LIVRO XI.
Já do oceano a aurora despontava.
Bemque urja o tempo de inhumar seus mortos
E o turbe o funeral, no primo eôo
Piedoso o vencedor cumpria os votos.
5N’um combro tancha desramada enzinha,
Veste-lhe de Mezencio o arnez lustroso,
Trophéo que a ti, Bellipotente, sagra:
Os dardos rotos, as sanguentas crinas
Lhe ata; á esquerda o pavez e a tiracollo
10Suspende a eburnea espada. E assim de ovantes
Capitães escoltado, exhorta os socios:
«Fóra o temor, varões, que pouco resta
Por fazer; eis o espólio, eis as primicias
De um rei suberbo, que estas mãos puniram.
15Eia, a Laurento agora: arma, arma, alerta;
Animo e fé! dos numes quando o aceno
Mova o campo, as bandeiras arrancadas,
Nem outro accôrdo vos detenha incautos,
Nem retarde os mancebos frouxo mêdo.
20Entretanto os finados sepultemos,
Conta exigida no ínfimo Acheronte.
De feraes dons ornai-me os que esta patria,
Comprada com seu sangue, nos legaram;
Vá primeiro de Evandro aos tristes muros
25Pallante, a quem não pobre de virtude
Mergulhou trago acerbo em noite escura.»
Dice, e á tenda chorando se retira,
Onde o alumno defunto Acetes guarda,
Velho escudeiro do Parrhasio Evandro,
30Zeloso aio do filho, mas não dado
Com tam feliz auspicio. A turba em cêrco
E os famulos em dó, conforme o estilo
Desgrenhadas o seguem phrygias donas.
Pelos altos portões mal entra Enéas,
35Levantam crebros ais, nos peitos ferem,
E remuge o real do lucto e pranto.
Como elle o níveo corpo, a face e a testa
Sustida olhou, da ausonia choupa o rombo
No seio liso, em lagrimas rebenta:
40«Pois surriu-me a fortuna, e a mim te inveja,
Moço infeliz, que o reino meu não visses,
Nem tornasses em pompa ao lar paterno?
Não foi esta a promessa a Evandro feita;
Que abraçado, á partida, ao grande imperio
45Me propunha, e entre sustos me advertia
De que era aspera a guerra e forte a gente.
E ora talvez, de balde esperançoso,
N’ ara devoto offrendas accumula,
Quando ao joven, já quite dos Supremos,
50Exequias vãs prestamos. Desgraçado!
O funeral cruel verás do filho!
Que triste vólta! oh sonho de triumphos!
Eis a fé minha! Mas com vis feridas
Não te envergonhará, nem, salva a prole,
55Tu pae desejarás o eterno somno.
Ai! quanto, Ausonia, quanto, Iulo, perdes!»
Neste lamento, escolhe mil guerreiros,
Que o misero cadaver acompanhem,
Obsequio extremo, e ás lagrimas assistam
60Do afflicto pae; devida, mas pequena
Consolação do nojo e trago ingente.
Brando esquife engradado alguns de vêrgas
De medronho e carvalho não remissos
Tecem, de folha o extructo leito ensombram.
65Fica na agreste cama o excelso moço,
Qual por virginio pollice apanhada
Molle violeta, ou languido jacintho;
A quem brilho nem cheiro inda fallece,
Mas não vigora e nutre a mãe terrena.
70Duas purpúreas opas recamadas
Enéas tira, em que a Sidonia Dido
Com doce esmêro trabalhara mesma,
As telas de ouro fino entretecendo:
Mesto, em honra final, véste uma ao joven,
75Com outra a coma para as chammas véla.
Manda lanças, frisões e tanto espólio
Da laurentina pugna, em longa serie
Dispôr; e atrás das costas maniatados
Os que ás sombras destina e regar devem
80A pyra com seu sangue; e os chefes tragam
De hostis arnezes troncos revestidos,
Onde inimigos nomes se insculpiram.
Conduzem de annos gasto o pobre Acetes,
Que a punhadas o peito, o rosto a unhas
85Desfigurando, pelo pó se estira.
Vem do rutulo sangue o tinto coche;
E atrás, posto o jaez, humidas gottas
Ethon, fero corsel, dos olhos verte.
Vem o elmo e a lança; o mais roubou-lhe Turno.
90Lento a phalange marcha etrusca e teucra,
De armas em funeral o arcadio bando.
Dêsque em ordem se alonga o sahimento,
Retem-se Enéas, e suspira e geme:
«A outros prantos nos chama a fatal morte.
95Salve, eximio Pallante, e para sempre
Adeus, amigo, adeus!» Nem mais profere,
E aos arraiaes tornando o passo alarga.
