XII

O Snr. Barthou — A «Antigone» de Sophocles — «Les Rois» de Jules Lemaitre

 

Houve em França subitamente uma queda, ou antes um desconjunctamento de ministerio. Os ministros, que eram uns de substancia radical e outros de substancia conservadora, estavam mal grudados. O calor das primeiras discussões, na camara nova, descollou estes pedaços heterogeneos de poder executivo. Immediatamente porém se manufacturou outro governo. E a unica feição d’esta crise, digna de ficar nas chronicas, foi o ter apparecido de repente, e por motivo d’ella, um homem de Plutarcho.

Este homem é o snr. Barthou.

É necessario reter este nome — Barthou — porque elle representa um justo. A Biblia diria «vaso de eleição»; mas esta imagem é arriscada e dá logar a equivocos lamentaveis, quando se trata de homens e de cousas parlamentares.

Quem é o snr. Barthou?

Um politico, e portanto um ambicioso. Além d’isso um intelligente e um ardente.

E que fez o snr. Barthou?

O snr. Barthou realisou um feito sem precedentes na historia constitucional: — convidado, n’esta nova organisação de ministerio, para secretario de Estado das colonias, recusou.

E recusou por um motivo que o eleva justamente a essas alturas moraes em que Plutarcho se começa a enthusiasmar. O snr. Barthou recusou, porque (segundo disse) «não estava habilitado, nem pelos seus estudos anteriores, nem pela experiencia, a tomar conta d’essas funcções». Conhecem alguma resolução mais heroica? Eu não conheço. Um politico de profissão, um ambicioso que se nega a entrar n’um ministerio por não se considerar competente, nem theorica, nem experimentalmente, para gerir um certo ramo da administração — é verdadeiramente prodigioso! E nós todos os que nascemos sob o regimen das cartas constitucionaes, não podiamos realmente suppôr que existisse algures, n’esta Europa politica e parlamentar, um bacharel que sinceramente se julgasse inapto para governar, do fundo do seu gabinete, fumando a cigarette do poder, as colonias do seu paiz!

No antigo regimen de direito divino, frequentemente se viu ser chamado um cabelleireiro para salvar as finanças do reino. Mas, n’esses tempos deliciosos, tudo dependia do bel-prazer de El-Rei. Ás vezes o cabelleireiro, mostrando os seus pentes, confessava aterrado a sua incompetencia. El-Rei porém mandava — e o cabelleireiro, com as mãos ainda gordurentas das pomadas, tomava conta do thesouro real. Quando Filippe II de Hespanha deu ao duque de Medina-Sidonia o commando da Grande Armada, que partia a conquistar a Inglaterra — o pobre duque escreveu ao seu rei e senhor uma carta desolada, em que lhe dizia que estava velho e cheio de achaques, que enjoava horrivelmente no mar, e que não sabia commandar uma frota!... Filippe II franziu o sobr’olho e ordenou ao duque que embarcasse. O desgraçado lá embarcou, já enjoado — e todos sabem a boa conta que elle deu da Grande Armada. Para evitar esta deploravel confusão das profissões — se fez a revolução de 89. E d’ella surgiu então essa classe de politicos, possuidores de aptidões universaes e de sciencia universal. Todo aquelle que, por gosto ou necessidade, se incorporava n’essa classe, parecia receber logo do Espirito Santo o dom de tudo conhecer e de tudo poder. O medico largava as suas lancetas e ia, absolutamente seguro da propria capacidade, confeccionar codigos. O folhetinista arrojava a penna, empolgava a espada, e lá partia, com uma soberba confiança, para o ministerio da guerra a reorganisar os exercitos. Nenhum jámais hesitára. E tal que duvidaria, por causa da sua inexperiencia, acceitar a administração de uma horta de couves — estava prompto, soberbamente prompto, a dirigir um ministerio da agricultura e commercio.

Esta confiança dos politicos em si proprios terminava por se communicar ao publico. E todos nós, desde que Fulano era eleito deputado, ficavamos certos de que, tocado de uma luz divina, da lingua de fogo, como os apostolos, elle poderia, senão fallar todos os idiomas, pelo menos dirigir, sob todas as fórmas, os grandes serviços publicos da sua terra, e indifferentemente, segundo as circumstancias, salvar as finanças ou commandar frotas.

A estranha confissão do snr. Barthou vem desmanchar esta confortavel confiança. O quê! Ha pois politicos que não conhecem, nem por estudos anteriores, nem por experiencia adquirida, os negocios coloniaes? Diabo! como tem sido então o mundo, até agora, governado? Será possivel que tenhamos tido por ministros e governantes outros Barthous, que, ao contrario d’este, cuidadosamente esconderam a sua incompetencia?

