Naquela mesma tarde, dirigiu-se Pedro à casa do Padre Sá, levando na ponta da língua uma lição latina que o padre lhe dera na véspera, e saboreando de antemão os aplausos do mestre. Ia lépido e risonho, pela Gamboa fora, com a alma ainda mais azul do que estava o céu naquele momento, e o coração a bater-lhe tão forte como as vagas na areia da praia. O Padre Sá, se o visse naquele estado, se pudesse adivinhar todo o júbilo daquele coração, daria graças ao céu pela rara pérola que lhe fora dado achar para a coroa mística da Igreja.
Entretanto, o discípulo tinha outra cara, quando ali entrou. A comoção ou acanhamento ou o que quer que fosse tirava-lhe o tom expansivo do semblante.
— Ora, venha cá, meu futuro bispo! exclamou o Padre Sá, logo que o viu entrar; — não core que ainda o há de ser, se tiver juízo e Deus o ajudar. Resposta, nenhuma?
— Nenhuma.
— Oh! mas eu estou certo de que há de ser favorável. Seu tio é homem de juízo.
Pedro fez um gesto de assentimento, e estendeu a mão à sobrinha do padre que entrava nesse momento no gabinete. A moça assistiu à lição de Pedro; e a sua presença foi antes prejudicial que benéfica. O discípulo sentiu-se acanhado, esqueceu o que sabia, e recebeu alguns conselhos paternais do padre, sem ousar dar nenhuma desculpa.
— Não o censure, titio, disse a moça; fui eu a causa de alguns esquecimentos do Senhor Mendes; devia ter-me retirado.
— Oh! não! murmurou Pedro.
— Devia.
— Confesso que ontem não pude estudar a lição, disse Pedro com voz trêmula.
— Basta, declarou enfim o padre; sair-se-á melhor amanhã.
Havia já dois meses que o filho de D. Emiliana freqüentava a casa do Padre Sá, e ia regularmente receber as lições que ele lhe dava. A compostura do moço era exemplar; o gosto com que o ouvia, a facilidade com que retinha o que ele lhe ensinava, a vocação enfim que o padre lhe achou, foram outros tantos laços que mais intimamente os prenderam, um ao outro. Além daquelas qualidades, Pedro era bom conversador, dotado de maneiras afáveis, e tinha a pachorra (dizia o Padre Sá) de aturar uma companhia aborrecida como a dele.
Verdade é que a companhia era aumentada com a de Lulu, que, se raras vezes assistia às lições do moço, vinha conversar com eles o resto do tempo, bem como Alexandre que um dia teve igualmente idéia de acompanhar o curso particular do Padre Sá. O padre deliciava-se com aquele quadro; e as suas lições de filosofia ou de história sacra, de teologia ou de latim, saíam-lhe menos da cabeça que do coração.
É de crer que se o padre Sá soubesse que o seu discípulo Pedro, futuro bispo, gastava alguma hora vaga na leitura do Gil Brás ou outros livros menos piedosos, é de crer, digo eu, que lhe fizesse amigável repreensão; mas o padre nada via nem sabia; e o discípulo não ia mal de todo. Demais, um por um ia-lhe Pedro lendo grande número de seus livros, que eram todos de boa doutrina e muita piedade. Ultimamente emprestara-lhe um Santo Agostinho; Pedro devorara-o e deu boa conta de suas impressões. A alegria do padre era sem mescla.
Naquela tarde, não houve trovoada; Pedro conservou-se lá até a noite. Às ave-marias chegou Alexandre; os dois moços estavam ligados pela afeição do mestre e tal ou qual analogia de sentimentos. Alexandre deu os parabéns a Pedro, que os recebeu com um modo modesto e grave. Saíram juntos, mau grado os olhares de Lulu, que pediam ao primo ficasse alguns minutos mais.
Iam calados a princípio; ao cabo de alguns minutos, Pedro rompeu o silêncio; louvou a alma, os sentimentos e as maneiras do padre, a felicidade que se respirava naquela casa, a boa educação de Lulu, finalmente, tratou do seu futuro e da carreira que se lhe ia abrir.
