I
Pariz e Londres — O anniversario da Communa — Flaubert
Eu não direi como Lord Beaconsfield que «no mundo só ha de verdadeiramente interessante Pariz e Londres, e todo o resto é paizagem». É realmente difficil considerar Roma como um ninho balouçando-se no ramo de um ulmeiro, ou vêr apenas no movimento social da Allemanha um fresco regato que vae cantando por entre as relvas altas.
Não se póde negar, porém, que a multidão contemporanea tende para esta opinião do romanesco auctor de Tancredo e da Guerra do Afganistan: nada vê no Universo mais digno de ser estudado e gozado do que a sociedade, essa cousa scintillante e vaga que póde comprehender desde as creações da Arte até aos menus dos restaurantes, desde o espirito das gazetas até ao luxo das librés — e, muito racionalmente, corre a observar a sociedade, a penetrar-se d’ella, onde ella é mais original, mais complexa, mais rica, mais pittoresca, mais episodica, — em Pariz e em Londres: ao resto da terra pede apenas scenarios de natureza, reliquias d’arte, trajos e architecturas...
...Em Roma contempla os ornamentos do passado — o Colyseu e o Papa; em Madrid interessam-n’o só os Velasquez e os touros; ninguem viaja na Suissa para estudar a constituição federal ou a sociedade de Genebra, mas para embasbacar deante dos Alpes. E assim para a turba humana, mais impressionavel que critica, o mundo apparece como uma decoração armada em torno de Pariz e Londres, uma curiosidade scenographica que se olha um momento, fixando-se logo toda a attenção na tragi-comedia social que palpita ao centro.
Isto é uma superstição. Mas se, realmente, o mundo fôsse apenas uma paizagem accessoria — a devoção burgueza por Pariz e Londres, residencias privilegiadas da humanidade creadora, seria justificavel: porque, na verdade, o interesse do Universo está todo na vida e na sua lucta, na sua paixão e no seu ceremonial, no seu ideal e no seu real. O sol, nascendo por traz das Pyramides, sobre o fulvo deserto da Lybia, fórma um prodigioso scenario; o Valle do Chaos, nos Pyreneos, é d’uma grandeza exuberante; — mas todos estes espectaculos hão-de ser sempre infinitamente menos interessantes que uma simples comedia de ciumes, passada n’um quinto andar. Que ha com effeito de commum entre mim e o Monte Branco? Emquanto que as alegrias amorosas do meu visinho ou os prantos do seu luto são como a consciencia visivel das minhas proprias sensações.
O grande Dickens, deante dos Alpes ou dos palacios de Veneza, punha-se a pensar com saudade nas tristes ruas de Londres, n’um rumor de fim de dia, e no prazer de surprehender as expressões de anciedade, triumpho ou dôr, nas faces dos que passam, alumiados pelo gaz vivo das lojas. É que o melhor espectaculo para o homem — será sempre o proprio homem.
Se sobre a terra só houvesse fachadas de cathedraes ou vulcões flammejantes, a terra parecernos-ia tão insípida como a lua, ou (ainda que isto seja talvez exagerado) como a propria Lisboa. Por mais cantantes que sejam as aguas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o valle — a paizagem é intoleravel, se lhe falta a nota humana, fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença d’um peito, d’um coração vivo.
Mas a verdade é que, fóra de Pariz e Londres, ha tambem humanidade. S. Petersburgo não fórma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não é uma floresta com uma população de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa mesmo se encontra, de vez em quando, um homem. Que importa! O mundo persiste, em considerar essa humanidade de Berlim, de Lisboa ou S. Petersburgo como um méro accessorio da decoração, como aquelle arabesinho diminuto que os photographos collocam sempre á base das ruinas de Palmyra, ou como esses pastores vestidos de um farrapo de purpura, que nos quadros do seculo XVII ornam as paizagens ideaes.
O que essa humanidade de provincia faz, diz, soffre ou goza — é-lhe indifferente. Não é a ella que vae vêr, se visita os logares que ella habita: o que lá lhe move a curiosidade apressada, é algum monumento, algum panorama — a paizagem, como diz Lord Beaconsfield. Para o estrangeiro, Portugal é Cintra, a Allemanha é o Rheno: até mesmo na ideia de Lord Byron, e de outros depois d’elle, o que estraga a belleza de Lisboa é a presença do lisboeta — como a mim o que me estraga a Allemanha é a presença do prussiano. Positivamente a multidão só reconhece uma sociedade — a de Pariz e de Londres.