Não sei. Mas certamente a declaração do snr. Barthou, singularmente honrosa para elle, é altamente nociva para a sua classe. Cria uma larga suspeita entre nós outros, os governados.

Se ha um politico a quem o Espirito Santo não concedeu o dom do universal saber — é bem possivel que outros muitos tenham encontrado da parte do Espirito Santo a mesma resistencia em lhes outorgar o dom divino. E já não podemos ver um bacharel subindo de cabeça alta e luneta faiscante os classicos degráos do poder, sem murmurar dentro de nós mesmos, olhando de revez o galhardo moço na sua ascenção: — «Diabo! será este maganão um Barthou — que se calou?»


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Desinteressante pelo lado da politica, Pariz está, ao que párece, interessante pelo lado dos theatros. Para começar, temos Sophocles no Theatro Francez, com a sua velha Antigone. Invejavel destino o d’este Sophocles! Ha já mais de dous mil e trezentos annos que elle gosou o seu primeiro «successo», em Athenas, no dia em que Cimon derrotava os Persas nas margens do Eurymedon: — e ahi o temos ainda, depois d’estes vinte e tres seculos, fazendo derramar em Pariz as mesmas lagrimas que fazia correr pelos bellos olhos das athenienses, quando Antigone, cobrindo a face com o véo, marchava para a morte. Quantos imperios, quantas raças, quantas civilisações têm passado? Ouando elle em Colona, em casa de seu pae, que era um simples fabricante d’armas, desenrolava verso a verso, nas taboinhas enceradas, á sombra d’alguma oliveira, os queixumes d’Œdipo, Pariz não era mais que uma escura floresta, onde de noite uivavam os lobos, vindo beber ás lagôas. E no sitio d’essa vetusta matta, convertida ella, por seu turno, n’uma Athenas infinitamente mais complicada, todas as noites milhares de vozes tremulas de emoção continuam a gritar: Bravo, Sophocles! e de certo devotos do seu genio iriam, como os soldados de Lysandro, coroar de flôres o seu tumulo, se ainda fôsse possivel saber onde se encontra o seu tumulo. Dizem que era na Dacelia — e que quando já não existia lá o tumulo, nem mesmo já havia Dacelia, ainda os pastores notavam que constantemente alli zumbiam abelhas em grandes enxames dourados. E que as abelhas, desde seculos, eram attrahidas para aquella collina pela doçura e pelo aroma que exhalavam os restos de Sophocles.

Esta Antigone, que agora se representa no Theatro Francez, foi para Sophocles a peça mais rendosa — porque valeu ao poeta ser nomeado general ou stratege, como os gregos diziam, n’uma expedição a Samos. Singulares direitos d’auctor! E singular povo que recompensava a belleza de uma tragedia com o commando de uma esquadra! Mas servir a cidade, ganhar a Athenas uma batalha, era, n’esses tempos de civismo heroico, a mais esplendida, a mais nobre das tarefas humanas; — e não se podia dar melhor recompensa a um grande porta do que fornecer-lhe a possibilidade de se tornar um grande cidadão. De resto Sophocles era soldado: já se batera em Salamina, onde tambem combatera o velho Eschylo.

Assim os dous tragicos concorreram pela «penna e pela espada» a assegurar o predominio da civilisação hellenica, e da civilisação occidental.

E não foi só como combatente que Sophocles cooperou em Salamina — mas como poeta: porque, pela sua belleza e pelo seu genio lyrico foi escolhido para corypheu dos coros de mancebos, que, com cantos e danças, celebraram durante tres dias essa magnifica Victoria, que nos salvou a todos nós, homens de raça aryana, de sermos ainda hoje orientaes, e talvez persas!

Pois a Antigone continua a ser rendosa. Nem Sophocles, nem os seus herdeiros, aproveitam dos cinco ou seis mil francos que ella lança todas as noites ao cofre do Theatro Francez. Mas não é menos rendoso para a sua gloria immortal, que, ao fim de vinte e tres seculos, este dramaturgo de Athenas continue a enriquecer os outros.

Deixemos porém a Antigone e Sophocles — porque, das peças representadas em Pariz, a que mais interessará de certo no Brazil é Os Reis (Les Rois) de Jules Lamaitre.

Este drama, tão esperado, tão louvado, começa com effeito por uma historia da revolução do Brazil. Exactamente como lhes conto! Por uma historia da revolução do Brazil — da outra, da antiga, da que derrubou o Imperio.