Alexandre ouviu-o calado, mas não distraído; concordou em tudo com ele, e quando veio o ponto da carreira eclesiástica, perguntou:
— Aceita essa profissão por seu gosto?
Pedro hesitou um minuto.
— Aceito, disse enfim.
— Pergunto se por seu gosto, tornou Alexandre.
— Por meu gosto.
— É vocação?
— Que outra coisa seria? observou Pedro.
— Tem razão. Sente um pendor irresistível para a vida da Igreja, uma voz interior que lhe fala, que o atrai violentamente...
— Como o amor.
— Oh! deve ser mais forte do que o amor! emendou Alexandre.
— Deve ser tão forte. O coração humano, quando alguma força o solicita, qualquer que ela seja, creio que recebe igual impressão. O amor é como a vocação religiosa; como qualquer outra vocação, exerce no homem o mesmo poder...
— Não, não creio, interrompeu Alexandre. A vocação religiosa, por isso mesmo que chama o homem a uma missão mais elevada, deve exercer influência maior. O amor divino não pode comparar-se ao amor humano. Soube de algum sacrifício igual ao dos mártires da fé?
Pedro refutou, como pôde, a opinião do companheiro; e este redargüiu com argumentos novos, falando ambos com igual calor e interesse. A conversa parou, quando ambos chegaram à porta da casa de dona Emiliana; Pedro entrou e o outro seguiu caminho.
D. Emiliana não pôde atinar com a razão por que o filho naquela noite parecia tão preocupado. A verdade é que Pedro tomou o chá distraidamente; não leu nem conversou, retirou-se cedo para o quarto, e só muito tarde conseguiu dormir.
— Vou hoje decidir o teu negócio, disse-lhe D. Emiliana no dia seguinte.
— Ah!
— Teu tio vem cá hoje, continuou ela. Entender-me-ei com ele...
— Sim, o amor divino...
— O amor divino? repetiu D. Emiliana espantada.
— E o amor humano, continuou Pedro.
— Que é?
— A vocação religiosa é superior a qualquer outra.
— Compreendo; tens razão.
Pedro só ouvira estas últimas palavras da mãe; e olhou para ela com ar de quem saía de um estado de sonambulismo. Procurou lembrar-se do que acabava de dizer; e só muito confusamente repetiu mentalmente as palavras vocação religiosa, amor divino e amor humano. Viu que a conversa da noite anterior lhe ficara gravada na memória. Entretanto, respondeu à mãe que efetivamente o estado eclesiástico era o melhor e mais puro de todos os estados.
Suas irmãs aplaudiram de coração a idéia de fazer-se padre o rapaz; e o irmão mais moço aproveitou o caso para manifestar o desejo de ser sacristão, desejo que fez rir a toda a família.
Restava a opinião do tio, que se não fez esperar e foi de todo o ponto conforme com o gosto dos demais parentes. Estava padre o moço; só lhe restavam os estudos regulares e a sagração final.
A notícia foi recebida pelo Padre Sá com verdadeira satisfação, tanto mais sincera quanto que recebeu a resposta de Dona Emiliana em momentos dolorosos para ele. Sua sobrinha jazia na cama; fora acometida de uma intensa febre de caráter grave. O velho padre deu um apertado abraço no moço.
— Oh! eu bem sabia que não havia nenhuma dúvida! exclamou ele.
Pedro soube que a moça estava enferma, e empalideceu quando o padre lhe deu esta triste notícia.
— Doença de perigo? perguntou o futuro seminarista.
— Grave, respondeu o padre.
— Mas ainda ontem...
— Ontem estava de perfeita saúde. Era impossível contar com semelhante acontecimento. Entretanto, que há mais natural? Seja feita a vontade de Deus. Estou que ele há de ouvir as minhas orações.
O Padre Sá, dizendo isto, sentiu uma lágrima borbulhar-lhe nos olhos, enxugou-a disfarçadamente. Contudo, Pedro viu-lhe o gesto e abraçou-o.
— Descanse, não há de ser nada, disse ele.
— Deus te ouça, filho!