O gênio faceiro e jovial de Amália mudou completamente. A moça tornou-se pensativa: tinha longas horas de cisma e melancolia, ela que dantes não sabia senão rir e brincar.
Algumas vezes já se esquivava de freqüentar a sociedade, que até então fora para ela uma necessidade. Inventava pretextos para recusar os convites; e ficava-se em casa solitária, distraída, absorta em vagas contemplações.
Passava noites inteiras recostada à sua janela com os olhos fitos, o seio palpitante, tão alheia de si que não ouvia a voz da mãe a chamá-la, e tão presente aos seus pensamentos que estremecia e sobressaltava-se a cada instante, sem causa aparente.
Outras vezes saía ao jardim, e vagava pelos passeios talhados na relva, a desfolhar as flores que sua mão distraída ia colhendo, e a arrular palavras submissas que, pela cadência da voz melodiosa, pareciam trechos de poesia.
Amália admirava outrora as estrelas como umas jóias mimosas de que Deus havia recamado o seu manto azul, ou como umas violetas do céu a luzir por entre as sombras da noite. Era bonito; mas ela preferia um adereço de brilhantes sobre um vestido de cetim ou uma grinalda de miosótis.
Agora um místico sentimento a atraía para essas flores de luz. Gostava de conversar com elas. Pensava que talvez tivessem um coração irmão do seu.
Quem sabe se não eram os anjos da guarda que velavam sobre as almas exiladas na terra?
Ela própria achava ridículas estas abusões, quando repassava na mente as cismas da véspera; mas isto não impedia que de novo se embalasse naquela e noutras fantasias, em seus momentos de devaneio. Toda a sua pessoa ressentia-se da revolução que lhe transformava o gênio.
Os movimentos sempre tão vivos e cintilantes tornaram-se frouxos e lentos. Sua beleza já não irradiava como no tempo feliz; agora embebia-se em uma sombra diáfana, que velava o matiz da cútis aveludada. Ao piano, a sua execução não perdera em correção e limpidez; mas ou tocasse ou cantasse, havia na música, se esta era triste, uma repercussão íntima e profunda. Sentia-se palpitar a dor nas teclas como na voz. De repente, sem motivo, e sem consciência, enchiam-se-lhe os olhos d?água. As lágrimas doutros tempos eram orvalhos para as boninas de seu gentil sorriso; estas de agora corriam lentamente e deixavam nas faces um brilho lívido.
A família assustou-se com esta mudança. Às perguntas inquietas da mãe, Amália respondia que andava aborrecida; e entretanto recusava as distrações que lhe ofereciam.
Afinal, tendo perscrutado debalde a causa da súbita transformação da filha, D. Felícia a atribuiu a uma dessas moléstias nervosas, a que são muito sujeitas as moças fluminenses, pela falta de educação higiênica. Resolveu então a família passar algum tempo fora da Corte. Foram para Petrópolis.
Nos primeiros dias, Amália recobrou a sua antiga alegria; e voltou à vida agitada e folgazã. Os passeios de carro descoberto, as apostas a cavalo, e as partidas campestres, reanimaram-lhe o gosto da sociedade e a restituíram ao seu natural.
A moça conseguiu durante alguns dias atordoar-se e submergir as suas recordações num turbilhão de prazeres ruidosos, mas que não lhe davam senão a alegria artificial do momento. Ao cabo de alguns dias cansou. A tristeza que tinha espancado à força de movimento e agitação voltou, e mais intensa. Com esta vieram as saudades da casa de São Clemente. A moça lembrou-se da sua doce solidão; e desejou-a, como nunca havia desejado os divertimentos.
Fizeram-lhe a vontade. Recolheram-se à Corte depois de um mês de ausência. Por diversas vezes quiseram levá-la para a Tijuca ou para Juiz de Fora; mas ela resistiu sempre e com energia; foi preciso ceder. A família projetou então uma viagem à Europa, como único meio que lhe restava para salvar a filha querida. Quando os pais comunicaram essa intenção à moça, ela recebeu o anúncio com espanto; depois foi se habituando à idéia, e, em vez de a repelir, já por fim a acolhia favoravelmente, e dizia à mãe, num ingênuo assomo de ternura:
-- Não se aflija tanto, mamãe, eu lhe prometo ficar boa com a nossa viagem à Europa. O Sr. Veiga, pai de Amália, começou a dispor os seus negócios. Contava partir no futuro mês de março, por ser já fim de ano, e não convir, na opinião dos médicos, nem à filha nem a ele, uma transição brusca do nosso verão para o inverno europeu.
