NOTAS AO LIVRO VII.
Começa o poeta pela morte e exequias da ama de Enéas, cujo nome ficou á cidade e promontorio de Caieta, hoje Gaeta; e assim nos recommenda o amor e o respeito que nos cumpre consagrar ás mulheres que nutrem a nossa infancia com o sangue de seus peitos, aindaque não sejam as que nos geraram. O sensivel coração de Virgilio se regozijava de as fazer lembradas, como se vê no livro IV com as de Sicheu e de Dido; como tambem no V com Pyrgo, ama que fôra de muitos filhos de Priamo. Nisto deviam reflectir aquelles senhores que, depois de darem a seus filhos por amas as suas proprias escravas, as deixam ainda no captiveiro; e alguns, ingratos e inhumanos, continuam a usar com ellas de todo o rigor! Um homem de bem e dos melhores jurisconsultos que temos, Dr. Caetano Alberto Soares, entre muitas medidas que propoz ás Camaras Legislativas para se ir acabando a escravidão, foi a da alforria das amas de baixo de certas regras; mas os seus bons desejos quebraram-se no escolho de inveteradas preoccupações. O' meu paiz! quando serão livres todos os que repirarem no teu seio!
La Harpe, só recommendavel[1] no ajuizar a literatura franceza, abraçou a opinião de estudante que os seis ultimos livros eram inferiores aos primeiros: hoje em dia he cousa plenamente refutada. Certo he que nos ultimos se encontram mais negligencias de estilo, porque o autor não teve tempo de as corregir; e, nada menos, os pedaços principaes mesmo em estilo não cedem ao que ha de melhor no II, no V, no VI. Quanto á invenção, deste livro em diante o poeta se eleva ás alturas de Homero com esforços de ingenho. O que sôbre tudo convem denotar, he a moral pura, o conhecimento do homem e os rasgos sensiveis, que multiplica ainda mais para os fins do seu poema.
Pelo que toca á utilidade, sam mais proficuas as lições do poeta na segunda metade da sua epopéa. Se nos quer mostrar a obrigação de nos sacrificarmos em defensa de nossos paes, elle nos pinta Lauso, filho do atheu e cruel Mezencio, e o nobilissimo joven executa prodigios de valor e morre víctima da sua ternura. Em Niso e Euryalo[2] vemos o exemplo da amizade mais desinteressada, e em Euryalo o poeta ainda representa a mesma piedade filial. Em Evandro, em Amata e na mãe de Euryalo, o maternal e paternal amor he descripto com as côres mais vivas e delicados matizes: Evandro, guerreiro antigo, chora a morte do seu Pallante, e a consolação lhe vem só de que Enéas o vingará em Turno; Amata estremece por Lavinia, mas o zêlo da autoridade maternal he que fórma o fundo do seu caracter, e he o que a leva a morrer cega de desespêro; a mãe do infeliz mancebo, carinhosa e doce, rompe em queixumes, lamenta e se amesquinha, porêm conforma-se com a desgraça. O amor da patria he puro de toda mácula em Enéas; he em Turno misturado com o orgulho e com a ambição; he ternissimo e saudoso em Anthor, que expirando se recorda da sua querida Argos.
8-20. — 8-22. — Continúa a navegação: Enéas sahe de Gaeta, e vai costeando a ilha e terras de Circe. O estilo he o mais perfeito; e a idéa de estarem do mar a sentir o cheiro que recendia dos bosques da deusa, a ouvir os gemidos e urros dos miseraveis que ella transformara em brutos, não pode ser mais poetica. Fiz tudo por imitar as onomatopeias do original, e não obstante a belleza do portuguez, apenas do verso 16-20 tenho dessa harmonia um fraco arremêdo: as consonancias leonum, recusantum, rudentum, magnorum luporum, sam intraduziveis; e quando a nossa lingua cede, será difficil a outra luctar com a latina.