Já de oliva enramados oradores
Latinos pedem venia, a fim que esparsos
100Corpos sepultem, victimas da guerra;
Que a não tenha com mortos e vencidos;
Poupe os hóspedes seus, outrora sogros.[1]
Bom Enéas attende ás justas preces:
«Que ruim fado, accrescenta, nesta lide
105Vos implicou, Latinos, que de amigos
Nos renegais? E a paz quereis sómente
Para os da luz privados nas batalhas?
Eu quereria concedel-a aos vivos.
A não ser o destino, eu cá não vinha;
110Nem a gente combato. Ao jus de hospicio
Preferiu vosso rei de Turno as armas.
Turno he melhor que á morte se exposera:
Se expulsar-nos pretende, o pleito acabe
N’um duello comigo; e um de nós reste
115A quem seu nume ajude ou seu denodo.
Sus, á fogueira os cidadãos mesquinhos.»
Dice: absortos se olhando mudos ficam;
E o velho Drances, que odiento e infesto
Sempre a Turno crimina: «Ó tu, responde,
120Varão maior que a fama, como te alças?
Não sei que mais te louve ou mais admire,
Se o valor, se a justiça? Iremos gratos
Na patria o publicar, e, dado o ensejo,
Ao rei te unir: allianças busque-as Turno.
125Altear apraz-nos a fatal cidade,
Troianas pedras carregar aos hombros.»
Finda, e um consenso unanime sussurra.
Doze dias, em tregoas, juntos vagam
Por monte e selva os Teucros e os Latinos:
130Da bipenne o alto freixo ao córte soa;
Tomba o aereo pinheiro; as cunhas racham
De contino orno, roble, odoro cedro;
Ao carrear chiando as rodas andam.
E a Fama já, que apregoava ha pouco
135De Pallante as acções, do immenso lucto
Enche Evandro e de Evandro a casa e os muros.
O Arcadio ás portas rue, e ao modo avíto
Péga brandões, que ao longo a via aclaram;
A procissão funérea os agros fende,
140Co’a turba phrygia encontra-se em lamentos.
As mães, vendo-os entrar, com pranto lugubre
Toda a cidade accendem. Nada a Evandro
Poude contêr; atira-se no meio;
Sôbre o deposto féretro curvado,
145Se abraça com Pallante, e geme e chora,
Até que a dôr á falla abriu caminho:
«Filho, a palavra assim me desempenhas
De entregares-te cauto ao cru Mavorte!
No primeiro certame eu bem sabia
150Quanto o louvor he doce e a nova glória.
Tristes primicias, rudimentos duros
Da finítima guerra! ai! preces minhas,
Votos por nenhum deus jamais ouvidos!
Oh! no morrer feliz, mui casta espôsa,
155Não provas este mal! Sobrei-te em annos
Para carpir extincto o nosso filho!
De hostis lanças coberto, eu dera est’ alma
Sob os socios pendões! Fôsse esta pompa
Só para mim, não para ti, Pallante!
160Vossa alliança e hospício eu não argúo;
Sorte era, ó Teucros, da velhice minha:
Mas, se immaturo cahe, mil Volscos mata,
Ao Lacio vos guiando, honrado acaba.
Mais digno entêrro não terás, meu filho,
165Do que Enéas celebra, e seus magnatas,
E etruscos chefes, e esquadrões etruscos:
Dos que enviaste ao Orco os trophéos trazem.
Tambem gran’ tronco em armas cá serias,
Se idade igual á tua o roborasse,
170Turno. Mas que! pranteio e a pugna tardo?
Phrygios, o que lhe digo ao rei contai-o:
Se a luz nesta orphandade eu soffro, Enéas,
A tua dextra he causa, ao filho e ao padre
Olha que deves Turno: este o serviço
175Que do teu brio espero e da fortuna.
Gostos na vida enjeito, nem me assentam;
Sim, no inferno os receba o meu Pallante.»
Almo lume a verter, o albor canceiras
Renovava aos mortaes. Na curva praia
180Em pyras cada qual, Enéas, Tárchon,
Dos seus, usança velha, os corpos queima;
Na caligem dos fogos sotopostos
Se ennoita o céo. Tres vezes decorrendo
A infantaria, em fulgurantes armas,
185A rogal chamma fúnebre circula;
Tres a cavallaria; e ululam todos:
O chôro arnezes banha, a terra ensopa;
Grita, clangor, mugindo os ares fere.
Uns lançam na fogueira o ganho espólio,
190Guarnecidas espadas, elmos, freios,
Rodas ferventes; uns, de offerta aos donos,
Os broquéis nótos e infelizes dardos.
