Em mansa noite de prateada lua

... Curtio delirios vastos
... Entre tufões e abysmos!

A. F. de Castilho.

I.

Em mansa noite de prateada lua,
Que alvissima banhava o horisonte,
E com fulgor ameno reflectia
Sobre de um rio, em suas puras aguas,
E qu’espalhada, alvinitente e bella
Tambem sobre os areaes de praia amena
Finos christaes em lagos similhava,
Desgrenhada, e a sós — e bella, e louca,

Qual ave perseguida a curto, e á força
Por açor matreiro — divagava,
Banhada em lagrimas, — a largos passos;
Soluçando d’amor, e allucinada,
No rosto o desespero — amor no peito,
Beatriz, D. Beatriz, qu’imprevidente,
Com pé ousado e firme, até ás fauces
D’insondavel abysmo arremessára,
Por amor de um Vate — o amor de esposo.

E era noite sacrosanta —
Esta noite de tormento,
Ao longe ardiam tochas
Em lusido sabimento.

D’outra extrema cavalgando
Vinha em ginete murzello
D. Silveira — Cavalleiro —
Valente — aguerrido e bello.

Trajava dó e armas negras,
Quanto negro o coração,
Nesta brida procurava
O seu amor e paixão.

Mas de chôfre o seu corcel
Refreia, e faz parar,
Porque o povo era já tanto
Qu’impedia o galopar.

Porque é perto o sahimento —
O sahimento christão —
D. Silveira joelho em terra
Tambem faz sua oracão.

E em cânticos sagrados — tristes monges
De consternado olhar — de dôr contrictos
D’alma funereos psalmos repetiam
Ao morto Deus — ao redemptor do mundo!
Que triste sahimento! — Tristes todos,
Quer tropa e Rei, quer povo e clero — todos
Tristes uma só dôr n’alma sentiam! —
Té o céu qu’inda ha pouco abrilhantado
Com resplandentes — lucidos meteoros
Tambem sua tristeza demonstrava
Nas grossas nuvens, qu’era mui densas trevas,
No firmamento prestes caminhavam.
Mostrando um soluçar amargurado
Á terra, que tambem triste gemia,
Ao mar qu’em vagas horridas bramava!
Mixta scena de dôr é neste mundo
De Christo o sahimento! —

II.

Já ía caminho novo
D. Silveira galopando,
Ventre em terra o seu corcel
Novamente esporeando.

Qual era o norte não sei
De tão fiel corredôr —
O Cavalleiro que o guiava
Levava no peito amor! —

Deslisava-se em seu rosto
Um sorrir d’atra vingança -
Parecia dominado
Da maior desesperança.

Era D. Silveira o Vate,
O amante de Beatriz
Tão malfadada em amores —
E nest’amor infeliz.

E neste galopar inda corria
D. Silveira Donzel — tão Cavalleiro
Quão Vate fôra nos seus dúlios cantos
Vibrados pelo amor, ou p’la saudade
Sentidos n’alma!

E corria e voava o corcel
Qual, nos ares com força vibrando,
O sibillo de frécha potente,
Que percorre, ferindo e matando.

Eis que pára, e não sabe a magia
De tão subito choque, — e o corcel —
Espumando, cançado, não póde
Por mais tempo suster-se fiel.

O ginete vacilla açodado
Desta brida incessante e veloz —
D. Silveira, raivoso, de um salto
Se desmonta com gesto feroz.

Já baixavam sem brilho nas orlas
Do horizonte os raios do sol,
Já crepusc’lo da tarde brilhava
Em seu mago e sublime arrebol. —

E ao longe p’la brisa açoitado
Deslisava-se um veo côr de prata,
Preso á coma de um corpo gentil
Qu’extasia, revelia, e arrebata.

D. Silveira no instante o divisa,
E não sei porque mago condão,
Se lhe paira nos labios um riso,
Um sorriso d’esp’rança e paixão!

Abandona o corcel, e apressado
S’encaminha, e voz d’alma lhe diz
Que é alli quem procura — que é ella —
A sua dama — a famada Beatriz!

Alguns instantes mais — e um rosto pallido,
Mudo e triste — sublime se pendia
Por sobre rijo arnez de rijo ferro —
Qu’immovel, orgulhoso acalentava

Lirio tão bello — decepado ha pouco
Por impia fouce d’afiado gume!
Tão rijo marmor recebia ufano —
De pet’las merencorias e mimosas
Mui dôce orvalho — nas sentidas lagrimas,
Da donzella gentil — nos sempre bellos —
Tristes, languidos olhos macerados!

III.

Dez annos se passaram
Novas delles não constou —
Uns negam — outros affirmam
Que o Donzel já se finou.

Que um Cavalleiro sem nome
De uma noite entre o negror —
Cruelmente o assassinara
Com ferreo braço e traidor! —

E a dama — seus dias
Tão cheios de dór —
N’um claustro os rendera
P’ra sempre ao Senhor! —