37-45. — 39-47. — Enéas alguns versos atrás acaba de avistar o Tibre e o termo de tam comprida viagem, e descreve-se o rio, com suas margens semi-selvaticas, de um modo superior. Conhece então o poeta que não se pode já sustentar com as recordações homericas, mas que lhe cumpre uma nova carreira: a sua empresa vai ser maior, e lhe he mister grande invenção; e, com effeito, nos ultimos seis livros o seu talento creador cresce cada vez mais. Daqui em diante se começa a perceber que a epopéa latina, enxertada em grego tronco, tem de produzir ramos e fructos exoticos, bellos e saborosos: nós o veremos, e teremos accasião de verifical-o.
84. — 87. — Uso de mephyte pelo mao cheiro, assim como se usa de Marte pela guerra, Ceres pela agricultura; poisque Mephyte era a deusa do fedor. Para tudo havia um deus entre os antigos.
116-117. — 119-120. — Esta passagem tem sido grandemente censurada; mas os defensores della sam homens da plana de Addisson e de Voltaire, que nos fazem vêr que Virgilio não se podia afastar da tradição, e isto, que nos parece pueril, estava consagrado nas antiguidades romanas. Quanto ao alludens, eu o tómo na accepção de brincar, de gracejar. Iulo, observando que se tinham comido as mesmas codeas ou fundos das empadas, a que chamavam mesas, dice brincando: «Hui! que as mesas tragámos.» E o pae, ouvindo aquellas vozes, exclamou e conheceu a maneira que buscara o fado para verificar-se a predicção. Não estou pela hypothese do nosso digno compatriota o Snr. João Gualberto, de que Iulo com o seu dito alludia á mesma predicção; porque acho mais natural que um menino gracejasse á vista das mesas de massa que se tinham tragado, e que sem pensar no fado então se exprimisse. Enéas, sôbre quem recahiam os maiores cuidados, he que devia dar primeiro pelo cumprimento dos oraculos; tanto assim, que meditando no caso, rompeu na exclamação. Ora, não he provavel que o mesmo que Iulo tinha percebido immediatamente, só o fôsse depois de algum espaço por Enéas, que aliás pensava a miude nessa fome, que o obrigaria a roer as proprias mesas. Sigo portanto a interpretação antiga, que he a de Annibal Caro e do maior número; engeitando igualmente a de João Franco, que dá ao alludens a significação de alludir, mas traduz no sentido de que Iulo não alludia, quando o Snr. João Gualberto opina que alludia; o que he inteiramente opposto. A accepção de alludere por gracejar he corrente nos autores latinos.
128-129. — 130-131. — «Aqui ha, diz Mr. Tissot, uma singular inadvertencia. Como o principe, que ouvira á Sibylla: «Guerras, horridas guerras; vejo o Tibre a volver ondas de sangue humano!...» Como o guerreiro que tem um rival que debellar, povos que submetter, uma espôsa e um throno por conquistar, pode affirmar que toca o fim dos seus trabalhos?» — Alêm de que positura modum não he exactamente tocar o fim; o poeta só falla dos trabalhos de uma longa viagem de sete annos, a qual se acabou desde o momento em que, reconhecendo o lugar proprio para se fortificar, Enéas saudou a terra promettida; mas, quanto á guerra, era um novo trabalho que nem começado estava. De mais, o chefe, que via findar-se a navegação perigosa e prolixa, para animar os seus usa de termos que indiquem e persuadam que o restante não he de tanta monta como as lidas passadas. Não sei como faz taes reparos quem está habituado ao estilo conciso do poeta, e em geral dos escritores latinos. E não se poderá accrescentar que esse guerreiro, que tanto estremeceu com a idéa de morrer no mar sem glória nem sepultura, agora avaliava em bem pouco os perigos dos combates, que seu valor esperava superar? Esta supposição realça-lhe o heroismo, e como o texto em nada a desmente, não he muito attribuir um tal pensamento a tam sublime autor.
