência que entre ele e D. Quixote houvera, e contou-a aos circunstantes; mas o que não atinou a explicar foi o peguilho da desavença.
Nisto ouviram vozes, e conheceram serem de Sancho Pança, o qual, por não ter achado o cura e o barbeiro onde os deixara, vinha dando aqueles apupos de chamamento. Saíram-lhe ao encontro; e, perguntando-lhe por D. Quixote, Sancho lhes disse como o encontrara em fralda de camisa, fraco, amarelo, morto de fome e suspirando pela sua senhora Dulcinéia; e, apesar dele Sancho ter dito que lhe mandava ela que saísse donde estava, e se fosse a Toboso, onde ela o ficava esperando, a sua resposta fora que estava firme em não aparecer perante a sua formosura, sem primeiro ter feito façanhas que o tornassem merecedor da sua graça; que, se tal cisma fosse por diante, corria perigo de não chegar a Imperador, como estava obrigado, nem sequer a Arcebispo, que era o menos que poderia ser; e portanto vissem o que se podia fazer para o desencovarem dali.
Respondeu-lhe o licenciado que se não afligisse, que eles, bom ou mau grado, o fariam sair. Contou logo a Cardênio e a Dorotéia o que haviam ideado para remédio de D. Quixote, pelo menos para o restituírem a sua casa.
Dorotéia acudiu logo, dizendo que ela representaria a donzela necessitada melhor que o barbeiro, até porque tinha ali vestidos para fazer esse papel mui ao natural, e deixassem por sua conta o representar a contento tudo que fosse preciso para se levar avante o empenho, pois ela era muito lida em livros de cavalarias, e sabia perfeitamente o falar das donzelas penadas, quando suplicavam dons aos andantes cavaleiros.
— Belo! nada mais é preciso — disse o cura; — é pormos já isso em obra. Não há dúvida, tenho por mim a sorte, pois, quando menos o pensávamos, se vos começa a abrir caminho para vosso remédio, meus senhores, e a nós também para se efetuar o nosso empenho.
Dorotéia tirou logo da trouxa uma saia inteira de telilha rica, e uma mantilha de outra vistosa fazenda verde; e de um cofrezinho um colar e outras jóias; com o que repentinamente se adornou, por modo que não parecia senão uma grande e opulenta dama. Disse que tudo aquilo tinha ela trazido de sua casa para o que desse e viesse, e que nunca até ali se lhe tinha oferecido necessidade de o empregar.
A todos encantou a sua muita graça, donaire e gentileza, inteirados unanimemente da falta de gosto de D. Fernando, que tantos primores desprezava; mas quem mais se admirou foi Sancho Pança, por lhe parecer (o que era verdade), que nunca em dias de vida tinha visto perfeição igual, e perguntou ao cura quem vinha a ser aquela tão garbosa senhora, e que andaria ela buscando por aqueles andurriais.
— Esta formosa senhora — respondeu o cura — é, Sancho irmão, sem tirar nem pôr, a herdeira por linha reta de varão do grande reino de Micomicão, a qual vem à procura de vosso amo para lhe pedir um dom, que vem a ser: desfazer-lhe um torto e agravo que um malvado gigante lhe fez; e, em conseqüência da fama de bom cavaleiro que vosso amo já ganhou por todo o mundo, veio de Guiné com o empenho de o achar.
— Ditosa busca e ditoso achado! — exclamou Sancho Pança — principalmente se meu amo houver a boa sorte de desfazer esse tal agravo e endireitar esse torto, matando o excomungado gigante que Vossa Mercê diz, que à fé que o há-de matar, se o encontra, salvo se for fantasma, que lá contra fantasmas não tem meu amo poder algum. Mas uma coisa, além de outras, quero eu agora suplicar a Vossa Mercê, senhor licenciado; e vem a ser que empregue quantos meios puder para que a meu amo se não encaixe na cabeça o ser Arcebispo, que é de que eu tenho medo, e por isso lhe aconselhe casar-se logo com esta Princesa; assim fica impossibilitado de receber ordens arcebispais, e com facilidade chegará a Imperador e eu ao cabo do meu empenho. Já tenho meditado isto com a devida atenção, e cá pelas minhas contas não me convém que meu amo seja Arcebispo, porque eu para a Igreja não sirvo; sou casado; e andar agora a diligenciar dispensas para poder receber rendas eclesiásticas, tendo, como tenho, mulher e filhos, seria um nunca acabar; e portanto, senhor, o fino é que meu amo se receba o mais depressa que se possa com esta senhora, da qual por ora não sei a sua graça, pelo que a não chamo pelo seu nome.