D. Felícia depositava grandes esperanças nessa viagem; mas sua convicção era que só o casamento podia restituir a Amália a saúde e a felicidade perdidas.
Desde que voltara de Petrópolis, Amália trazia no fundo d'alma uma esperança, que não se animava a afagar, mas que se derramava por sua mágoa como uma gota de bálsamo. Talvez que tudo quanto vira naquela noite não fosse mais do que um momento de loucura, uma alucinação passageira do marido de Julieta.
Hermano seduzido por aquela mulher fatal esquecera o seu juramento; mas passada a primeira fascinação, o remorso o tinha pungido; e ele sem dúvida repelira de si com horror a culpada. Amália ia pois achá-lo restituído ao amor puro e legítimo da esposa.
Com efeito o marido de Julieta, quando não saía e ficava em casa a sós, passava as tardes no sítio habitual, junto aos bambus; submerso no mesmo profundo recolhimento, que Amália observara da primeira vez. A casa continuava solitária, tranqüila, silenciosa, como um retiro; mas à noite ainda aparecia nas janelas de Julieta o clarão sinistro, que batia nos olhos de Amália como o facho lúgubre de um sacrilégio. Que se estava passando dentro daquele aposento, enquanto ela com os olhos cravados na veneziana feria sua alma de encontro às réstias de luz, que se enfiavam pelas rótulas?
Não poder arrancar esse obstáculo, que lhe ocultava o interior! Já não tinha escrúpulos, já não considerava essa curiosidade uma indiscrição. Ali não era Amália quem estava, mas Julieta na pessoa dela; Julieta que tinha o direito de defender contra uma intrusa a santidade de seu amor e o recato de sua câmara nupcial.
Esta ansiedade, e as decepções que daí lhe provinham a todo instante, aumentaram a tristeza de Amália; pelo que o Sr. Veiga, cedendo às instâncias da mulher, decidiu a viagem à Europa.
A moça, a quem a idéia de uma separação assustara, compreendeu todavia a necessidade de arrancar-se à fatal dominação que sobre ela exercia aquele homem, a quem não amava, e nem poderia amar nunca. Ela sentia que faltavam-lhe as forças para conter os impulsos de sua alma; e conhecia o poder da irresistível atração que a prendia ali, e que a trouxera de Petrópolis aonde se tinha refugiado. Era preciso pois interpor o oceano e afastar-se para longe, onde a maligna influência que a tiranizava não pudesse chegar.
Afinal o acaso favoreceu a curiosidade da moça. Por esquecimento ficara aberta uma janela, não do toucador, mas da sala próxima. Foi o Abreu, ao escurecer, quando andara ali a espanar, que a deixara assim, talvez para arejar o aposento, contando fechá-la mais tarde.
Amália alvoroçou-se com esta circunstância; mas logo conheceu que nada adiantava. Era-lhe impossível distinguir coisa alguma na escuridão da sala. Já ia retirar-se, quando renasceu-lhe a esperança. A lua assomara sobre o dorso do Corcovado; a sua claridade alva e doce como a luz coada por um globo de cristal diáfano estampou-se nessa face da casa.
À medida que o astro elevava-se no horizonte, essa faixa de luar cortada pela cornija do teto desdobrava-se sobre a parede.
Amália seguia com ansiedade o perfil luminoso, impaciente de que penetrasse no aposento e o esclarecesse.
A princípio nada pôde distinguir porque as réstias mutilavam os objetos, deixando uma parte na sombra. Chegou, porém, o momento em que viu. A sala fora inundada pelo luar; e o interior aparecia como uma cena de teatro, iluminada pela eletricidade.
