Depois de pequena demora na sala, Hermano convidou as senhoras para verem o interior da casa.
— Em primeiro lugar o toucador, disse D. Felícia. que pretendia aferir a ventura da filha pelo luxo desse aposento especial.
Amália que passara adiante dirigia-se para o lado do edifício em que ela sabia desde muito achar-se a sala que servia de toucador a Julieta. Hermano, porém, adiantou-se com visível precipitação e tomou-lhe a passagem.
— Por aqui, Amália, disse ele um tanto perturbado e indicando com o gesto a direção oposta.
Ai estavam efetivamente os aposentos da noiva, onde a arte reunira todas as comodidades domésticas sob a forma mais graciosa, dando à riqueza dos móveis os realces da elegância.
Enquanto D. Felícia. regozijava-se com esse luxo, que esperava encontrar, e distribuia os seus elogios a cada peça, Amália observava silenciosamente, estudando com uma prevenção que não podia vencer, o aspecto e arranjo do aposento que lhe estava destinado.
A primeira circunstância que provocou sua atenção, foi o contraste saliente deste toucador com o outro, o anterior, que ela vira a primeira vez quando menina, e tornara a ver ultimamente...
Apesar de corresponder exatamente a repartição das duas asas do edifício e de terem portanto as salas o mesmo plano e as mesmas dimensões, tão opostas eram no adereço e arranjo que denunciavam o propósito de torná-los o mais diferentes que fosse possível.
O antagonismo manifestava-se em tudo, na pintura, na tapeçaria, nos ornatos, nos móveis. As cores desdiziam inteiramente. O primeiro toucador era azul e branco; este rosa e ouro. Os trastes daquele, de erable; os deste, de ébano. A colocação dos objetos inversa.
Quando D. Felícia. passou ao quarto de dormir. a filha disfarçou para não entrar; mas de relance percebeu que ali havia dominado o mesmo intuito.
Para Amália esta antítese foi uma cifra do pensamento recôndito de Hermano; e ela embalde perscrutou-lhe na fisionomia o verdadeiro sentido. O noivo satisfeito e contente com os elogios de D. Felícia. e com o interesse que a moça tomava por seu toucador, não revelava no semblante a menor preocupação.
Todavia Amália persistiu em descobrir um desígnio naquela circunstância que podia ser casual. O susto que sentira a princípio, com a idéia de ocupar os mesmos aposentos de Julieta, acabava de transformar-se em uma fria suspeita é que transpassava-lhe o coração.
Pensativa, reservada, seguiu a mãe durante a visita minuciosa, que fez ao resto da casa. Hermano, ocupado em mostrar à senhora os vários objetos do trem doméstico, não teve ensejo de reparar na frieza da noiva Se alguma vez achou-a recolhida e silenciosa, atribuiu sua timidez ao recato natural da menina, ante esse prólogo da vida conjugal, que se desdobra aos seus olhos de virgem noiva.
Nesse dia, quando Amália só e em liberdade, pôde coligir suas impressões e refletir sobre o incidente da visita, a suspeita que se aninhara em seu espírito cresceu, e tornou-se em certeza. A alma de Hermano estava escrita naquele símbolo, que ela a princípio não pudera decifrar.
Julieta ainda tinha naquela casa um templo onde era adorada ainda ela dominava e possuía tão completamente o coração do marido que este, apaixonado por outra mulher a quem ia ligar-se eternamente e na véspera dessa união, não podia banir de si o passado e divorciar se do primeiro amor.
Era por isso, era para conjurar as recordações implacáveis que surgiam a cada instante; para iludir-se emprestando uma virgindade artificial a emoções já outrora sentidas, que Hermano recorrera calculadamente àquela diversidade dos objetos que deviam cercá-lo na fase nova de sua vida.
Tinha feito como o pintor que obrigado a repetir um quadro histórico, buscasse na divergência das cores e na mudança das posições, uma novidade que faltava ao assunto; e sem a qual a monotonia lhe matada a inspiração.
Amália recordava-se de uma observação anterior. pintava-se a casa, notou que a asa direita do edifício continuava fechada; mas não deu a isso nenhuma importância, distraída como andava com outros cuidados. Agora tinha a explicação. Essa parte da casa, que fora particularmente habitada por Julieta, ficara intata. Era uma relíquia.