147. — 148. — Cratera era um vaso maior que a taça (patera), e nella vinha para a mesa o vinho, e dalli se iam enchendo os copos. Uso ás vezes do termo latino cratera; mas, quando não cabe no verso, nunca o substituo por taça, mas por copa. Ainda que vulgarmente se confundam estes dous vasos, a taça he mais pequena, e a copa vem do latim cupa, que significa uma talha, ou um vaso de tanôa.
312. — 313. — A falla de Juno, e em especial este verso tem sido por todos admirado. A deusa, não podendo alhures encontrar auxiliares contra Enéas, convoca Alecto para accender a discordia e a guerra. A acção ganha aqui novo interêsse, e começâmos a enxergar os novos trabalhos que tem de sobrevir aos Troianos. Não posso alcançar o porque varios criticos acham este livro um tanto frio: só vejo que o poeta segue a sua fábula com discrição, e destribúe sabiamente as partes, sempre com o fito no desfecho da obra.
351-405. — 343-408. — Principia com Alecto. Esta introduz o seu veneno em Amata. Amata foge com Lavinia, depois que[3], buscando reduzir o marido a favor de Turno, não o poude conseguir. Sacrifica a Baccho, excita as matronas contra Enéas, promette que a filha só será de seu sobrinho Turno. Tudo isto he com uma rapidez, com um estilo, com movimentos inimitaveis; mas a crítica tem censurado a passagem em que a raínha, desesperada e a vaguear pela capital, he comparada a um pião, que rodopia tocado pela trena dos meninos. Delille, com prudente reserva, diz que não ousa affirmar que esta comparação quadre perfeitamente á poesia epica; mas que he mister convir que o vulgar do assumpto he compensado pela riqueza das imagens e das expressões; podendo ajuntar-se que o poeta latino procurava rebaixar o caracter de Amata, e convinham-lhe para sujeito da comparação as cousas mais communs.
406-474. — 409-477. — Depois que Alecto espalha a desavença no seio da familia de Latino, toma a figura de uma velha sacerdotiza de Juno, e vai excitar a Turno. He aqui principalmente que a pintura desta Furia sobe ao cume da perfeição. Os discursos della e de Turno, o acordar deste bradando por armas e procurando-as em tôrno do leito, as ordens violentas e immediatas, a comparação com a agua a ferver e a trasbordar da caldeira, as imagens que o poeta emprega, a prompta obediencia dos Rutulos, tudo he da mais bella composição; tudo presagia a procella que vai desfechar. Este livro setimo he o preparativo para os outros; faz o officio do primeiro acto de uma tragedia; e, como deixa em suspenso o leitor, alguns não o apreciam devidamente: cumpre consideral-o em relação aos subsequentes , para se avaliar todo o artificio do autor.
475-504. — 478-507. — Para servir a Juno, Alecto não descança: vai têr ao sítio em que Iulo caçava, e pondo o cheiro de um veado nos focinhos dos cães, os faz correr atrás delle; Iulo, indo após os cães, atira e mata o veado: este por acaso era um cervo manso da filha de Tyrrheu, maioral e couteiro do rei; e daqui se originou uma peleja entre os aldeãos latinos, excitados pelos queixumes da dona do cervo, e os Troianos que vem em defesa de Ascanio. Macrobio, com outros criticos, julga pequena a causa da guerra; sem advertir que esta não foi a causa, mas a occasião: a causa era o odio aos estrangeiros, e o excitamento que recebia o povo por via dos partidarios de Turno. Quanto á occasião do combate, isto he a morte do cervo, digo não só que muitas vezes sam motivo de guerra cousas bem insignificantes, como a este proposito observou o doutissimo La Cerda, mas que Virgilio o escolheu optimamente, por duas razões: primeira, entre aldeãos simples, em uma sociedade ainda pouco polida, a morte de um animal estimado pela filha de quem os governava, era um estímulo poderoso; a segunda he que desta ficção nasceu um contraste que realça os horrores dos conflictos: folga a imaginação de passar dos queixumes de Silvia, de scenas campestres e caseiras, ao ruído das armas e aos feitos mais heroicos. Se em La Fontaine sobremaneira nos enternece a aguia a quem quebraram os ternos ovos, sua doce esperança, este quadro em Virgilio não enternece menos, e o enternecimento se nos prolonga mais: o veadinho de Silvia parece um menino que, sendo ferido, vem chorando buscar asylo ao collo de sua mãe. Sente-se com delicia reapparecer aqui o talento bucolico do cantor das maravilhas de Roma. Estou persuadido de que esta passagem serviu, não para o entrecho e a invenção, mas para o tom com que foi escrito um dos mais bellos dramas da nossa lingua, a pastoral intitulada Licoris do suavissimo Quita. Malditos criticos! tem estupendo saber, vastos conhecimentos; mas não sei que lhes falta sempre, ao menos á maxima parte: os poetas se entendem melhor uns aos outros.