Hecatombes á morte, para a queima
Cerdos e nos contornos apanhada
195Immolam grei: na praia arder observam,
Em suas pyras semiardidas velam
Sem despegar-se, até que humida a noite
Inverte o céo de estrellas marchetado.
Nem menos tristes os Latinos erguem
200Fogueiras mil; dos seus enterram parte,
Levam parte á cidade e ás vizinhanças:
Em confuso montão, sem conto e nome,
He consumido o vulgo. Ao longe e ao largo
Á competencia os fogos alumiam.
205Manhã terceira assoma; e, de altas cinzas
Doídos removendo os mistos ossos,
Terra sôbre elles tépida amontoam.
Mas na opulenta laurentina côrte
O alarido he maior, mais geme o lucto.
210Mães, irmãs, noras, orphãos miseraveis,
Ferrenha guerra afflictos execrando
E os hymeneus de Turno, exigem que elle
No Lacio a primazia á espada obtenha.
Drances aggrava o caso, e attesta e jura
215Que Turno a desafio he só chamado.
Muito a favor de Turno opinam varios:
Da raínha o respeito e a sombra o amparam;
Seu renome e trophéos o heroe sustentam.
Neste flagrante, em meio do alvorôto,
220Do gran’ Diomedes pezarosos voltam
Com resposta os legados: nada as preces,
Nada os custos valeram da embaixada,
Nem dons em ouro; ou busque outra alliança,
Ou paz rogue Latino ao rei troiano.
225Esmorece o bom velho em tanta angústia:
Que o céo protege a Enéas lhe confirmam
Irados numes, frescos os sepulcros.
Chama a conselho os principaes senhores;
Que logo, ao seu mandado, enchendo as ruas
230Ao paço affluem. Do seu throno o digno
Ancião monarca, não com leda fronte,
Aos legados acena, e inquire e indaga
Com toda a pausa a etólica resposta.
Reina o silencio, e Vénulo obedece:
235«Nós vimos, cidadãos, o argivo assento,
E, da jornada os riscos superando,
A mão tocámos que assolou Dardania.
Elle no apulio Gárgano Argyripa,
Cognome patrio, vencedor fundava.
240Quando a vez tive, os dons lhe offerecendo,
Quem eramos declaro, e a guerra e causa
De em Arpo nos acharmos. Com socêgo
Nos torna o Grego: «[2]Ó reinos de Saturno,
Priscos Ausonios, venturosos povos!
245Que fado a concitar vos solicíta
Ignotas guerras? Quantos profanámos
Com ferro Troia (os transes nella exhaustos
Omitto, e os que em si volve aquelle Símois)
Pelo orbe temos pago infandas penas,
250Taes que Priamo proprio as lastimara:
Minerva o testemunhe, o Arcturo infausto,
O ultrice Caphareu, de Eubéa as penhas.
Dalli, de praia em praia desterrados,
Menelao de Proteu foi têr ás metas,
255Aos Cyclopes trinacrios o Laercio.
De Pyrrho e Idomeneu subversos lares,
Ou lembrarei na Libya assentes Locros?
De vingar n’Asia um rapto ufano o Atrída
Rei dos rêis, por traição da atroz consorte,
260Cahe do adultero ao ferro em seu palacio.
E o céo não me invejou revêr a patria
E a bella Calydona e a cara espôsa?
Hoje inda monstros horridos me assombram:
Perdidos socios (ai cruéis supplícios!)
265Nos ares voam-me, aves da ribeira.
Com flébeis guinchos nos cachopos vagam.
Isto eu prevêr devia, malque insano
Corpos violei divinos, golpeando
A dextra a Venus mesma. A taes pelejas
270Não me instigueis, oh! não. Dêsque assolada
Pérgamo foi, com Teucros nem combato,
Nem me recordo ou fólgo desses males,
Os dons que me offertais rendam-se a Enéas.
Com elle dardo a dardo e braço a braço,
275Provei, crêde, quam lesto o escudo move,
Com que vortice esgrime ou gladio ou lança.
No Ida se dous varões como elle houvesse,
Dardania acommettera inachias plagas,
Trocara a Grecia os louros em cyprestes.
280Em Troia pertinaz susteve os Graios,
Durante o assédio, a mão de Heitor e Enéas,
Que a victória dez annos retardaram:
Ambos no ânimo iguaes, iguaes no esfôrço,
Mais pio esse he. Tratai de congraçal-o,
285E fugi de travar armas com armas.»
Eis a real sentença, ó rei sublime,
Sôbre tamanha guerra.» Dice; e corre
No conselho um murmúrio, como quando,
Seixos detendo o arrebatado rio,
290No alveo ronca impedido, e em tôrno fremem
Da ribanceira as crepitantes ondas.