— É preciso romper este casamento! disse então Amália consigo.
Tomada a resolução, ela espreitou o ensejo de levá-la a efeito de modo que poupasse a suscetibilidade de Hermano. Quando estava só fortalecia-se no seu intento; mas quando chegava o noivo e ela o via tão feliz e tão regenerado por seu amor, não tinha ânimo de precipitá-lo daquele faqueiro transporte, que também a arrebatava.
Uma vez o amante exprobrou-lhe a esquivança que ela mostrava acerca desses projetos de futuro, os quais não passam muitas vezes de fantasias, mas são para os noivos como uma antecipação da felicidade conjugal.
— Quer saber a razão? disse Amália.
— Não é preciso que o diga. Se me amasse como eu a amo, achada o mesmo prazer nestas futilidades.
A moça respondeu-lhe com uma expressão grave e um olhar repassado de tristeza:
— Se não o amasse, como o amo, achada decerto prazer em falar nessas esperanças e promessas de uma ventura que é o meu sonho. Mas ao contrário elas me entristecem.
— Por quê, Amália? perguntou ele surpreso e inquieto.
—Tenho um pressentimento.
— Não diga isto!
— Não serei sua mulher, Hermano.
O amante adivinhou a razão dessa dúvida que afligia o espírito da moça; e respondeu-lhe com uma queixa:
—Mostrei-lhe acaso, Amália, o menor indicio de arrependimento e hesitação para que retire o consentimento que me deu?.
— Não o retiro; dei-lhe a mão; ela pertence-lhe.
— Mas então quem se oporá à nossa felicidade?.
— Não sei; mas tenho medo que ela não se realize.
— Faltam tão poucos dias!
— Até à hora, ninguém sabe o que pode acontecer.
Hermano esforçou-se por dissuadir Amália daquela idéia, e com tanta efusão falou-lhe de seu amor, que ela deixou-se convencer, e creu enfim na possibilidade de ser feliz.
Se a moça cogitasse em um meio de fascinar o seu amante, de o prender ainda mais a si, não poderia escolher melhor do que este receio sincero por ela manifestado Desde aquele diálogo Hermano redobrou de extremos; e se já havia resumido sua existência em Amália, não viveu mais senão das horas que passava junto dela.
Ao chegar interrogava ansiosamente o semblante da moça receoso de ler nele a sua condenação. Depois de retirar-se, inventava pretextos para voltar uma e mais vezes, como para certificar-se de que nenhum acidente ameaçava de novo a sua felicidade.
Esse tempo foi para ele um continuo sobressalto e para Amália o mavioso enlevo de sentir-se amada com todas as emoções e todas as energias dessa alma opulenta. As dúvidas e receios de seu espírito dissiparam-se completamente. Tinha agora a confiança de seu poder, e a convicção de que Hermano lhe pertencia, e a ela unicamente.
E não advertiu que essa impulsão era talvez o efeito de um anelo estremecido pelo temor, e ao qual talvez sucedesse uma reação violenta.
No dia marcado celebrou-se o casamento. Não sábado, dia tão impropriamente pelo uso para esse ato solene. É com efeito difícil atinar com a relação que possa haver entre a véspera do repouso e o instante em que principia para o homem a grave responsabilidade de família Saturno devorando os filhos é um mau signo para a fecundidade do matrimônio.
Amália estava deslumbrante com seu traje de noiva. Os esplendores de sua beleza ardente tomavam através dos cândidos véus uns tons suavíssimos.
Hermano era o mesmo cavalheiro fino e elegante, que seus amigos tinham conhecido dez anos antes Se a flor da primeira mocidade passara, a fisionomia, como o porte, ganhara em distinção e naturalidade.
O Sr. Veiga festejou o casamento da filha com um baile suntuoso. As duas horas começou uma dessas intermináveis quadrilhas que servem de remate ordinário a semelhantes reuniões dançantes.
A alegria era geral; e os noivos foram dos que mais se divertiram. Ambos eles renasciam para a vida brilhante dos salões da qual se tinham por algum tempo afastado; ela durante a sua tristeza, ele durante a sua viuvez.
Já o nascente bruxuleava, quando o baile formou-se em procissão para acompanhar os noivos à casa.