511-518. — 514-522. — Este lugar, onde se descreve Alecto subindo a uma choça e tocando rebate, fecha-se com o verso «Et trepidae matres pressere ad pectora natos.» Adaptei-lhe um de Camões, e assim faço algumas vezes.
535-600. — 590-606. — Depois que Alecto, havendo plantado a rixa, desce ao Tartaro por ordem de Juno, os aldeãos trazem o corpo de Almon e a cabeça de Galeso, e instigado por Turno, quer o povo obrigar o rei a declarar a guerra: Latino resiste, mas abandona as redeas do governo, amaldiçoando o seu principal motor. Este abandono, aliás proprio da fraqueza do velho, era necessario para deixar a Turno livre e senhor da acção. Tudo isto he calculado com maravilhoso discernimento. Alguns censuram o caracter de Latino, como se a epopéa devesse apresentar sómente heroes e valentões, sem aproveitar-se dos contrastes e desprezando a occasião de pintar o homem segundo as differentes idades e as circumstancias. A velhice e a longa paz tinham a Latino tirado a energia e as fôrças.
601-640. — 607-645. — Descreve-se aqui o uso romano de abrir o consul as portas do templo de Jano ao declarar-se a guerra; e, segundo o seu costume, Virgilio entronca esse uso na alta antiguidade, affirmando que a Latino pertencia desencerrar aquellas portas, mas que, recusando elle, a mesma Juno he que desmantelou os batentes e a couceira. Para não alongar estas notas, omitti muitas dessas allusões e estilos; mas, advertidos como estam os leitores, podem recorrer aos varios citados escritos, ao menos ao padre La Rue. Todos os preparativos, que se fazem nas differentes cidades, sam aqui designados; e assim pode o poeta lisongear a nação inteira, fallando dos lugares aos que eram naturaes de cada um delles. Deste artificio está cheia a Eneida; o que mostra quam nacional devera ser naquelle tempo. Neste ponto os Lusiadas não tem igual, excepto nas tres epopéas mais antigas, e ainda nos Martyres.
641-646. — 646-651. — Nos principios do livro ha uma invocação a Erato, a musa do amor, por isso que o motivo da guerra ia ser a rivalidade por causa de Lavinia; invocação que não tem agradado a muitos criticos, sendo do rancho Mr. Tissot. De corrida lembrarei que nos poetas latinos trocam-se as musas, como se observa no lyrico Horacio, que invoca Melpomene, Euterpe, Polymnia e outras; e he provavel que Virgilio, autor do epigrama sôbre o emprêgo das nove irmãs, conhecesse melhor esses usos do que os nossos criticos modernos. Nestes seis versos agora o poeta as invoca todas; porque entra a fallar dos guerreiros e dos exercitos, e sente que, indo emular a Homero na Iliada, necessitava do auxílio do côro inteiro.