Mas, dentro em pouco, nem ruinas, nem monumentos haverá dignos de viagem; cada cidade, cada nação, se está esforçando por aniquilar a sua originalidade tradicional, e nas maneiras e nos edificios, desde os regulamentos de policia até á vitrine dos joalheiros, dar-se a linha parisiense. No Cairo, cidade dos califas, ha copias do Mabille, e os Ulemas esquecem as metaphoras gentis dos poetas persas, para repetir os ditos do Figaro; o primeiro som que ouvi ao penetrar as muralhas de Jerusalem foi o can-can de Bella Helena, e sahiu da habitação de um rabbi, de um doutor da lei santa; nas margens do Jordão, sobre a areia dourada, que os pés de Jesus pisaram, achei dous velhos collarinhos de papel, modelo Smith: bem sei que não pertenciam nem ao Salvador, nem ao Precursor, mas lá estavam, e despoetisam sufficientemente aquella riba sagrada.
O mundo vae-se tornando uma contrafacção universal do Boulevard e da Regen-street. E o modelo das duas cidades é tão invasor que, quanto mais uma raça se desoriginalisa, e se curva á moda francesa ou britannica, mais se considera a si mesma civilisada e merecedora dos applausos do Times. O japonez julga-se, na escala dos sêres, muito superior ao chinez, porque em Yedo já o indigena se penteia como o tenor Capoul, e lê Edmond About no original, emquanto que a China, obsoleta nas vetustas ruas de Pekin, ainda vae no rabicho e em Confucio. E, ainda assim, nas margens do Amor já ha fabricas de tecidos de algodão como em Manchester.
Positivamente, inclino tambem para a ideia de Lord Beaconsfield: a originalidade viva do Universo está em Pariz e em Londres: tudo mais é má imitação da provincia. Por isso a curiosidade publica é impellida para lá — dando ao resto do mundo apenas aquelle olhar rapido que se tem para o fundo dos retratos, onde verdejam vagos de paizagem ou se perfilam linhas de um portico.
É por isso que ninguem que tenha o orgulho de se considerar sêr racional prescinde de se informar diariamente de tudo que se passa em Pariz ou em Londres, desde as revoluções até ás toilettes, desde os poemas até aos escandalos.
O desejo mais natural do homem é saber o que vae no seu bairro e em Pariz.
Que importa o que succede na Asia Central, onde os russos se batem, ou na Australia onde ha crise ministerial? O que se quer saber é o que fez hontem Gambetta, ou o que dirá amanhã o professor Tyndall.
E com razão: a Asia Central e a Australia não ensinam nada, e Pariz e Londres ensinam tudo.
Tendo assim sacrificado sufficientemente á regra, que quer que todo o escriptor da raça latina nunca enuncie a sua ideia ou conte o seu facto sem se fazer preceder de phrases genéricas armadas em portico — creio que devo começar esta chronica fallando hoje de Pariz, capital dos povos e patria genuina de Mr. Prudhomme...
O acontecimento saliente e commentado d’estes ultimos dias é a manifestação do dia 23 de maio. Lembram-se que ha nove annos, n’essa data, na semana sanguinolenta da derrota da Communa, os regimentos de Versailles, invadindo Pariz, n’uma demencia de represalias, fizeram uma exterminação á antiga, fuzilando sem discernimento pelos pateos dos quarteis, entre os tumulos dos cemiterios, sob o portico das egrejas, todo o sêr vivo que era surprehendido com as mãos negras de polvora, e um calôr de batalha na face.
Trinta e cinco mil pessoas fôram aniquiladas n’esta S. Barthelemy conservadora, n’esta hecatombe da plebe, offerecida em sacrificio á ordem com o delirio com que o rei de Dahomey decapita tribus inteiras em honra do idolo Gri-gri, ou os carthaginezes immolavam uma mocidade, toda uma primavera sagrada, para applacar o mais cruel dos Baals, o negro e flammejante Moloch.
Onde fôram sepultados tantos montões de cadaveres?... Apenas se sabe que parte foi arremessada á valla commum de Père-Lachaise.
Os annos passaram, e os vencidos d’então são hoje cidadãos formidaveis, armados não da espingarda revolucionaria, mas de um legal boletim de voto, e que, em logar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições.
No dia 23 de maio, pois, anniversario do exterminio dos seus, preparavam-se elles para ir atravez das ruas de Pariz, n’uma vasta procissão funeraria, com coroas de perpetuas na mão, visitar essa lugubre valla onde apodrecem os seus mortos.