Quando o panno se levanta, vêmos deante de nós a sala do throno do palacio real da Alfania. A Alfania é um grande reino, uma monarchia absoluta, com 38 milhões de vassalos: — mas esta sala não apresenta mais luxo ou magestade que a da camara municipal de uma villa democratica. A primeira impressão é que, na Alfania, as artes decorativas e sumptuarias estão em deploravel decadencia: — mas dentro em breve se descobre que as colgaduras de sêda e brocado, que deviam revestir esta sala real, foram arrancadas das paredes para se fazerem com ellas as toilettes de Mme Sarah Bernhardt, que é a princeza real da Alfania.

Pela porta nobre d’esta sala desguarnecida entram dous senhores, de casaca e calção de côrte, com gran-cruzes que me pareceram ser da Ordem da Conceição. Um, o mais gordo, é o bibliothecario do rei de Alfania, Christiano XVI. O outro, um moço louro e alegre, é o ministro dos Estados Unidos do Brazil. Exactamente como lhes conto! ministro do Brazil, — que aqui na peça e na Alfania tem o nome de Republica das Cordilheiras. O ministro, esse, dá pelo nome cavalheiresco e hespanholesco de Alvarez! Muito jovialmente e não sem malicia, este ministro Alvarez começa a contar ao bibliothecario (de quem foi condiscipulo no collegio Stanislas em Pariz) as suas attribulações diplomaticas.

Ha dous mezes que elle foi nomeado ministro para Alfania, ha dous mezes que reside na côrte da Alfania, e ainda não conseguiu que o velho rei Christiano reconhecesse a Republica do Brazil! Bem comprehensivel, de resto, esta resistencia de Christiano XVI, que tem oitenta annos, é um autocrata de direito divino, vive no santo horror de todo o liberalismo e de toda a democracia, e não póde comprehender que o povo da Cordilheira expulsasse um velho imperador tão magnanimo e tão paternal.

E todavia (como Alvarez explica, parte para o bibliothecario e parte para o publico) nunca houvera no mundo uma revolução republicana mais repassada de bons sentimentos monarchicos!

O povo da Cordilheira não detestava, antes amava o seu imperador. Mas quê! Esse imperador nunca residia no seu imperio — e constantemente percorria a Europa, cercado de eruditos, robustecendo a sua sciencia das linguas mortas e lendo manuscriptos no seio das academias. Ora um povo que não se occupa de philologia não gosta de ser governado por um philologo. Sobretudo por um philologo, que parece preferir ao seu throno o seu banco do Instituto de França O throno estava sempre vazio, a cobrir-se de pó — e o imperador sempre em França, no Instituto a esmiuçar raizes hebraicas. Além d’isso, aquelle imperio da Cordilheira desmanchava a harmonia republicana da America do Sul. O quê! todos os paizes em redor usufruindo as venturas da republica — e só a Cordilheira sobrecarregada com uma monarchia e uma côrte! Era discordante.

De sorte que o povo decidiu despedir o seu imperador. Mas este acto de bom senso politico fôra feito com toda a delicadeza, todo o respeito, toda a bonhomia. A Republica surgiu uma madrugada serenamente, e naturalmente, como o sol. O Governo Provisorio fretou logo um vapor (um vapor muito confortavel, accrescenta Alvarez), metteu dentro o seu velho imperador com todas as cautelas, saudou e mandou largar para a Europa. Nem uma palavra, nem um gesto que revelassem azedume ou colera n’esta separação.

Pelo contrario! O povo tinha os olhos ennevoados de lagrimas — o imperador tambem. E durante muito tempo um na praia, outro no convez do vapor confortavel se acenaram em um longo, eterno adeus, ambos cheios de sympathia e cheios de saudade. E realmente não havia motivo para que o velho Christiano XVI se recusasse a reconhecer uma republica tão cortez, tão amavel — e no fundo tão monarchica!

Assim narra o ministro Alvarez, no primeiro acto dos Reis, esta risonha revolução que o fez ministro. E com que ironia a conta! Não dou muito pela felicidade d’este funccionario. Mas apenas elle terminara a historia da tão bella aventura em que se lançara o seu paiz — entra toda a côrte de Alfania.