A moça não teve a mesma súbita comoção que da outra vez. Então ela nada suspeitava, e o fato se havia apresentado a seus olhos de repente em toda a sua realidade. Agora, além de já temer a repetição do golpe, fora a pouco e pouco, reunindo os traços, lobrigando os vultos indecisos, que ela vira afinal desenhar-se o painel. Lá estava a mesma mulher da outra noite, não sentada como da primeira vez, mas reclinada em uma conversadeira acolchoada de cetim azul; e ainda mais encantadora.
Tinha adormecido, com a cabeça pousada na curva do braço, e o corpo meio voltado. O roupão de fina cambraia, fechado na gola e nos punhos envolvia o seu talhe, moldando os contornos graciosos, que não se podiam ver, mas palpavam-se com os olhos.
Amália admirava com toda a violência do ódio, que lhe inspirava semelhante criatura. Envergonhava-se de ser bonita também como ela; e ao mesmo tempo sentia não ter uma formosura ainda mais esplêndida para humilhá-la.
Um instante depois Amália recuou precipitadamente, cobrindo o rosto com as mãos. Hermano, que tinha entrado no aposento, achava-se de pé junto à conversadeira.
As faces da moça abrasaram-se do pejo que sentiu. Revoltou-se contra a audácia daquele homem; e a indiferença dessa mulher que dormia quando um olhar indiscreto devassava o seu recato.
Tinha medo de ver; e uma irresistível tentação de olhar. Voltou as costas para a janela; mas não teve coragem de afastar-se. Entretanto Hermano aproximara-se silenciosamente da conversadeira, sentara-se ao lado e ficou imóvel, como se receasse levantar o menor rumor no aposento.
Esta cena exacerbou a cólera de Amália e o seu escândalo pela traição de Hermano. Nasceu-lhe um desejo veemente de vingar Julieta. Se ela pudesse subtrair o marido pérfido à sedução da amante; arrastá-lo a seus pés humilde e submisso; exprobrar-lhe o seu perjúrio; e restituí-lo arrependido ao amor da esposa!... Que não daria ela em troca desse poder? Que satisfação não teria de infligir o justo castigo a esse crime?
Mas bem compreendia, no seu despeito, que não tinha sobre Hermano a menor ação. Ela, uma das belezas mais festejadas da Corte, rainha nos salões, e dos mais brilhantes vassalos; querida e adorada por tantos admiradores, que todas as tardes faziam uma légua de carro ou a cavalo, só para a verem ao longe e de passagem; ela, Amália, não merecia a atenção daquele excêntrico, seu v izinho, que poderia se quisesse olhá-la a todo momento, comodamente, sem o menor sacrifício.
Talvez nem a conhecesse, e não soubesse que ela habitava ao lado de sua casa... Mas não; lembrou-se da vez em que o surpreendera ouvindo-a cantar; curiosidade que a tinha irritado a ponto de bater-lhe a janela. Agora arrependia-se do seu arrebatamento. Devia ter-se contido naquele momento, e servir-se dessa impressão produzida por sua voz para atrair esse homem, fasciná-lo também com a sua beleza, dominá-lo, e então esmagá-lo com todo o seu desprezo.
Fora mal inspirada. Hermano, ofendido com a desfeita que sofrera, não se arriscaria a nova repulsa. Entretanto por que não havia ela de tentar o meio que lhe restava para reatar o primeiro e único movimento desse homem para ela?
No dia seguinte, depois do almoço, Amália sentou-se ao piano; abriu a partitura da Lucia; e hesitou por algum tempo. As portas das janelas estavam abertas; foi cerrá-las e pela fresta lançou um olhar à chácara vizinha. Estava erma e tranqüila.
Então a moça decidiu-se, e cantou com emoção que nunca tivera em suas estréias de sala. Também nunca ela cantou melhor, com mais alma e paixão.
Terminando, ergueu-se precipitadamente. Arfava-lhe o seio, menos do esforço que fizera, do que do anelo de uma esperança que a agitava. Sentia que esse momento podia decidir de seu destino. Calcando com a mão esquerda as pulsações do coração. caminhou para a janela, pálida e trêmula, e procurou com os olhos o lugar onde Hermano a escutara da outra vez.
Não havia ninguém.