Quedo o alvorôço e placido o sussurro,
Ora aos deuses o rei, do throno falla:
«Eu, cidadãos, queria, e melhor fôra
295Antes deliberar; não quando os muros
Preme o inimigo. Inopportuna guerra
Temos com taes varões, com diva estirpe,
A quem prelios nem cansam, nem vencidos
Sabem depôr o ferro. Se estribaveis
300No etolo auxílio, o desengano chega;
Fie em si cada qual: fraca esperança!
Como em ruína as cousas nos declinam,
Vossos olhos o vêm, as mãos o apalpam.
Ninguem accuso: obrou-se o mais possivel;
305Em pêso o reino se bateu brioso.
O que hei na dubia mente, agora em pouco
Vol-o explano; attenção. Proximo ao Tibre,
Sôbre as sicanas raias, para o occaso,
Agro antigo possuo; o qual semêam
310Os Rutulos e Auruncos, e as collinas
Arando, em pasto o mais esteril deixam.
Esta região e o celso píneo monte
Ceda-se ao Teucro; e, justas leis dictadas,
Em amizade e em paz nos federemos.
315Se o quer, fique e entre nós se estabeleça;
Mas, se outra gente, outro paiz prefere,
E ir-se daqui, naus vinte ou mais teçamos
De italo sôbro, as que precisas fôrem:
Madeira jaz á borda; elles prescrevam
320Pontal, número, fórma; nós prestemos
Dinheiro, arsenaes, braços. E oradores
Cem d’entre os nobres deputar me agrada;
Que, nas mãos a oliveira, em brinde offertem
Marfim, talentos de ouro, e a trábea e a sella
325Curul, do reino insignias. Em consulta,
Provêde ao bem do combalido estado.»
Drances, a quem de Turno a glória punge
De vesga e amara inveja, em bens profuso,
Mais largo em lingua, timorato e imbelle,
330Não máo no alvitre, em sedições potente,
De incerto pae, da illustre mãe suberbo;
Se ergue, e em Turno carrega e incita as iras:
«Cousa, ó bom rei, suades nada obscura,
E escusas consultar. O que insta e cumpre
335Cada um murmúra, e expôl-o não se atreve.
Fallar conceda, e a tumidez remitta
Quem, por funesto auspício, ambicioso
(Digo, e armado elle a morte me commine)
Extinguiu tantos cabos, e a cidade
340E o povo enlucta; emquanto, em pés fiado,
Tenta o phrygio arraial e aterra o mundo.
Aos dons que ao Teucro, optimo rei, prodígas,
Um accrescentes, um; ninguem violento
Véde ao pae dar a filha a genro egregio,
345Em laço eterno e honroso a paz segures.
Se he tanto o susto, humildes o obtestemos,
Peçamos venia; á patria e ao rei se digne
O jus nosso outorgar. Autor de angústias,
Porque impelles o Lacio a taes perigos?
350Infausta guerra! a paz queremos, Turno;
O inviolavel penhor a paz confirme.
E eu, que a ti crês infenso (o que ora passo),
Eu te supplico para os teus piedade;
Cessa, e repulso vai-te. Assás matanças,
355Vimos assás os campos desolados.
Ou, se a fama te pica e insito esfôrço,
Em dote se esta régia obter anceias,
Ousa, ao rival te afoutes peito a peito;
Nem, para que a princeza espose Turno,
360Nós, vil turba insepulta e illagrimada,
O agro junquemos! Tu, se o patrio brio
Te anima e alenta, provocado arrosta-o.»
De Turno arde a violencia a taes dicterios;
Do imo suspira, em colera trasborda:
365«Sempre em phrases abundas, quando a guerra
Pede obras, Drances; nos debates primas.
Contêr mal pode a curia essas bravatas,
Que, entricheirado a salvo, te borbolham,
Emquanto em sangue os fossos não se inundam.
370Toa a usual facundia: eu sou cobarde,
Sim; tu Phrygios em pilha amontoaste,
Mil trophéos as façanhas te assinalam.
Teu vívido valor provar te cumpre:
He não longe o inimigo, os nossos muros
375Em roda assalta; vamos encontral-o.
Como! tardas? ou sempre tens Mavorte
Nessa balofa lingua e fugaz planta?
Eu repulso! ha, villão, quem tal me assaque?
Será quem viu de sangue o Tibre inchar-se,
380Quem de Evandro abatida a estirpe e casa,
O Arcade profligado? Certo Bicias
Não me arguirá, nem Pândaro e milhares
Que, na trincheira hostil encurralado,
Mandei n’um dia á Estyge victorioso.
385Infausta a guerra? ao capitão dardanio
E a ti, louco, esse agouro. Embrulha, espanta,
Nem cesses de exaltar os bi-captivos
E deprimir as armas de Latino.