É que estamos n’um consideravel momento historico. O velho rei d’Alfania vae abdicar. Não é só por velhice, por doença, por fadiga d’aquella corôa secular. É que já não comprehende o seu povo — e receia que o seu povo já não comprehenda o seu rei. Até ahi elle fôra simplesmente o pastor muito solicito d’um rebanho muito manso. Agora, porém, sob o seu cajado, via, não carneiros, mas homens. E esta nova sciencia de governar homens, e não carneiros, elle, rei d’outras eras, não a possuia. Por isso passa o cajado a seu filho, o principe Hermann. Esse não só é novo pelos annos — mas é novo pelas ideias. Principe de direito divino, foi todavia educado n’outros tempos, por outros livros — e conhece os direitos humanos. Todas essas liberdades estranhas que o povo da Alfania reclama (liberdade de voto, de imprensa, de associação, de reunião, etc.) e que ao velho Christiano parecem horrendos attentados contra a sua auctoridade real, são para este bom principe Hermann aspirações legitimas, que deverão ser satisfeitas com uma generosidade prudente. De sorte que, com este novo povo da Alfania, tão differente do velho rebanho gothico, e já hoje cheio de theorias, e meio revolucionado, melhor se entenderá o principe novo do que o rei velho. E Christiano XVI abdica.

Lá está elle na sua poltrona real, todo vestido de verde, com a sua branca cabeça pendida ao peso dos presentimentos tristes — emquanto o chanceller do reino lê o rescripto que entrega a regencia do reino da Alfania ao democratico e humanitario Hermann. Este pobre principe tambem não parece feliz, tomado já pelo terror das suas responsabilidades. Quem resplandece é a princeza, Mme Sarah Bernhardt, uma archi-duqueza do secco e puro typo feudal, sôfrega de magestade e poder. Mas, emfim, eis Hermann regente da Alfania, recebendo as homenagens dos grandes dignitarios. E sabem qual é o seu primeira acto de regente? O reconhecimento da Republica do Brazil! Exactamente como lhes conto. Quando o ministro do Brazil, por seu turno, o vae saudar e render-lhe preito, o principe Hermann diz com ar grave e decidido de quem faz a sua primeira affirmação democratica:

— Snr. Alvarez, apresente-me ámanhã as suas credenciaes!

Nem mais, nem menos. Está reconhecido o novo Brazil pelo novo rei d’Alfania. O pobre Christiano suspira — e Alvarez parece bem contente.

Obtido este esplendido resultado, nada mais nos resta senão sahir do theatro e da Alfania, esfregando as mãos. Mas não! Devemos ficar para vêr no segundo acto uma situação verdadeiramente bella, de um pathetico novo, e mais coramovente e profundo que os que resultam dos conflictos da paixão. É aqui uma verdadeira tragedia intellectual.

O pobre principe Hermann, mais que democrata, realmente socialista, já deu ao seu povo todas as liberdades politicas, e até um parlamento e uma carta constitucional.

O velho reino da Alfania está todo transformado e arranjado á moderna, no melhor estylo Luiz Filippe. O primeiro ministro é um jacobino que como elle mesmo confessa, passou a sua mocidade a fazer revoltas contra o antigo Christiano, e a ser preso como cabecilha irreconciliavel. Mas o povo todavia permanece descontente. Ha uma crise industrial em toda a Alfania, uma intensa miseria trazida pelas gréves, e os operarios da capital, obedecendo á velha illusão de que o exercicio de mais direitos politicos lhes trará mais salarios, preparam uma tremenda manifestação nas ruas para reclamar o suffragio universal. O principe Hermann permitte alegremente a manifestação — porque (como elle diz) se o suffragio universal não cura os males do proletariado, ao menos serve-lhe de consolação, põe-lhe na alma uma esperança; e o proletario soffre tanto, e está sob o peso de tão fataes injustiças, que por todos os modos deve ser consolado e attendido nas suas exigencias reaes ou ficticias. O que o bom Hermann quereria (como elle tambem declara) era distribuir pelos pobres o superfluo dos ricos: — mas como essa liquidação social não é possivel immediatamente, e como se não póde dar ao proletario todo o pão que elle necessita, dê-se-lhe ao menos todo o voto que elle reclame. E a manifestação aos vinte mil operarios já vem na rua, immensa e clamorosa.

No palacio reina o terror.