O governo do snr. Grevy, porém, inquietou-se com este ceremonial, e, ou promettendo concessões ao velho mundo communard a troco da desistencia d’esta pompa funebre (tão parecida com uma commemoração triumphal) ou ameaçando mandar carregar 20.000 homens contra o prestito e fazer assim recahir sobre os chefes da manifestação a responsabilidade de um conflicto sangrento — conseguiu que n’esse dia a massa communista ficasse chorando os seus mortos, no silencio das suas alcovas. Mas alguns exaltados, desattendendo a disciplina do partido, persistiram na demonstração luctuosa; e assim como de uma nuvem negra, que ameaça um diluvio, só vêm a cahir aqui e além algumas gottas d’agua, assim de toda aquella população que devia descer dos faubourgs apenas se viram pelas ruas grupos de dez, quinze pessoas, dirigindo-se ao Père-Lachaise com a sua blusa nova, e a corôa de perpetuas na mão: sómente por amor do symbolo, as coroas eram vermelhas.
Estes mesmos fragmentos de manifestação desagradaram ao governo e á prefeitura, e viu-se então um espectaculo bem proprio a regosijar o coração do homem livre: quando, ao Père-Lachaise, onde se apinhavam batalhões de policias, um homem se approximava da valia a depôr a sua corôa sobre a herva verde, um sergent de ville precipitava-se, verificava de sobr’olho duro que as perpetuas eram escarlates, e arrastava o individuo ao carcere; e se o cidadão, ignorando que sob a republica é um crime chorar os mortos e ornar-lhes a sepultura, protestava com vehemencia, a policia demonstrava-lhe a pranchadas que a republica é um governo forte e contundente...
Mas, o que iam elles fazer ao Père-Lachaise com as suas perpetuas symbolicas, estes revoltados, estes exaltados, que em principio abominam a religião e os seus ceremoniaes?
O mais illustre jornal do partido, o Mot d’Ordre, descrevia ha dias uma festa no Sacré Cœur n’estes termos phantasticos: «Hontem havia no Sacré Cœur uma reunião de individuos celebrando algumas ceremonias barbaras em honra de um personagem exquisito e obscuro, vulgarmente designado pelo nome extravagante de Deus». Ora, parece extraordinario que individuos que possuem phrases tão avançadas, vão commemorar um anniversario de morte — da morte que não deve ser para elles mais que uma banal transformação da substancia, com as tradicionaes etiquetas do catholicismo; e que procedam deante de um tumulo amigo, como se acreditassem que o corpo jaz alli intacto e paciente, sob as flôres agrestes, esperando o toque do clarim do juizo final, emquanto a alma paira no ether mystico, misturando-se á vida terrestre e gosando a offerta de symbolos saudosos...
Mas, mais estranho que tudo é a influencia do vermelho no animo da policia, como entre nós nos temperamentos dos touros.
Póde até certo ponto comprehender-se que uma bandeira vermelha, batendo o ar desfraldada, lembrando arrogantemente a insurreição, possa irritar a bilis de uma policia bem organisada; mas onde está o crime de uma pobre corôa de perpetuas tingidas de vermelho?
Porque, como muito nitidamente o explicou o snr. Andrieus, prefeito de policia, o que offendeu a Republica e a Ordem foi a imprudencia d’aquelle escarlate! Se as perpetuas fôssem amarellas, a Republica teria generosamente permittido a manifestação saudosa...
Logicamente, pois, uma rapariga que passe no boulevard com duas rosas vermelhas ao peito, deve ser arrastada deante de um conselho de guerra. A papoila torna-se um delicto; e o rubor de uma face casta é offensa á constituição.
Quando o snr. prefeito da policia corta o seu dedo augusto com o seu canivete official, que deve fazer em presença do escandalo do seu sangue vermelho? Algemar-se a si mesmo, e a si proprio arremessar-se á palha humida das masmorras. Mas o verdadeiro culpado é o bom Deus que prodigalisa o escarlate e as suas gradações nas flôres, nas nuvens, e, se nos não mente a Biblia, até nas tunicas dos seus seraphins! Ao carcere o bom Deus!
Esta extravagancia do chefe da policia é melancolica!
Na Inglaterra reunem-se em Hyde-Park, quinze, vinte mil pessoas em meeting com toda a sorte de emblemas, estandartes e charangas, todas as côres que a Providencia fez e ainda todas as que a industria inventou; declama-se, uivam-se cantos sagrados e impios, atira-se velha hortaliça á face dos oradores, absorvem-se pipas de cerveja, e a formidavel policia ingleza, de braços cruzados, sorri com bonhomia á orgia civica. É que todas estas vociferações e todas essas côres deixam as instituições tão intactas e tão firmes como os velhos robles d’Hyde-Park; e, finda a hora do meeting, a grande massa dispersa com um socego de fim de missa. Em França um grupo de homens vae em silencio depôr, sobre uma campa, flôres de melancolia, e tudo treme, n’um receio que a forte republica do snr. Gambetta cambaleie ferida no coração!
Realmente, Caligula e Carlos IX fazem ás vezes saudades...