— Chama-se — respondeu o cura — a Princesa Micomicadela, porque, chamando-se o seu reino Micomicão, claro está que ela se deve chamar assim.
— Está visto — respondeu Sancho — de muitos sei eu, que têm tomado o apelido e alcunha do lugar onde nasceram; por exemplo: Pedro de Alcalá, João de Ubeda e Diogo de Valhadolid; também se deve usar lá em Guiné as Rainhas tomarem o nome dos seus reinos.
— Por força — disse o cura — e enquanto ao casar-se o vosso amo, eu farei tudo que puder.
Do que Sancho ficou tão contente, como o cura pasmado da simpleza dele, e de ver como tinha embutidos nos cascos não menores despautérios que o patrão, pois nenhuma dúvida punha em que viria a ser Imperador.
Já Dorotéia estava sentada na mula do cura, o barbeiro com a barba de rabo de boi; e disseram a Sancho que os encaminhasse para onde seu amo se achava, recomendando-lhe que não deixasse conhecer a D. Quixote nem o licenciado nem o barbeiro, porque em os não conhecer ele é que estava o busílis de vir o fidalgo a ser Imperador.
Nem o cura nem Cardênio quiseram acompanhar o rancho, para que D. Quixote se não recordasse das testilhas que tivera com o desvairado moço; a presença do cura também não era necessária. Deixaram pois ir adiante as principais figuras, e os dois foram seguindo a pé e com o seu vagar.
Ao apartarem-se ali, recordando o cura a Dorotéia o que havia de fazer, respondeu-lhe ela que disso perdesse todo o cuidado, que tudo faria, ponto por ponto, como o pediam e pintavam os livros de cavalaria.
Três quartos de légua teriam andado, quando descobriram a D. Quixote entre umas intrincadas penhas, já vestido, mas ainda não armado. Assim que Dorotéia o avistou, e soube de Sancho ser o próprio, fustigou com o chicote o seu palafrém, seguindo-a o bem barbado barbeiro. Ao chegarem ao pé, atirou-se o improvisado escudeiro abaixo da mula, e foi para tomar nos braços a Dorotéia, a qual, apeando-se com grande desembaraço, se foi lançar de joelhos às plantas de D. Quixote. Forcejava ele para erguê-la; ela porém, sem consentir em levantar-se, lhe falou desta maneira:
— Não me levantarei daqui, ó valoroso cavaleiro, até que a vossa cortesia me não tenha outorgado um dom, que redundará em crédito de vossa pessoa, e em proveito da mais desconsolada donzela que o sol nunca viu. Se o valor do vosso forte braço se iguala à vossa imortal fama, obrigação vos corre de favorecer à sem ventura, que de tão longes terras vem, ao cheiro do vosso famoso nome, buscar-vos para reparo das suas desditas.
— Não vos responderei palavra, formosa senhora — replicou D. Quixote — nem ouvirei mais nada da vossa pretensão, sem que primeiro vos levanteis.
— Não me levantarei, senhor — respondeu a afligida donzela — antes que a vossa cortesia me outorgue o favor pedido.
— Eu vo-lo outorgo e concedo — respondeu D. Quixote — contanto que se não haja de cumprir em detrimento e ofensa do meu Rei, da minha pátria, e daquela que do meu coração e liberdade tem as chaves.
— Não será em prejuízo dos que dizeis, meu bom senhor — replicou a dolorida donzela.
Quando nisto iam, chegou-se Sancho ao ouvido de seu amo, e lhe disse em voz sumida:
— Bem pode Vossa Mercê, senhor meu, conceder-lhe o favor que ela pede, que é uma coisita de nonada; é só matar a um mandrião dum gigante; e a que lhe pede é a alta Princesa Micomicadela, Rainha do grande reino Micomicão da Etiópia.