647-654. — 652-659. — A descripção dos chefes que tem de combater os Troianos, principia de Mezencio e de Lauso, dous dos mais bellos caracteres da Eneida e da poesia epica. Em sete versos o autor nos diz quanto he mister, e só no adverbio nequicquam nos deixa entrevêr toda essa catastrophe: mais uma prova de que não podemos apreciar este livro sem reportarmo-nos aos restantes. La Harpe, com a leviandade que o destingue, depois de fallar muito mal da marcha do poema que elle não meditou, accrescenta que Virgilio espalha algum interêsse sôbre o joven Pallante, filho de Evandro: sôbre Lauso, filho de Mezencio; sôbre Camilla, raínha dos Volscos: o crítico passa em silencio os mesmos Evandro e Mezencio, que não podem ser mais interessantes; não reparou no caracter de Amata, e sôbre tudo na grandeza de Turno, que por vezes contrabalançaria a de Enéas, se a justiça e a moral não realçassem o heroe troiano. Mas qual he hoje o homem de gôsto que dá pêso ao que delirou La Harpe sôbre os escritores da antiguidade?
655-669. — 666-674. — Outro chefe he o formoso Aventino, filho de Hercules e da ministra Rhéa. Alguns heraldicos, por esta passagem, pretendem que a armaria sóbe aos tempos heroicos: não vejo porêm prova bastante para concluir que esses brasões antigos se perpetuassem nas familias. — Chamavam-se dolones certos bastões de ponta de ferro, oucos e contendo em si uma especie de estoque.
691. — 696. — Virgilio traz algumas vezes este verso: «At Messapus equum domitor, neptunia proles.» Ora eu o traduzo ao pé da letra, ora digo só o picador Messapo, ora o Neptunio Messapo, ora o cavalleiro Messapo; pensei que, uma vez traduzido literalmente, não era preciso que sempre o fôsse. O poeta Ennio, dizem, contava Messapo entre os seus avós, e he por isso que Virgilio compara os soldados delle a um bando de cysnes que louvam e cantam seu rei.
706-722. — 711-727[4]. — Aqui louva-se Clauso, outro chefe contra Enéas, de quem se diz proceder a familia Claudia, poderosissima em Roma, aparentada com Livia mulher de Augusto, e da qual nasceram muitos homens célebres em mal e em bem. Observe-se a arte com que Virgilio mistura as familias mais consideraveis, mostrando que descendiam tanto dos Troianos como dos Latinos, e que o povo romano estava por tal modo confundido, que em separado não existia raça vencida, nem raça vencedora. Isto he já um preparativo para a transacção proposta por Juno e acceitada por Jupiter no livro XII, isto he que se casasse embora Enéas com Lavinia, mas que o Lacio e os Latinos não perdessem o seu nome; que Roma herdasse conjuntamente as honras do sangue teucro e do italiano. As origens das differentes casas, de que se trata não só no V, mas neste e em alguns outros livros, deviam agradar muito na côrte de Augusto; e os criticos modernos, que a ellas tem pouco respeito, não se collocam naquella epoca para poderem melhor apreciar esta parte da Eneida. O têr-se considerado a nação romana como homogenea, postoque fôsse composta variadamente, era da mais razoavel política; política bem diversa da de muitos nobres francezes, que se jactam de provir dos conquistadores do seu paiz, que se crêm de outra massa que a do povo; e até alguns tem tido o descoco de escrever que as classes menos ricas ou as mais pobres, sendo a raça dos escravos das Gallias, tem obrigação de trabalhar para elles! Ora, os nossos fidalgos do Brazil, que se vam augmentando prodigiosamente, virão algum dia a affectar semelhantes pretenções?
723-732. — 728-738. — O cabo Haleso conduzia uma grande multidão de povos differentes, armados pela maior parte de aclides e de terçados falcatos; a aclide era ou uma especie de lança ou de clava com puas, atada a uma corrêa, pela qual tornava a ser colhida a clava depois do tiro; o terçado falcato era um alfange curvo como uma fouce, donde lhe vinha o nome.
