Tinham decorrido do quinze dias depois do casamento.
Amália já não podia esconder a sua tristeza. As apreenções, que a haviam assaltado antes, ai estavam realizadas. Sacrificara-se para fazer a felicidade do homem a quem amava, z essa união ia tomar-se um suplício cruel para ambos.
Nos primeiros dias, a moça enlevada pelos lirismos do coração virgem, sentiu-se feliz. Em sua inocência, não desejava mais do que possuía. As efusões de Hermano, sua palavra comovida, seu olhar temo e faqueiro sorriso bastavam para encher-lhe a alma e transbordar.
Havia, porem, nesse afeto uma timidez que ela não podia definir. Ainda não recebera uma só carícia; quando solteira tomada tais demonstrações como desacato Mas agora o seu titulo de esposa as santificava. Parecia-lhe que seu mando devia ter o mesmo direito que seu pai, de beijar-lhe a face e estreitá-la ao peito.
Talvez Hermano se acanhasse, e não tivesse animo de tomar essa liberdade. Compreendia o seu enleio pela comoção, que tinha ela também, só de pensar nisso. Mais tarde vida a intimidade.
Então o espírito da moça lançava-se no vago, ansioso de perscrutar o desconhecido; e coligindo em suas recordações idéias outrora incompreensíveis, rasteava um pensamento que a fazia enrubescer Não sabia nada; não suspeitava; mas pressentiu.
Julgou-se humilhada, não somente em sua beleza, mas em sua dignidade de senhora.
Ao mesmo tempo outras circunstâncias concorriam para agravar a sua posição já melindrosa Hermano que a princípio se mostrava cheio de atenções e somente ocupado dela, agora tinha freqüentas distrações, sobretudo na mesa.
Seus olhos a evitavam ainda mesmo quando lhe dirigia a palavra. Ficava por muito tempo calado e absorto. Às vezes no meio daquela concentração, fitava a mulher, observava-lhe as feições com estranheza, e no seu semblante pintava-se a surpresa Desviava então a vista, e de novo caia na sua abstração.
Uma manhã, Amália mandou mudar a disposição da mesa colocando seu talher na outra cabeceira, para não ter o sol de face. Veio o marido que tomou maquinalmente o seu lugar costumado. Pouco depois reparando na alteração, lançou à moça um olhar de espanto; e saiu precipitadamente da sala onde não voltou esse dia, dando-se por incomodado.
Amália adivinhou que era o lugar de Julieta na mesa. Hermano não querendo que ela o ocupasse, lhe havia destinado outro. Daí a sua contrariedade. Não obstante a impressão que lhe causou o fato, a moça procurou disfarçar, e convidou o mando para jantarem nessa tarde à sombra das mangueiras.
O Abreu por seu lado continuava para ela, o mesmo homem de pau do primeiro dia. Em quinze dias, ainda não lhe e tinha dirigido um olhar, nem uma palavra. Com a sua máscara impassível isolava-se dela inteiramente.
Durante a viuvez de Hermano, foi o velho quem governou a casa, onde por seu intermédio as ordens de Julieta eram ainda executadas, como no dia em que ela as dera. Os outros criados obedeciam-lhe como a um chefe; e tinham-lhe senão mais respeito, decerto que mais temor do que ao amo. Era este que os pagava; mas era aquele que os alugava e os despedia.
A presença da nova dona da casa não alterou esse regime. Era preciso que alguém mandasse, e o ex-furriel levado pela hábito ia determinando o serviço como dantes. Assim, quando Amália quis ensaiar a sua autoridade doméstica achou uma resistência muda mas tenaz.
Se mandava mudar um traste, ou fazer alguma leve alteração no arranjo da casa, ninguém lhe opunha a menor observação. Mas no outro dia as coisas voltavam ao estado anterior. Indagada a razão os criados respondiam repetindo a palavra de Abreu P a ordem". Isso queria dizer que assim se havia feito por vontade de Julieta.
Amália retraiu-se para evitar conflitos que a obrigavam a um ato de rigor. Muito a afligida se a sua união com Hermano desse causa à expulsão do velho criado, que era já um amigo da casa. Ela tinha bom coração; e lembrava-se de que o Abreu fazia aquelas coisas pelo muito amor à sua filha de criação.
Todavia, quando pensava na sua posição, não podia dissimular que era naquela casa uma intrusa, que estava ocupando o lugar de outra não só nos atos da vida domestica, mas também no coração do mando. A cada instante a realidade fazia-se, para mostrar-lhe que era demais ali.