— Seja quem for — respondeu D. Quixote — cumprirei o que sou obrigado e o que me dita a consciência, segundo o que professado tenho.
E, tornando-se à donzela, continuou:
— Levante-se a vossa grande formosura, que eu já daqui lhe concedo o que lhe aprouver pedir-me.
— O que peço é — disse a donzela — que a vossa magnânima pessoa venha logo comigo onde eu o levar, e me prometa não se intrometer em outra aventura nem requesta alguma antes de me dar vingança dum traidor que, contra todo o direito divino e humano, me tem usurpado o reino que era meu.
— Outorgado — respondeu D. Quixote — e assim podeis, senhora, perder de hoje para sempre a melancolia que vos fatiga, e fazer que a vossa esmorecida esperança recobre novos brios e força, que com a ajuda de Deus, e a do meu braço, cedo vos vereis restituída ao vosso reino, e sentada no trono do vosso vasto e antigo estado, apesar e despeito de quantos velhacos vos pretenderem empecer; e mãos à obra, que bem se diz que no tardar costuma estar o perigo.
A necessitada donzela forcejou quanto pôde por lhe beijar as mãos; mas D. Quixote, que em tudo era comedido e cortês cavaleiro, de sorte nenhuma o consentiu, antes a fez levantar, e abraçou com muita cortesia e acatamento, e ordenou a Sancho que aparelhasse Rocinante, e o armasse logo num repente.
Sancho despendurou as armas, que se achavam como troféu, pendentes duma árvore, e, ensilhando o cavalo, num volver de olhos pôs o amo prestes. Este, vendo-se pronto, disse:
— Vamo-nos daqui em nome de Deus a favorecer esta grande senhora.
De joelhos estava ainda o barbeiro, tendo grande conta em disfarçar o riso e em que lhe não caísse a barba, que se lhe cai talvez se lhe malograsse tudo; mas, vendo já conseguido o seguro e bom despacho, e a diligência de D. Quixote para o ir pôr em obra, levantou-se, tomou a mão da sua senhora, e, ajudado do cavaleiro, a subiu para a mula. D. Quixote montou logo no Rocinante, o barbeiro na sua cavalgadura, ficando Sancho a pé, renovando-se-lhe as saudades do seu ruço, pela falta que lhe fazia. Entretanto levava tudo com gosto, por lhe parecer que o amo estava em caminho, e muito em vésperas de ser Imperador, porque já dava por infalível que breve o veria matrimoniado com aquela Princesa, e, pelo menos, Rei de Micomicão. O que só lhe pesava era pensar que o reino de Micomicão era em terra de negros, e que os seus vassalos haviam-de ser todos pretaria. Para isso imaginou logo um bom remédio, e disse com os seus botões:
— Que se me dá a mim que os meus vassalos sejam pretos? não há mais que embarcá-los, trazê-los a Espanha, e vendê-los com paga à vista; com esse dinheiro posso comprar algum título ou algum ofício para passar descansado o resto da vida. A gente não há-de ser tola; e para conveniência própria não pode ser proibido vender trinta ou dez mil vassalos sem mais nem menos, e enquanto o diabo esfrega um olho. Voto a Deus que os hei-de encampar todos à rasa, pequenos e grandes, ou o melhor que eu puder, e, por mais pretos que sejam, os saberei transformar em brancos ou amarelos. Venham eles, e verão como os avio.
Com isto andava tão ativo e contente, que nem já lhe lembrava que ia a pé.
Tudo aquilo observavam dentre as sombras dumas moitas Cardênio e o cura, e não sabiam que fazer para se agregarem ao rancho. Porém o cura, que as armava no ar, ideou logo expediente. Com uma tesoura, que trazia num estojo, cortou as barbas a Cardênio, emprestou-lhe o seu capotinho pardo e um ferragoulo preto, ficando ele em calças e gibão; com o que tão transfigurado saiu o nosso Cardênio, que nem vendo-se a um espelho se reconheceria.
Concluído este preparo, tendo os outros passado já para diante enquanto eles se disfarçavam, com facilidade saíram primeiro que eles à estrada real, porque o mau piso e as agruras daqueles lugares não deixavam apressar-se tanto os cavaleiros como os peões.