Do Phrygio ora estremecem Myrmidones,
390Tydides ora e o Larisseu Achilles;
O Aufido o curso adriaco[3] desanda!
Finge o manhoso que de mim se teme,
Com seu medo fallaz me azéda o crime.
Nunca, descansa, mancharei meu braço;
395N’um peito more torpe essa alma indigna.
Vólto-me, ó padre, agora aos teus projectos.
Se não tens confiança em nossas armas,
Se não muda a fortuna, e uma derrota
Nos destroe e nos perde sem regresso,
400Paz roguemos, tendendo inermes dextras:
Bem que oh! se nos restasse o brio antigo,
Feliz na morte fôra e o mais egregio
Quem, por não vêl-o, o pó mordeu cahindo.
Mas, por nós frescas tropas se inda temos,
405Florentes povos de ítalas cidades;
Se com tormenta igual de sangue e estragos
Tambem veio aos Troianos a victória,
Porque á primeira ignavos desmaiamos?
Trememos antesque a trombeta sôe!
410Do tempo o vário andar melhora as cousas:
A muitos, que illudiu, fortuna instavel
Repoz em firme estado. Se Arpo etolia
O nega, auxílio nos darão Messapo
E o próspero Tolumnio, e os tantos cabos
415De possantes nações; nem glória escassa
Aguarda a flor do Lacio e de Laurento;
E Camilla pugnaz, de illustres Volscos,
Turmas luzidas move e equestres fôrças.
Desafiado, apraz que eu só combata
420Em proveito commum? não se me esquiva
Tanto a victória, que intentada enjeite
Essa esperança. Um proprio Achilles seja,
Vista e maneje o heroe vulcanias armas,
Contra animoso irei. Somenos Turno
425A nenhum dos avós, te voto, ó patria,
E sagro esta alma. Enéas só me chama?
Chame, eu peço. Nem antes pague-o Drances,
Caso que o céo funesto se nos torne;
Nem sua intrepidez nos tire a palma.»
430Entre a dubia contenda, o campo Enéas
Levanta e marcha. Um nuncio alvoroçado
Corre ao paço, e a Laurento enche de susto:
Que o teucro e tusco exército em batalha
Desce do Tibre, invade-se a campanha.
435Turba-se o vulgo, os peitos se conturbam,
Não leve estímulo os furores cresce:
Armam-se á pressa, o moço armado freme,
Lamenta e rosna o velho; os ares fere
O discorde multíplice alarido:
440Al não succede, se volateis bandos
Pousam no bosque, ou soam do piscoso
Pado em loquazes tanques roucos cysnes.
Turno o instante aproveita: «He bem, consocios,
Reuni conselho[4], a paz louvai sentados;
445Elles de assalto ruam.» Nem mais dice;
Larga impetuoso a régia: «Tu, Voluso,
Volscas esquadras prestes, guia os Rutulos;
Messapo, e vós irmãos Catillo e Coras,
Derramai na planície os cavalleiros;
450Parte as entradas guarde e occupe as tôrres;
A mais hoste me siga.» Eis da cidade
Corre-se aos muros. O conselho o mesmo
Latino pae suspende, e seus projectos
Nesta consternação tristonho adia:
455Muito se accusa de não têr a Enéas
Por genro acceito e associado ao reino.
Pedra e estrepes carretam, fossos cavam:
Roncam buzinas o cruento a l’arma.
O muro, em varios grupos, lance extremo!
460Coroaram matronas e meninos.
Dadivas, de Minerva ao celso alcaçar,
Com suas damas a raínha leva;
E ao pé, submissos os decoros olhos,
Vai, do mal causa insonte, a virgem filha.
465As mães da comitiva o templo incensam,
Espargem do limiar carpidas vozes:
«Deusa da guerra, armipotente Pallas,
Quebra ao phrygio ladrão tu mesma a lança,
Prostado o abate, ás portas o destroça.»
470Turno fogoso aos prelios se apparelha:
Já rutula coiraça eri-escamosa
Veste horrente, e nas pernas grevas de ouro,
Inda nu da cabeça, a espada á cinta,
Do castello, fulgindo, alegre pula,
475E na idéa o triumpho se afigura:
Como, o cabresto quando emfim rebenta,
Livre o cavallo o aberto campo goza;
Ou vai-se ao pasto e ás eguas; ou, do rio
Nóto o banho, se deita á funda vêa,
480A cerviz a entonar, viçoso rincha,
Brincam-lhe as crinas pelo collo e espadoas.
Vem Camilla encontral-o, e descavalga
Ás portas a raínha, antesque o façam
As volscas turmas, que depois a imitam.
485«Turno, diz, se tem jus uma alma nobre
De em si crêr, de arrostar eu só te fico
Ilias cohortes, cavalleiros tuscos.
