O Padre Sá subiu as escadas da casa em que morava, depois de fechar a porta da rua, recebeu uma vela das mãos de um preto, seu criado, e foi direito ao gabinete, onde tinha os livros, a escrivaninha, uma rede e alguns móveis mais. Não tirou a batina; era o seu trajo usual, dentro ou fora de casa; considerava-a parte integrante da pessoa eclesiástica.
O Padre Sá tinha cinqüenta anos; era de estatura mediana, calvo, com alguns cabelos raros e brancos na nuca em volta da cabeça. Os olhos eram azuis, de um azul desmaiado, e ainda com muita luz, mas uma luz suave e penetrante, que dominava e atraía como o sorriso que lhe pairava freqüente nos lábios. Das palavras que lhe ouvimos, no capítulo antecedente, não conclua o leitor que o Padre Sá não tinha alguma hora de bom humor na vida. Sua índole era jovial; mas ele sabia conciliar a natureza com a austeridade do cargo. Ria, e amiúde, mas um riso honesto e paternal, que era um encanto mais no sacerdote.
Sentou-se o padre em uma vasta cadeira rasa, tirou de cima da mesa o breviário e leu durante alguns minutos. Deram as nove no relógio da casa; veio o criado saber se o padre queria tomar chá; e recebendo resposta afirmativa, voltou pouco depois, trazendo-lho em uma larga bandeja. O chá era para duas pessoas. Onde está o companheiro do padre? perguntaria a leitora, se não visse apontar à porta da saleta a figura risonha e esbelta de uma moça.
— Sua bênção, titio, disse a moça caminhando apressadamente para ele; — demorou-se mais do que me disse. Com um ar tão úmido! Aposto que ainda não descalçou os sapatos?
— Não, Lulu, nem é preciso, respondeu o Padre Sá, pegando-lhe na mão. Estou afeito a temporais e umidades. Anda fazer o chá, que é tempo. Nove horas, não?
— Deram agora.
Lulu aproximou-se da mesa e preparou o chá para o velho padre que a contemplava satisfeito e feliz.
— Veja se está bom de açúcar, disse ela entregando-lhe a xícara.
— Há de estar, como está sempre, respondeu o tio; tanto te acostumaste a servir-me, que nunca há açúcar, de mais ou menos. Excelente! continuou ele, levando a colherinha à boca. Agora faze o teu chá e ouve uma notícia.
Lulu preparou uma xícara de chá para si e sentou-se do outro lado da mesa, diante do padre. Era uma deliciosa figurinha delgada e quebradiça cintura de vespa, mãos de criança e sobre tudo isto, uma voz angelical e doce, que adormecia o coração. Adormecia é a expressão verdadeira; podia-se viver ao pé dela sem que o coração pulsasse de amor, tão acima e fora da realidade parecia aquela amável criatura. Não havia fogo em seus olhos claros e serenos; havia luz somente, luz branda como a de luar, que se derramava por todo o rosto, alvo e levemente corado. Os cabelos, penteados em bandós, iam juntar-se atrás da cabeça e caíam em duas tranças finas, atadas na ponta por laços de fita azul. Azul era a cor do cinto que trazia destacando sobre o branco do vestido de cassa, cortado e trabalhado com extrema simplicidade. Nenhum enfeite mais; e quadrava-lhe tanto aquela ausência de adornos, que parece lhe destoaria o menor deles que se lembrasse de pôr.
O Padre Sá admirou durante alguns instantes a sobrinha, não ostensivamente, mas à socapa, com uma reserva e discrição, cujo sentido era fácil de adivinhar. Ele não queria acordar-lhe o sentimento da vaidade, que faria desmerecer-lhe a natural beleza, cujo maior encanto era ser inconsciente e singela. Além disso, e antes disso, a alma vaidosa ficaria mais perto do pecado; e o Padre Sá tinha posto todo o seu zelo em educar aquela alma na prática das virtudes cristãs.
— A tia Mônica onde está? perguntou o velho sacerdote, depois de alguns instantes.
— Deitou-se hoje mais cedo, respondeu a moça, dói-lhe a cabeça, creio eu. Mas que notícia é a que me quer dar, titio?
— Curiosa! murmurou o tio sorrindo.
— A culpa é sua.
— Uma notícia agradável a Deus, disse o padre reassumindo o seu ar grave; um servo do altar alcançado por mim. O Pedro Mendes...
— Quer ser padre? interrompeu a moça admirada.
— Parece-me que sim. Há algum tempo notei nele certa vocação eclesiástica; ouve-me com tanta atenção e respeito, é tão curioso das coisas sagradas, aprende tão depressa as lições que lhe dou nas minhas horas vagas, que me pareceu ver nele um bom levita do Senhor. Ontem, falei-lhe francamente nisso; e obtive boa resposta... Deita mais chá.
O padre estendera a xícara; a moça obedeceu prontamente.
— Mas parece tão criança, para padre! observou Lulu, restituindo a xícara ao tio.
— Oh! mas daqui até lá! Pensas que eu tomei ordens com esta calva e estes cabelos brancos? Certamente que ele não vai tomar ordens amanhã. A resposta que obtive foi que tinha vontade de servir a Igreja; fiquei de falar à mãe, e agora mesmo venho de lá!
— Ah!
— D. Emiliana não me deu resposta definitiva, mas creio que não haverá obstáculo sério. Imagina tua minha satisfação. Os que são verdadeiramente dedicados ao serviço do altar, como eu, têm um gosto infinito em colher bons servidores para ele, almas cândidas, vocações sinceras, fortes e puras! Se me sai naquele um pregador! Um Sampaio! um Mont’Alverne! Se me sai um bispo! Talento tem ele; muita compreensão e vontade de saber...
O Padre Sá continuou a louvar o futuro colega e a falar das vantagens da vida eclesiástica, a melhor de todas, dizia ele, se há vocação. Lulu tinha acabado o chá e ouvia-o com muito menos interesse do que a princípio. Educada pelo tio, compreendia e aprazia-se naquele gênero de conversação, contudo, era necessário que ela não durasse muito para poder estar atenta. O tio percebeu finalmente, e tratou de coisas menos austeras. Veio um tabuleiro de damas, jogo inocente em que os dois concorriam às vezes alguns minutos. Jogaram até às dez horas; despediram-se e foram dormir.
— Ah! disse o padre, depois de abençoar a sobrinha; sabes se o Alexandre estará doente?
— Não sei.
— Há dois dias que não aparece; é preciso mandar saber dele amanhã. Bela alma, aquele rapaz!
Lulu corou um pouco; beijou-lhe outra vez a mão e saiu. O tio acompanhou-a com olhos namorados, e ficou durante algum tempo concentrado e pensativo. Depois murmurou em latim este versículo dos Cantares:
Eu me assentei debaixo da sombra daquele a quem tanto tinha desejado; e o seu fruto é doce à minha garganta.