De feito estes últimos chegaram à planície no sopé da serra, por modo que, ao sair dela D. Quixote e os seus companheiros, o cura se pôs a encarar nele muito atento, dando sinais de que o estava reconhecendo, e, depois de estar assim irresoluto por um bom espaço, correu para ele de braços abertos, dizendo a brados:
— Bem aparecido seja o espelho da cavalaria, o meu bom compatriota D. Quixote de la Mancha, a flor e a nata da gentileza, o amparo e remédio dos necessitados, a quinta essência dos cavaleiros andantes!
E, dizendo isto, o abraçava pelo joelho esquerdo.
D. Quixote, espantado do que via e ouvia àquele homem, encarou nele com atenção, conheceu-o enfim, e ficou a modo maravilhado do encontro, fazendo grande diligência por se apear. Não lho consentiu o cura. D. Quixote teimava, dizendo:
— Deixe-me Vossa Mercê, senhor licenciado, que não é justo estar eu a cavalo, e uma tão reverenda pessoa como Vossa Mercê a pé.
— Não consinto de modo algum — disse o cura; — esteja Vossa Grandeza a cavalo, pois a cavalo é que ultima as maiores façanhas e aventuras que nesta idade se têm visto, que a mim, posto que indigno sacerdote, bastar-me-á montar na anca duma destas mulas destes senhores, que vêm na companhia de Vossa Mercê, se mo não levam a mal; até farei de conta que vou encavalgando no Pégaso, ou sobre a zebra ou alfana em que montava aquele famoso mouro Musaraque, que ainda até hoje jaz encantado na grande costa Zulema, pouco distante da grande Compluto.
— Lembra bem, senhor licenciado, e nem tal coisa me ocorria — respondeu D. Quixote; — mas eu sei que a minha senhora Princesa será servida, por amor de mim, mandar ao seu escudeiro que ceda a Vossa Mercê a sela da sua mula; e ele lá arranjará nas ancas, se ela as dá.
— Dá, dá, penso que sim — disse a Princesa — e penso também que não é preciso mandar eu tal ao senhor meu escudeiro, que ele é tão polido e cortesão, que não há-de consentir que uma pessoa eclesiástica vá a pé podendo ir a cavaio.
— Assim é — respondeu o barbeiro.
E, apeando-se logo, ofereceu ao cura a sela, que ele aceitou sem se fazer muito rogado. O mau foi que ao subir o barbeiro para as ancas, a mula, que era de alquiler (para encarecer que era má não é preciso mais), alçou um pouco os quartos traseiros, e deu dois coices no ar, que a dá-los no peito do mestre Nicolau, ou na cabeça, ao diabo dera ele o ter saído de sua casa por via de D. Quixote. Tão forte lhe foi contudo o sobressalto, que se estatelou no chão com tão pouco cuidado nas barbas, que lhe caíram. Vendo-se sem elas, não teve outro remédio senão acudir a tapar o rosto com as mãos ambas, e a vozear que lhe tinham deitado fora os queixais.
D. Quixote, reparando naquele molho de barbas sem a respectiva queixada e sem sangue, desquitadas do rosto do dono caído, disse:
— À fé que temos milagre de marca maior! barbas tiradas como por mão!
O cura, que viu a sua invenção em perigo de ser descoberta, agarrou nas barbas, e as trouxe ao mestre, que estava ainda aos gritos; e, tomando-lhe de repente a cabeça, e encostando-a ao peito, lhas repôs, murmurando-lhe em cima umas palavras, que disse serem de virtude para pegar barbas, como se ia ver. Logo que teve a operação finda, apartou-se, deixando o escudeiro tão bem barbado e tão são como dantes: do que D. Quixote sobremaneira se admirou, e pediu ao cura que em tendo lugar lhe ensinasse aquele curativo, porque provavelmente não havia de servir só para pegar barbas. A razão era clara: donde as barbas se arrancavam havia de ficar a carne numa lástima, e que tendo ficado ali tudo são, é porque o remédio sarava tudo.
— E sara — disse o cura — e prometo ensinar-lho na primeira ocasião.