741-743. — 746-749. — Cateia era uma lança pesada, de pouco alcance, mas de grande fôrça, usada pelos Gallos e os Teutonicos: adoptei o termo, porque não ha outro equivalente. Peltae eram broquéis em fórma de meia lua ou de folha de hera: fallando de Penthesiléa no livro I, eu traduzi lunados broquéis; aqui omitti o adjectivo por brevidade, e mesmo porque broquel he já um escudo mais pequeno, e não comprido como o escudo propriamente dito, ou como a adarga, e portanto mais semelhante ao que os Latinos chamavam pelta.
O poeta, que mórmente no livro V apresentou os Troianos mais conspicuos, neste setimo descreve os chefes e tropas italianas. La Harpe, que parece conceder ao autor só o talento do estilo e pouco mais, falla dos chefes da Eneida sem consideração, sem reconhecer a maior difficuldade vencida nos derradeiros livros, e como que leva a mal que Virgilio, deixando os vestigios gregos, celebrasse a Italia e os Italianos, quando este he o fim principal que se propoz. Para esclarecimento dos leitores menos intruídos vou dar uma idéa desses povos e dessas terras, servindo-me dos commentadores e varios outros escritores que trataram da materia. Este pequeno resumo porêm não dispensa os mais curiosos de os consultar especialmente.
A terra de Circe he o promontorio dito Monte-Circello; e a que d'antes se chamava a cidade de Circe, he hoje Civita-Vecchia. Mr. de Bonstetten, na sua Viagem ao Lacio, se exprime assim: «Tam viva he no povo a lembrança das velhas superstições, que nenhum dos habitantes do Monte-Circello se atreve a entrar na bella gruta sita no cume, que pensa o povo ter sido a mansão da maga Circe. Propondo a varios camponezes que me acompanhassem á gruta, recusaram-se todos; e apparecendo-nos um soldado de espessos bigodes, então dice eu: Eis-aqui um que não se me negará; mas o homem dos bigodes escoou-se á proposta de me seguir á casa de Circe: tanto se prolongam entre os povos lembranças taes!»
Quanto ao lugar de scena, diz Mr. de Bonstetten na obra citada: «Hoje a Isola sacra, que divide o Tibre uma legua acima da embocadura, entra pelo mar: no tempo de Enéas a praia estendia-se em linha recta, e o que sahe agora desta linha fazia parte do mar. Nas fozes desdobra-se pela arenosa campina um lago entre brejaes. Foi neste sítio que Enéas assentou o acampamento; tinha á direita, e um pouco adiante, o rio; o lago por detrás, e um terreno pantanoso estreitissimo entre o rio e o lago; na frente, a quinhentos passos, o mar: posição admiravel, subministrando-lhe a mata meios de se fortificar. — A uma legua do mar se levanta uma cadêa de collinas volcanicas de uns cem pés de altura; entre ellas e a praia corre uma rasa e fertil campina: eil-o, o theatro dos seis ultimos livros da Eneida, que vou descrever qual sería naquelles tempos. Avisto a meus pés, ao poente, um campo semi-cultivado, e a velha floresta semeada de clareiras; um pequeno lago azul se mette em meio de mim e do mar. Vólto-me, e vejo a leste uma serrania rodeando a immensa planicie. Então os cabeços, hoje nus, eram sombreados pela antiga mata que, em uma terra meio-laborada, ostentam[5] o cunho majestoso da natureza em sua fôrça nativa, ainda não desfigurada pelo homem. — A' meia legua, á esquerda, entre o mar e a collina, vejo na campina uma cidade, he Laurento; ao pé, da banda do mar, avisto uma verde planicie, um Campo de Marte, onde se exercia a mocidade; não longe do lago azul que se dilata para o rio, atrás da cidade, sôbre cem altas columnas de madeira se eleva um palacio, o de Pico; assombrado pela velha floresta, que lá das collinas assuberba a paizagem, e se desdobra ao longe para a parte do monte Albano. Descobrem-se na campina, no meio de bosques semi-roçados, agros e pastios, e traços frequentes de cultura entre o vastissimo arvoredo. Pascem pelo prado cavallos; alêm, cabanas redondas, com tectos elevadissimos de canniços, cercam-se de numerosos rebanhos: um povo guerreiro, semi-pastor, semi-agricultor, habita essas afortunadas ribeiras: o rio só se descortina aqui e alli atravez das umbrosas e copadas selvas das suas verdejantes margens.»