Esses milhares de operarios, soltos na capital, permanecerão ordeiros e disciplinados? Os proprios ministros, antigos jacobinos, duvidam — tanto mais quanto a manifestação é capitaneada por anarchistas que estavam presos, e a quem Hermann, apenas regente, logo amnistiou com enthusiasmo. E com effeito não tardam as más noticias. Os manifestantes arvoraram a bandeira negra. Já aqui e além houve conflictos — e as tropas foram apedrejadas. E eis que agora a enorme massa popular avança sobre o palacio! Mas Hermann sorri tranquillamente. Que póde receiar, elle, que ama tão ardentemente os pobres, e que é na verdade o rei dos pobres? O povo avança sobre o palacio? Pois que se escancarem, bem largas, todas as grades dos jardins, que o povo entre, porque o seu rei alli está que lhe estende com amor os braços. E elle mesmo abre as janellas — por onde penetra um longo, sombrio e suspeito tumulto de brados.

Mas eis um ajudante de campo annunciando que a turba está em plena revolta, assalta os postos da guarda, e começa a saquear as lojas. Que espanto para o pobre Hermann! O quê! Pois o povo não comprehende que elle o ama, e que trabalha para a sua felicidade, e que vae elle proprio, socialista coroado, fazer lentamente e de alto, a revolução social?

Não, o povo não parece comprehender, porque rompeu justamente a apedrejar as janellas do palacio. Já uma pedra ia matando o principesinho real, uma pobre creança doente, nos braços da sua governante. Hermann afflicto corre a uma varanda, para gritar ao povo toda a verdade. Cae sobre elle uma saraivada de calhaus. E não são já sómente calhaus — são tiros. Outro ajudante, esgazeado, corre a contar que a guarda real está sendo desarmada pelo povo. É a revolução! Que fazer? Madame Sarah Bernhardt (que é aqui magnifica) arrasta-se aos pés de Hermann, supplicando-lhe que salve a corôa, que salve o reino! Ainda é tempo! As tropas, absolutamente fieis, estão nas ruas, só esperam uma ordem para carregar, varrer a populaça!... Mas Hermann hesita, livido, n’uma agonia, gritando sómente: — «Oh! os brutos, os brutos, que não comprehendem!»

Outro ajudante. A revolução triumpha! Vae acabar o reino secular da Alfania! Já o povo quebra as portas do palacio. Em pouco aquella rica cidade será saqueada por uma plebe feroz. E o general governador manda intimar o rei a que lhe diga claramente o que deve fazer, como general! Hermann, n’uma voz de moribundo, murmura:

— O seu dever de soldado!

E cae n’uma cadeira, aniquilado. Fóra ha um lento rufar de tambores. É o primeiro e lugubre aviso para que a multidão disperse, antes que sobre ella rompa o fogo. Hermann ainda se precipita á janella, grita: — «Não! Não!» — É tarde. Uma descarga, outra descarga... E logo após o horrendo clamor dos gritos. São os que morrem!

Um silencio sinistro. Está salva a ordem, com ella a corôa. Um official apparece, todo pallido, com o uniforme em desalinho. A princeza, que cahiu debruços para cima de uma mesa, ergue lentamente a face, pergunta por entre lagrimas:

— Mulheres mortas?

O official murmura:

— Muitas.

Creancinhas?

— Tambem...

Hermann, esse ficou como petrificado, sem voz, sem vida, com os olhos cravados no tapete. É que está vendo n’elle, cobertos de sangue, os pedaços do seu bello sonho humanitsrio, que se despedaçou. Elle é o primeiro rei democrata da Alfania; e eis que, por muito amar o povo e o encher de grandes esperanças e o lançar largamente no caminho de todas as satisfações sociaes, se vê forçado pela logica terrivel das cousas a erguer-se deante do seu povo como um repressor violento, e a metralhar o seu povo — o que nunca succedera na velha Alfania, quando o povo era um rebanho pastando mansamente a sua ração de herva, sob o cajado dos seus velhos reis. O seu socialismo naufragara em sangue.

A scena é verdadeiramente bella — e pela apparição da Fatalidade, esse grande factor de toda a tragedia, mas uma Fatalidade nova, tirada das leis sociaes, dá uma tão forte emoção como a podem dar Eschylo ou Sophocles. Depois o drama acaba mediocremente n’um desastre d’amor, que é ao mesmo tempo vulgar e complicado, e cheio de ironia. E não tornamos a ver Alvarez.

Ligeiro e jovial, como me pareceu, estou receiando que elle se dedicasse a galantear com as damas gentis da corte de Alfania em logar de compor e mandar ao seu governo um relatorio instructivo mostrando, pelo exemplo Alfanico, o perigo que se corre em destruir, por amor das theorias, um regimen cheio de paz, de ordem, de prosperidade e de credito, para lançar a nação n’um caminho incerto e escuro onde ella vae cambaleando atravez do descredito, da desordem, da ruina e da guerra.

Mas Alvarez não é homem para comprehender as lições da historia.