Era Alfredo de Musset que dizia nas suas patheticas estancias á Malibran que, em França, quinze dias fazem de uma morte recente uma antiga novidade. Talvez, quando é a Malibran que morre: quer dizer, um gorgeio de ave que se perde na noite. Mas, se o que desapparece se chama Gustavo Flaubert e é o auctor da Madame Bovary e da Educação Sentimental — quinze dias ou quinze annos pódem passar sobre essa perda sem que a dôr envelheça: sobretudo quando se pensa que esse poderoso artista, um dos maiores d’este seculo, nos é estupidamente arrebatado no espaço de uma hora, por uma apoplexia, em plena força creadora, na vespera de terminar um livro supremo em que puzera dez annos de trabalho, o melhor do seu genio, e a sabia experiencia de uma vida inteira.
Não é para esta chronica o estudar Gustavo Flaubert. Só direi que a sua alta gloria consistira em ter sido um dos primeiros a dar á arte contemporanea a sua verdadeira base, desprendendo-a das concepções idealistas do romantismo, apoiando-a toda sobre a observação, a realidade social e os conhecimentos humanos que a vida offerece. Ninguem jámais penetrou com tanta sagacidade e precisão os motivos complexos e intimos da acção humana, o subtil mechanismo das paixões, o jogo dos temperamentos no meio social; e ninguem marcou tão vasta e penetrante analyse n’uma forma mais viva, mais pura e mais forte.
As suas creações — Mme Bovary, Homais o pharmaceutico, Leão, Frederico, Mme Arnoux, pelo poder de vitalidade que elle lhés imprimiu, participam de uma existencia tão real, quasi tão tangivel como a nossa. Quando o seu enterro em Rouen, passava junto ao Sena, defronte de uma das lindas ilhas que alli verdejam, os que o acompanhavam paravam um momento a olhar, a mostrar-se o sitio na fresca ilha em que Mme Bovary passeava com Leão, como se estivessem vendo por entre a folhagem dos choupos a sua figura nervosa e ligeira, e o vestido de merino claro que ella levava aos rendez-vous.
Madame Bovary é hoje uma obra classica — e de certo o seu melhor livro. Quem a não conhece e a não relê — essa historia profunda e dolorosa d’uma pequena burgueza de provincia, tal qual as cria a educação moderna desmoralisada pelos falsos idealismos e pela sentimentalidade morbida, agitada de appetites de luxo e d’aspirações de prazer, debatendo-se na estreiteza da sua classe como n’um carcere social, correndo a esgotar d’um sorvo todas as sensações e voltando d’ellas mais triste como dos funeraes da sua illusão, procurando alternadamente a felicidade na devoção e na voluptuosidade, anciando sempre por alguma cousa de melhor, e arrastando uma existencia minada d’esta enfermidade incuravel — o desiquilibrio do seu sentimento e da razão, o conflicto do ideal e do real: até que uma mão cheia de arsenico a liberta de si mesma!
Na Educação Sentimental, concebe esta ideia de genio: pintar n’uma larga acção a fraqueza dos caracteres contemporaneos amollecidos pelo romantismo, pelo vago dissolvente das concepções philosophicas, pela falta d’um princípio seguro que penetrando a totalidade das consciencias, dirija as acções; e explicar por esta effeminação das almas todas as instabilidades da nossa vida social, a desorganisação do mundo moral, a indifferença e o egoismo das naturezas, a decadencia das classes medias, a difficuldade de governar a democracia...
Salammbô é a prodigiosa reconstrucção de um povo, de uma religião extincta, do violento e complicado mundo carthaginez: na Tentação de Santo Antão, de uma forte intuição, de uma erudição tão larga, pinta-nos tumultuosa a confusão mystica de um cerebro d’asceta, e attinge ahi talvez a perfeição de uma fórma tão viva, tão quente, tão elastica, que só a poderia comparar a uma carnação humana.
Particularmente era o melhor dos homens. Tinha a nobre e santa faculdade de admirar sinceramente; era d’estes a quem um bello verso, uma figura elevada fazem humedecer os olhos de ternura: só sentia indifferença pelo pedantismo triumphante e a indignação só lhe vinha deante do egoismo burguez.
Viajou longos annos, foi amado, foi illustre. Mas, como disse Zola, o melhor das suas alegrias e das suas mágoas teve-as dentro da sua arte. Era verdadeiramente um monge das lettras. Ellas permaneceram sempre o seu fim, o seu centro, a sua regra. Vivia n’ellas como n’uma cella, alheio aos rumores triviaes da vida. Foi um forte. A sua provincia vae erguer-lhe uma estatua: e de certo nunca fronte mais digna, modelada em marmore, reluziu á luz dos ceus.