A História da velha

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"Nem sempre tive os olhos turvos e as pálpebras vermelhas, nem meu nariz sempre tocou meu queixo... Nem sempre fui uma serva. Sou a filha do Papa Urbano X [1] com a princesa de Palestrina. Até a idade de catorze anos, fui criada em um palácio, para qual todos os castelos de seus barões alemães dificilmente sequer teriam servido de estábulos, uma das minhas vestes valia mais do que toda a magnificência de Westphalia. Crescia em beleza, graça, talento, em meio a prazeres, respeito e expectativas. Eu inspirava amor. Meu colo era formoso, que colo! Branco, firme, igual a da Vênus de Medici, e meus olhos! Que olhos! As sobrancelhas negras! Haviam chamas brilhantes em meus olhos que eclipsavam a cintilação das estrelas! Como diziam os poetas do bairro. As criadas que me vestiam caiam em êxtase ao me verem despida e todos os homens queriam ser elas."

"Eu estava prometida ao príncipe mais excelente de Massa-Carara. Tal príncipe! Tão bonito como eu, doce, agradável, brilhantemente espirituoso e radiante de amor. Eu o amava como se quando se ama pela primeira vez - com idolatria,. As núpcias foram preparadas, pompa e magnificência surpreendentes; houve festas, carrosséis,uma contínua opera bouffe[2], todos os sonetos da Itália compostos em meu louvor, embora nenhum deles estivessem aceitáveis, eu estava prestes a alcançar o cume da felicidade, quando uma marquesa de idade, que tinha sido amante do príncipe, meu marido, convidou-o a beber chocolate com ela. Ele morreu em menos de duas horas sofrendo terríveis convulsões. Mas isto é o de menos. Minha mãe, em desespero e não menos aflita do que eu, determinou que nós devêssemos nos ausentar por algum tempo de tão fatal lugar. Ela tinha uma propriedade muito bonita aos redores de Gaeta. Nós embarcamos a bordo de uma galera do nosso país, que era dourada e grande como o altar de São Pedro, em Roma. Um corsário de Sallee nos abordou nossos homens defenderam-se como se fossem os soldados do Papa; lançaram-se sobre seus joelhos atirando os braços, implorando ao corsário uma absolvição in articulo mortis[3].

"Imediatamente eles foram despidos como macacos, e não foi diferente com minha mãe, nossas damas de honra e comigo. É impressionante a rapidez com que sabem despir uma pessoa... Mas o que mais me surpreendeu foi que enfiaram seus dedos em partes de nossos corpos, que em mulheres geralmente se introduzem cânulas. Aquilo pareceu-me um tipo muito estranho de cerimônia, mas é como julgamos as coisas de que desconhecemos, aprendi depois que era para tentar saber se estávamos escondendo diamantes. Esta é a prática estabelecida desde tempos imemoriais, entre nações civilizadas que percorrem os mares. Fui informada de que nunca os Cavaleiros de Malta, muito religiosas, fazem esse tipo de vistoria quando tomam qualquer Turco como prisioneiro, seja de qual for o sexo. Uma lei das nações da qual eles nunca se afastam."

"Não preciso dizer a vós o grande sofrimento que foi para uma jovem princesa e sua mãe se tornarem escrava e serem levadas para o Marrocos. Podem facilmente imaginar tudo o que se pode sofre a bordo de um navio pirata. Minha mãe ainda era muito bonita, nossas damas de honra e até as nossas serviçais tinham mais encantos do que se encontram em toda a África. Quanto a mim, estava deslumbrante, belíssima, a graça em pessoa, e eu era virgem! O que não permaneci assim por muito tempo! Esta flor, que tinha sido reservada para o belo Príncipe de Massa-Carara, foi arrancada pelo capitão corsário. Um negro abominável que ainda acreditava ter me feito grande honra. Certamente a princesa de Palestrina e eu devíamos ter sido muito forte para passar por tudo o que vivemos até nossa chegada em Marrocos! Mas deixemos isso, estas são coisas tão comuns, não dignas de nota."

"Marrocos estava mergulhada sangue quando chegamos. Cada um dos cinqüenta filhos do imperador Moulay Ismail[4] tinha um partido e incitaram 50 guerras civis de negros contra negros, negros mais escuros, morenos contras de morenos, mulatos contra mulatos: uma carnificina constante em toda a extensão do Império Romano."

"Mal atracamos, uma facção de negros inimiga de meu capitão atacou para roubar seu espólio. Depois de diamantes e ouro, nós éramos o que havia de mais precioso. Testemunhei uma luta como nunca veriam em climas europeus. As nações do norte não têm o sangue ardente nem a luxúria pelas mulheres como têm o povo da África. Parece que os europeus têm leite nas veias, é vitríolo, enquanto nos habitantes do monte Atlas e de países vizinhos, é fogo o que flui. Lutaram com a fúria dos leões, tigres e cobras do país, para saber quem nós teria. Um mouro agarrou minha mãe pelo braço direito, o tenente de meu capitão a segurou pelo braço esquerdo, um soldado mouro pegou-lhe uma perna, um de nossos corsários agarrou-lhe pela outra. Todas as nossas serviçais eram igualmente disputadas entre quatro soldados. Meu capitão me manteve escondida atrás dele, empunhando a cimitarra matou todos os que se opunham a sua raiva. Finalmente vi todos as italianas e minha mãe retalhadas, abatidas por monstros que as disputavam. Os escravos, meus companheiros, tinham tomado partido, soldados, marinheiros, pretos, brancos, mulatos e, finalmente, meu capitão, todos foram mortos, fiquei desmaiada sobre uma pilha de corpos. Cenas semelhantes estavam acontecendo em uma faixa de mais de 300 léguas, sem perder sequer uma das cinco orações por dia exigidas por Maomé."

"Com dificuldade, arrastei-me para fora da pilha de corpos até o pé de uma grande laranjeira, em um banco próximo a um riacho, onde cai de novo, cai de susto, fadiga, horror, desespero e de fome. Logo depois, meus sentidos sobrecarregados se entregaram a um sono que era mais do que desmaio. Estava em tal estado de fraqueza e insensibilidade, entre a vida e a morte, quando senti algo pressionado meu corpo, abri os olhos, vi um homem branco de aparência gentil que suspirou e disse entre dentes: O che sciagura d'essere senza coglioni![5]"

Notas do tradutor

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  1. A seguinte nota póstuma foi adicionada na edição M. Beuchot às obras de Voltaire emitidas em 1829:
    Veja a extrema discrição do autor, até o presente momento nunca houve um Papa Urbano X, ele temia atribuir um bastardo a um Papa conhecido. Que circunspecção! Que delicadeza de consciência!
    O último Papa Urbano foi o oitavo que morreu em 1644.
  2. Opera bouffe é um gênero de ópera do final do século IXX.
  3. In articulo mortis do latim, significa na hora da morte, é uma expressão muito usada em Teologia e Direito para definir ações ou decisões para o caso de morte eminente.
  4. Moulay Ismail foi um imperador de Marrocos de 1672 a 1727, notório por sua tirania e crueldade.
  5. Lit. Oh É uma pena que me falte os culhões