Estrear me permitte a guerra e os transes;
Tu defende as muralhas a pé firme.»
490Turno olhos fixa na tremenda virgem:
«Que assás graças te posso, honra de Italia,
Aqui render? mas, já que a tua audacia
Tudo excede, comigo os riscos parte.
Enéas, como espias m’o confirmam,
495Cavallaria avança que ligeira
Bata a campanha, e de ermos e arduos montes
Contra a cidade se despenha astuto:
Traço estar de emboscada em curvo atalho,
Soldadesca cercando as fauces bívias.
500Tu, juntos os pendões, cahe nos Tyrrhenos;
O acre Messapo e as tiburtinas hostes
E as do Lacio terás: commanda em chefe.»
Vôlto a Messapo, o exhorta e os cabos todos,
E em busca do conflicto o passo aperta.
505Apto ao bellico dolo, um valle inflexo,
Negra espessura o encerra; onde uma trilha
Por estreita garganta a custo guia.
Jaz de cima n’um cume, a cavalleiro,
Planura ignota, abrigo retirado,
510Quer tentes atacar á dextra e á sestra,
Quer volver do cabeço enormes galgas.
Lá chega o joven por sabidas sendas,
E de atalaia está na iniqua selva.
Entretanto Latonia á veloz Opis,
515Do seu virgineo côro uma das nymphas,
Lá no Olympo sentida assim fallava:
«Camilla, a quem mais prézo, á cruel guerra
Parte, cingida em vão das armas nossas;
Nem, Opis, este amor veio improviso
520Obrar com doce estímulo em Diana.
Metabo, de Priverno antiga expulso
Por odio e prepotencia, entre os conflictos
Salva a trouxe do exílio companheira,
Tenra menina; com mudança pouca,
525Da mãe Casmilla a nomeou Camilla.
Com ella ao collo por desertos soutos,
Longinquos serros, circumfusos Volscos
A perseguil-o a dardos o opprimiam.
Da fuga em meio, as nuvens desabando,
530Eis o Amaseno alluvioso espuma:
Quiz nadar, mas temendo se reteve
Pela querida carga. Em si revolve,
E decide-se emfim: na mão robusta
Guerreiro tinha, de tostado sôbro,
535Rija e nodosa lança; embrulha a filha
N’um cortiço, accommoda e a liga n’hastea;
E, com fôrça a libral-a, assim depreca:
«Alma virgem Latonia, a ti, cultora
Dos bosques, eu seu pae t’a voto serva;
540Súpplice na tua arma eil-a que foge
Do inimigo; recebe-a, deusa, he tua,
Eu, t’a encommendo pelas dubias auras.»
Dice, e o bucho contrahe, o hastil contorce:
Brame o rio; a infeliz por cima voa
545No estridente arremêsso. Então Metabo,
Urgido mais e mais, se entrega ás aguas;
Da relva, em que a depoz, na lança a virgem
Arranca vencedor. Nem tecto ou muro
O acolheu, nem as mãos altivo dera:
550Solitario pastor vivia em brenhas;
E alli, criando a filha em gruta brava,
De egua armental ás tetas, lhe mungia
Ferino leite nos mimosos labios.
Mal que a pino a menina as plantas firma,
555Dardo agudo pejando-lhe as mãozinhas,
Pendura-se-lhe ao hombro aljava e arco;
Por aurea coifa, por comprido manto,
Á costas lhe descahe tigrina pelle:
Já frechas pueris brincando joga,
560Da cabeça em redor voltêa a funda,
Grou derriba strymonio ou branco cysne.
Nora a desejam muitas mães tyrrhenas;
Mas, dedicada a Phebe, amor eterno
Rende ás settas pudíca e á virgindade.
565Oh! se bellaz não provocasse os Teucros,
E ora me fôsse companheira cara!
Sus, nympha, já que a preme atroz destino,
Do polo baixa manso onde os Latinos
Pugnam com sestro agouro. Ouve, e do coldre
570Ultriz frecha prepara: Italo ou Phrygio,
Quemquer que a vulnerar sagrada e bella,
Com seu sangue m’o pague. Em nuvem cava
Trarei não desarmada a miseranda,
Porque em patrio jazigo a deposite.»
575Não mais; e ella, em nublado escuro involta,
Pelas auras sonora se deslisa.
Mas já Teucros e Etruscos se appropinquam,
Toda a cavallaria em turmas certas:
Freme o sonípede, a pular garboso,
580E aqui virado e alli, relucta ao freio;
Horrida em ferrea messe, arde a campina.