D. Felícia. não tardou em aperceber-se da tristeza da filha e interrogou-a. Nada colheu. Amália guardou o seu segredo. Não queria afligir a mãe; e ainda menos expor Hermano a uma censura ou queixa que talvez ainda mais o separasse dela.
Uma noite, porém, a inquietação materna venceu o delicado escrúpulo da sogra, e D. Felícia. tomando à parte Hermano, perguntou-lhe o que tinha Amália.
— Nada. Ela queixou-se?.
— Não, e é o que mais me aflige. Pois ainda não reparou na mudança que ela tem feito nestes últimos dias?.
A senhora mostrou-lhe de longe a moça que nesse momento sentada de perfil e pensativa era a mais bela estátua de melancolia, que um artista poderia imaginar. O mando ficou a olha-la compassivo.
— Eu lha dei, Hermano, para fazê-la feliz.
— E é o meu ardente desejo; e se bastasse o meu amor!....
A entrada do Sr Veiga pôs termo a esse diálogo. D. Felícia. aproximou-se da filha e tentou ainda surpreender a causa daquela mágoa. Desta vez não fez nenhuma pergunta direta; indagou disfarçadamente de mil coisas a ver se descobria algum arrufo. A moça, porém, não manifestava a mais leve sombra de ressentimento...
Eram dez horas.
Amália estava só e pensava no seu destino quando Hermano veio, como costumava, sentar-se perto dela. Conversaram algum tempo.
— Anda triste, Amália? disse por fim o marido.
— E não tenho razão, Hermano?.
Ele tomou a mão da mulher, e atraindo-a a si reclinou-se para beijar-lhe o rosto. Amália, cheia de rubores e júbilos. palpitante de emoção, abandonou-se ao doce impulso; mas de repente, faltando-lhe o apoio, o talhe descaiu sobre o recosto. .
Hermano soltara-lhe as mãos, no momento em que seus lábios iam tocá-la; e erguera-se pálido, hirto, com a visão pasmada, como se um espectro surgisse a seus olhos.
— Perdão! murmurou com a voz abafada.
Esta súplica, porém, Amália conheceu que não se dirigia a ela, pois o olhar do marido passava por ama de sua cabeça e fitava-se além.
Afinal dominando-se, sentou-se de novo, reportando à mulher aquela mesma exclamação com a V02 mais livre.
Amália sob a influência daquele estranho pavor, emudecera. O marido não se animou a quebrar esse doloroso silêncio. Depois de um instante de perplexidade, murmurou umas palavras de despedida, levantou-se e saiu do toucador.
O primeiro sentimento de Amália depois da surpresa que lhe causara esse fato foi a revolta contra o império que exercia a lembrança de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza desse homem que se deixara subjugar àquele ponto.
A mulher, ou antes, a sombra que sala do seu túmulo para disputar-lhe o marido, ela a odiava. Que direito mais tinha Julieta sobre Hermano? Deus não os havia separado, levando-a deste mundo e deixando-o, a ele, livre de amar e escolher outra esposa?.
Esse marido lhe pertencia agora; e ninguém lho podia roubar. Tinha-lhe jurado fidelidade; e só ela podia dar-lhe a ventura. Essas recordações que afligiam incessantemente o espírito de Hermano, eram uma vingança de Julieta. Essa mulher nunca tinha amado sinceramente o esposo; pois não sabia sacrificar-lhe o egoísmo de sua afeição.
A este assomo, ou talvez delírio de sua imaginação exaltada pela idéias fantásticas do mando, sucedeu, como era natural, o desanimo, o abatimento, a prostração do como e do espírito.
Vergou ao jugo da fatalidade que a oprimia; e compreendeu que só havia para aquela situação insolúvel uma saída. Era a separação.
Cumpra romper quanto antes o laço que não era mais vínculo de união, e sim a algema de um .
Mas como? Que razão daria a seus pais e ao mundo para aquele ato de tamanha gravidade e escândalo! De si não se preocupava. O que não queria era lançar qualquer mácula sobre o marido, a quem amava, e sujeitá-lo à reprovação geral.
Falada a Hermano logo no dia seguinte, e combinaram o melhor meio.
Separar-se-iam como dois irmãos queridos que o destino aparta e longe, lembrando-se um do outro revivendo os dias felizes que haviam precedido o seu casamento se amariam eternamente.
Mais tarde, talvez!....
Essa meiga esperança veio afagar o seu pensamento, cerrou-lhe as pálpebras e trouxe-lhe um sono plácido, depois de tão violentas emoções.