Viajou hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto, no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interrogá-lo, ver porque não descia. Sacudiu-o. "Ó amigo, já chegamos! Ó amigo..." O bêbedo abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-a tombar de novo sobre o peito. "Ó amigo! então não desce? Ó amigo..." O ébrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca o bonde." - "Mas olhe que tem de pagar outra passagem! Ó cidadão! está ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" - "Sim!" berrou o homem. "Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto você quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez tostões.
Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já manso, fez um gesto trêmulo de repulsa amigável. "Guarde para você, guarde lá... ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande tocar mais devagar nas curvas... sim? É só o que eu lhe peço. Mais devagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as mãos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo.
Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapidez nas curvas: é que já havia levado um meio trambolhão do bonde abaixo, numa delas. Assistiam à cena dez ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca há maior divertimento do que ver um homem em situação degradante, e "risível", que por via de regra é risível porque seria própria para entristecer.
E porque o estado de bebedeira é degradante? Já sei: é pela mesma razão por que é risível, é que diminui o homem ex abrupto, o reduz à condição de autômato, de um autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero de embriaguez que passa como se não fosse degradante nem ridículo! Por que?
Os efeitos são os mesmos: um homem sem a posse completa de si próprio, sem sequer essa espécie de dignidade animal que consiste na harmonia espontânea dos movimentos com as "finalidades" naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem de ser aturado nas suas importunações, ou carregado como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, dá escândalo e faz desordem.
Há a bebedeira de morfina, éter e similares, e das paixões políticas, profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico; há a embriaguez moderna da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma a natureza do homem. E há a embriaguez da sensualidade que se desdobra nesta epidemia universal de ostentação, de festas e de fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.
O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezes duvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando as doses. Para encurtar, não tarda que seja um viciado. Torna-se um automobilimaníaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com períodos lúcidos de mais em mais breves, em que trata de seus negócios e participa da vida íntima de sua família.
Quando está em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio descaído e branco. A pequena velocidade é a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico, dirige pilhérias aos guardas. A velocidade média é a fase da provocação e do "leve o diabo". A velocidade máxima média é o estado delirante: a consciência acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agônico, em que a personalidade tem a abafada impressão de se libertar das prisões materiais e voar no vento e na luz.
Embriaguez detestável como qualquer outra. Mais do que qualquer outra produz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os dias revelam as crônicas. E, como muitas outras, deixa suas heranças à descendência.
Entretanto, não se cogita de uma lei seca para esse flagelo.
A verdade é que o homem é um ser que se embriaga. Não importa a maneira: o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin, vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notoriedade, glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora à custa do desbarate e da quebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção humana.
Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimento do Eu consciente. E é verdade. Mas o álcool e o tabaco não são os únicos mananciais dessa felicidade mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindo efeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veículo atirado como um buscapé ou de uma paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porção de vozes que balbuciam dentro de nós, prevenir um mundo de preocupações e de angústias possíveis, apequenar a nossa humanidade, pôr entre nós e o cariz oceânico da vida um véu que o esfume e nos tranqüilize.
Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos de nós. Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyám: Sonha que já não és, e sê feliz.
És que? Homem, cá para o nosso caso.