Com os latinos céleres Messapo,
E Coras com o irmão, Camilla e os Volscos,
Apparecendo oppostos, longe vibram
585Zargunchos e hastas, retrahindo os braços:
De homens ferve o tropel, relinchos fervem.
A tiro, as hostes ambas fazem alto:
Rompe a cuquiada, incitam-se os cavallos;
Granizam como neve espessos dardos,
590Que o céo tornam sombrio. Em reste as lanças,
Tyrrheno e Acônteo acerrimo ruídosos
Se investem logo, e os brutos se abalroam
Peito com peito: sacudido Acônteo,
Qual por trabuco o pêso, ou como raio,
595Se precipita, e no ar a vida esparge.
Turbam-se; e, adargas para trás virando,
Os Latinos de trote aos muros voltam.
No alcance, o bravo Asylas quasi ás portas
Leva os Troas; e, em grita os collos dóceis
600Revirando o inimigo, á redea sôlta
Por turno retrocedem: não diverso
Da maré que, alternada, ou rola ás terras,
E os cachopos orvalha, espuma e ronca,
Té lavar sinuosa a extrema arêa;
605Ou, resorvidos os revôltos seixos,
Na ressaca lambendo ás praias foge.
Ora o Toscano ao Rutulo rechassa,
Ora o broquel tambem lhe ampara as costas;
Mas, no terceiro choque, barba a barba
610Travam geral batalha: em ais e em gritos
Varões, corséis morrendo, e corpos e armas
Em sangue rodam, n’aspera carnagem.
A hasta ao frisão (que a Remulo tem medo)
Brande Orsilocho, espeta-o sob a orelha:
615Da ferida o quadrupede impaciente,
Empinado, aos corcovos, escoucêa;
Vasa em terra o senhor. Catillo a Iolas
Derriba, e ao forte e corpulento Herminio;
Que nu de hombros, sem elmo a flava coma,
620Rojões despreza, aberto affronta os golpes.
Fixo na larga espadoa o dardo treme;
O varão se contorce e á dôr se encurva.
O cruor mana, estragos multiplicam;
Mata-se, ou busca-se acabar com honra.
625De aljava, cérceo um peito, em ar Camilla
De Amazona, entre a clade ufana e salta;
Já com pulso indefesso amiuda settas,
Já prompta esgrime a válida bipenne:
Soa o aureo carcaz, da Trívia as armas.
630Se o dorso alquando vira, em retirada
O arco frechas alígeras despede.
Tulla a escolta e Larina, e erea secure
A manejar Tarpeia; ítalas virgens
Que, á divina senhora a côrte ornando,
635Sam ministras na guerra e paz ditosa:
Quaes, de pintado arnez guerreiras thracias,
O Thermodonte as Amazonas pulsam;
Ou de Hippolyte em cêrco, ou da mavorcia
Raínha após o coche, uivando exulta
640Com lunados broquéis femínea turba.
Quem primeiro, quem último, acre virgem,
Provou teu braço irado? a quantos prostras?
De Clycio o filho Euneu, com longo abeto
O opposto seio traspassado, arroios
645Vomita rubros, traga o chão cruento,
Na chaga moribundo a convulsar-se.
Págaso e Liris cahe, um que ao varado
Bruto a cambalear sustinha as redeas,
O outro ao socio tendendo a inerme dextra;
650A par os precipita. Ajunta o Hippotio
Amastro; enresta a lança, e a Demophoonte,
Chromis, Tereu e Harpalyco, persegue:
A môça a cada bote um varão mata.
Caçador, mas bisonho, Ornyto assoma
655Em ginete iapygio: os hombros largos
Lhe arreia o espólio de brigão novilho;
Tem por elmo lupina ampla guela
E a queixada em que alveja a dentadura;
Empunha agreste chuça, e bizarrêa
660E sobrepoja a todos. Ella o aterra
Sem trabalho, as catervas derrotadas;
Sôbre o corpo chasquêa: «Que! Tyrrheno,
Crêste que monteavas? chega o dia
Em que hasta mulheril te abata as roncas;
665Porêm, não leve glória, aos patrios manes
Conta que de Camilla ás mãos succumbes.»
Rompe a Orsílocho e Butes, dous gigantes:
Entre o casco e a loriga a ponta em Butes
Crava, onde ao cavalleiro brilha o collo
670E á séstra o escudo pende; em grande gyro
Do outro fugir simula, e mais por dentro
Corta as vóltas, seguindo o que a seguia:
Eil-a, alçada, a secure em armas e ossos
Mette ao varão que implora, os golpes dobra;
675Quente no rosto o cérebro se esparge.
Com ella topa, estupefacto embaça
Do apenniniculo Auno o pugnaz filho,
Ligure em tretas guapo, emquanto poude.