O Lacio continha o territorio dos Latinos, dos Volscos, dos Equos, dos Auruncos ou Ausonios, e dos Hernicos; o que se diz hoje a campanha de Roma. Nomeava-se paiz do Tibre o que hoje he a Toscana. Laurento he agora São Lourenço. «Sôbre o assento desta cidade, escreve Mr. Bonstetten, mudei tres vezes de parecer, e a final achei-o um pouco acima do Laurentum de Plinio, para junto das collinas de Decimo, á pequena distancia do pantano. Feito este meu trabalho com a leitura reiterada de Virgilio, fui consultar a carta, e lá no lugar do meu Laurento encontrei precisamente o nome de Selva Laurentina, e muito proximo, do lado da collina, o nome de Pico no de Trofusina di Picchi.» — Da fonte Albunea, de aguas sulfureas, nasce o Albula agora la Solforata, que pouco abaixo toma o nome de Tibre. O Numico junto de Lavinio, entre Laurento, o Tibre e a Lagoa, em baixo dos outeiros, desappareceu totalmente sob o solo volcanico: em um seu pequeno lago he que dizem se afogou Enéas. — Ardea, capital dos Rutulos, conserva ainda o seu nome em uma aldêa; Crustumerio, não longe de Roma, suspeita o padre La Rue que he o que chamam agora Marcigliano-Vecchio; Atina, no cimo do Apennino, tambem conserva o nome; Tibur, hoje Tivoli, he bem conhecida; Antemnas, hoje destruída, era assim dita pela sua situação na confluencia do Anio com o Tibre, ou da parte do paiz dos Sabinos ou no Lacio mesmo. Estas cinco cidades he que mais se empenharam no fabrico das armas contra os estrangeiros Troianos.
Mezencio, com o seu Lauso, commandava os de Agylla na Etruria, quasi nos confins do Lacio; tendo sido expulso da sua capital Coere, agora Cerveteri. — Aventino commandava uma porção de Sabinos, de lugares ao presente sob o dominio pontificio. — Ceculo commandava innumeraveis camponezes: os de Preneste, hoje Palestrina; os de Gabios, já destruída, entre Roma e Preneste; os das margens do Anio, ou o moderno Teverone; os de Agnania, capital dos Hernicos, povos que habitavam as cabeceiras do rio Amazeno, agora Toppia: Agnania existe ainda. — Messapo, de origem grega, dito filho de Neptuno, commandava os das duas cidades etruscas, Fescennia e Faleria. Em Fescennia he que se inventou o epithalamio; e, como então esses canticos eram licenciosos, chamavam-se versos fescinninos os versos obscenos. Faleria, agora Fatar, tem suas ruínas entre Viterbo e Montefiascone. Commandava tambem os do Soracte, ou monte di S. Silvestro; os dos campos Flavinios, só conhecidos pelos versos de Virgilio e de Silio Italico; os do lago e monte Ciminio, que alguns suspeitam ser o monte di Viterbo e o lago di Ronciglione; os de Capena, ou Canepina dos modernos. — Clauso commandava os Quirites priscos, isto he os da cidade de Cures, patria de Numa Pompilio; os de Amiterno, cidade do Apennino, junto do lugarejo di S. Vittorino; os de Ereto, na confluencia do Allia e do Tibre, agora Monte rotundo; os de Nomento, ao oriente de Ereto, agora Lamentano; os de Motusca, ou Trebula, alêm da Lagoa Reatina, agora[6] monte Leone; os do Velino, lago e rio, o lago hoje dito Lago di pie di Luco, o rio conservando o nome; os dos montes Severo e