Combinaram em que por então montasse o padre, e que dali até à venda se fossem os três revezando; era caminho de duas léguas.
Postos os três a cavalo, a saber D. Quixote, a Princesa e o cura, seguindo os três a pé, Cardênio, o barbeiro, e Sancho Pança, disse D. Quixote para a donzela:
— Vossa Grandeza, senhora minha, que nos encaminhe por onde mais lhe apetecer.
Adiantou-se com a resposta o licenciado, dizendo:
— Para que reino quer Vossa Senhoria que tomemos? será para o de Micomicão? é natural que sim, ou pouco sei de reinos.
Ela, que estava por tudo, respondeu:
— Sim, senhor; para esse reino é que é o meu caminho.
— Portanto — disse o cura — temos de passar por dentro do meu povo, e dali tomará Vossa Mercê a derrota de Cartagena, onde com favor de Deus se poderá embarcar. Se o vento for de feição, o mar sossegado e sem temporais, em pouco menos de nove anos se poderá estar à vista da grande lagoa Meona, digo Meotides, que fica um pouco mais de cem jornadas para cá do reino de Vossa Grandeza.
— Vossa Mercê está enganado, senhor meu — disse ela — porque não há dois anos que eu de lá parti; e em verdade que nunca tive bom tempo, e contudo isso já cheguei a ver quem tanto desejava, que é o senhor D. Quixote de la Mancha, cujas novas me encheram os ouvidos logo que pus pés em Espanha; e foram elas as que me decidiram a procurá-lo para me encomendar à sua cortesia, e fiar a minha justiça do valor do seu invencível braço.
— Basta de louvores — disse D. Quixote; sou inimigo de todo o gênero de adulações; e ainda que esta agora o não seja, sempre ofendem os meus ouvidos semelhantes práticas. O que eu sei dizer-vos, senhora minha, é que, tenha eu valor ou não, o que tiver, ou não tiver, todo o hei-de empregar em vosso serviço até perder a vida; e assim, deixando isso para seu tempo, rogo ao senhor licenciado me diga: que o obrigou a vir a estas terras, tão só, sem criados, e tanto à ligeira, que me causa admiração?
— Em poucas palavras o satisfarei a Vossa Mercê — respondeu o cura. — Eu e o mestre Nicolau, nosso amigo e nosso barbeiro, íamos a Sevilha, a cobrarmos certo dinheiro remetido por um parente meu, que se passou às Índias há já anos (e não tão pouco que não excedesse de mil pesos e tocadinhos, que vale o dobro). Passando ontem por estes lugares, saíram-nos ao encontro quatro salteadores e nos tiraram até as barbas. Foi tanto, que até o barbeiro não teve remédio senão pôr umas postiças; e até a este mancebo que vem conosco (apontando Cardênio) o puseram como se nunca as tivesse tido. O bonito é que por todos estes contornos é fama pública serem os tais ladrões uns forçados das galés, que, segundo se diz, foram libertados quase neste mesmo sítio por um homem tão valente, que a despeito do comissário e dos guardas os soltou a todos. Não há dúvida que era doido, ou então tão patife como eles, homem sem alma nem consciência. Pois aquilo não foi soltar o lobo entre as ovelhas? a raposa entre as galinhas? a mosca no mel? Quis defraudar a justiça, ir contra o seu Rei e Senhor natural, pois foi contra os seus justos preceitos. Quis tirar às galés os pés com que elas andam, pôr em reboliço a Santa Irmandade, que havia muitos anos estava em descanso; quis, finalmente, consumar um feito, por onde a sua alma se perde, e o corpo se lhe não ganha.
Sancho é que tinha contado ao cura e ao barbeiro a aventura dos galeotes, que o amo levara a cabo com tanta glória; e por isso o cura ao recontá-la lhe carregava tanto a mão, para ver o que faria ou diria D. Quixote, a quem, a cada palavra, se mudavam as cores, sem se atrever a dizer que fora ele próprio o libertador daquela boa gente.
— Ora aqui tem Vossa Mercê quem nos roubou — disse o cura. — Deus por sua misericórdia não tome contas a quem os não deixou levar o devido castigol