Tetrica, de posição incerta, que alguns crêm ser, aquelle o Monte-Negro, este o di S. Giovanni; os de Casperia, agora Aspera; os de Forulo, junto de Amiterno, aldêa destruida; os do rio Himella, agora Aia; os do Tibre e os de Fabaris, agora Farfa; os de Nursia, agora Norsia no Apennino; os de Horta, agora Orta na Toscana; os das margens do Allia, agora rio di Mosso, a que o poeta chama infausto, porque alli foram os Romanos desbaratados com grande matança pelos Gallos Senonenses, ou de Lyão. — Haleso commandava os do Massico, hoje Monte di Dragone; os Auruncos e os Sedicinos, que faziam parte da nação osca, povo habitante das margens do Liris vizinho dos Volscos; os de Cales, agora Calvi, junto a Capua; os do Vulturno, agora Natarone; os de Saticula, que alguns crêm ser Caserta. — Ebalo commandava os Telebas de Caprea, ilha á entrada do golpho de Napoles, de fronte de Sorrento; os das margens do Sarno, que atravessa a Campania, banha as ruínas de Pompeia, e se perde naquelle golpho, tendo ainda o nome antigo; os de Rufras, hoje Ruvo, da banda da Basilicata; os de Batulo e Celenna, lugares desconhecidos; e os de Abella, perto de Nola, ao norte do Sarno, hoje Avella-Vecchia, fertil nas nozes que della tiraram o nome de avellans. — Ufente commandava os de Nersas (e não Nursia, cujos guerreiros eram guiados por Clauso), lugar desconhecido; e tambem os Equicolas, ou Equos, ao sul dos Sabinos e ao norte dos Hernicos, nas montanhas em que nasce o Teverone, bem como as aguas Marcia e Claudia que os Romanos trouxeram á cidade, por um aqueducto de vinte leguas ainda subsistente. — O sacerdote Umbro commandava os de Marrubia, hoje Morrea, capital dos Marsos, ao pé do lago Fucino; povos que passavam por feiticeiros e curadores de cobras, como hoje se dizem muitos pretos no Brazil. Perto ficava o bosque de Angicia, ao occidente do lago Fucino, e junto ao bosque he o moderno Luco. — Turno, general em chefe, commandava especialmente os de Ardea, que o poeta chama Argivos, por têr sido fundada pela Argiva Danae, filha de Acrisio; parte dos Auruncos, que habitavam com os Volscos e outros desde o Tibre ao rio Liris, hoje Garigliano; os seus Rutulos, entre o Numico e a cidade de Ancio, que pertencia aos Volscos; os Sicanos, não os da Sicilia, mas um dos povos do Lacio já extinctos, e por isso o poeta os chama veteres; os Sacranos, povos desconhecidos, sôbre os quaes ha conjecturas mais ou menos arriscadas; e os Labicos, da cidade hoje dita Zagarualo, o qual deu seu nome á via Labicana, e estava arruínada no tempo de Virgilio. Satura he porção da Lagoa Pontina, que se estende desde o lugar tres tabernas, hoje Cisterna, até Terracina; e recebe dous riachos, o Stura ou Astura, e o Ufente ou Ofanto. — Camilla commandava os seus Volscos. O poeta encerra este livro com a descripção da ligeireza desta raínha, e nos deixa gravada na lembrança tal particularidade, que servirá opportunamente. Nesta descripção chama-se o bastão que ella trazia pastoralem myrtum; que eu traduzi myrteo cajado, omittindo o adjectivo pastoral, porque em portuguez cajado só por si quer dizer o bastão do pastor.