Vendo que sem remédio era o combate,
680Poisque instava a raínha; ardis e astucias
Comsigo meditando, assim começa:
«Em ligeiro frisão, mulher, te fias?
Não fujas, de mais perto em livre campo
A pé vem pelejar: saberás presto
685A quem seja damnosa a fofa glória.»
Dice: ella em furia, accesa em dôr austera,
Dando o ginete á sócia, a pé galharda,
Ferro nu, puro o escudo, igual o espera.
Elle, o dolo efficaz julgando, abala,
690Torce a brida na pressa, e com ferrado
Calcanhar o quadrupede esporêa.
«Ligure fanfarrão, de balde ufano,
As patrias artes lúbrico tentaste;
Salvo a teu pae a fraude não te renda.»
695Nisto, ígnea a virgem com velozes plantas
Passa o cavallo, adversa o freio prende,
E se despica no inimigo sangue:
O sacro açor tam facil de alta penha
Adeja, empolga a remontada pomba,
700De unhas aduncas no ar a desentranha;
Chove o cruor de cima e avulsas pennas.
Não descuidado olhando, o pae supremo
Do Olympo isto contempla; e, ao sevo marte
O etrusco Tárchon suscitando, o irrita
705E estimula e exaspera. Entre a matança
E as frouxas alas eil-o a trote corre,
Grita aos seus, um por um nomêa e instiga;
Alenta e o prelio instaura: «Ó vis Tyrrhenos,
Fracos sempre e insensiveis, tanta ignavia,
710Tal medo vos quebranta? as vossas turmas
Uma mulher derrota e as afugenta.
Porque o ferro cingis e empunhais lanças?
Lerdos não sois de noite em cyprias lides,
Ou, se aos coros vos soa a curva tibia,
715Para o banquete lauto e lieus copos;
Vosso amor, vosso estudo: aos bosques santos
Ide, hostia gorda e o augur vos convida.»
Então, perecedouro, o bruto pica,
Turbido aferra a Vénulo e o desmonta,
720Abraçado com impeto o arrebata.
Clamor se ergue; ante os olhos dos Latinos,
Tárchon fulgureo voa, e pelo campo
Leva o armado varão: quebra-lhe a choupa
Da haste, e a parte esquadrinha onde lh’a enterre.
725Fôrça elle oppondo á fôrça, renitente
Sustêm, repelle do pescoço a dextra.
Quando aguia fulva a surto prêa a serpe,
Pés nella e a garra implica; vulnerado
O dragão volve as sinuosas roscas,
730Hirta a escama, se enrija e silva e empina-se;
A aguia de bico adunco urge-o luctante
Mais e mais, e aleando açouta os ares:
Tárchon não menos da tiburcia prêsa
Folga; os Meonios com o exemplo investem.
735Aqui, fadado á morte, o dardo em punho,
Á pista Arunte da veloz Camilla,
Catando a occasião, por onde as turbas
Furente ella penetra, cauteloso
A rodêa, e por onde vencedora
740Do inimigo reverte, a furto o joven
Retorce tacito a ligeira brida;
Esta aberta em circuito e aquella tenta,
Improbo o dardo a menear certeiro.
Chloreu sacro a Cybele, outrora antiste,
745Brilhando em phrygio arnez, mettia o espumeo
Ginete em obra, com xairel de pelle
De enea malha e aureas plumas recamado:
Luz em ferrenha púrpura estrangeira,
Lycio o corno a vibrar cortynias frechas;
750Dourados arco e morrião lhe tinnem;
Crócea a roupa, do linho os rugidores
Seios colhe em nó fulvo, e tem bordadas
A tunica e as barbaricas polainas.
A virgem, porque em templo insignias troicas
755Fixe, ou caçando fulja em aureo espólio,
Cega após elle, sem que os mais lhe importem,
Incauta se abrazava, entre as fileiras,
No amor femíneo da vistosa prêsa.
Eis que a tempo á traição dardeja Arunte,
760Depois que assim depreca: «Summo Apollo,
Do Soracte custodio venerado,
Em cujo culto píneo ardor cevamos,
E afoutos na piedade, em vivas brazas
Entre a fogueira os passos imprimimos,
765Dá-me apagar, ó padre, a nossa injúria.
Trophéo não peço da prostrada virgem,
Nem seus despojos, honrem-me outros feitos:
Como ao golpe desta arma a dira peste
Derribe, á patria me retiro inglório.»
770Parte lhe ouviu do rôgo o deus benigno,
Parte em auras dissipa: á morte annúe
Da sorpresa Camilla, mas lhe nega
Revêr a excelsa patria; e pelos nôtos
As procellas a voz lhe dispersaram.
775Ao despregar da rechinante vira,
Convergem todos á raínha os Volscos
Turbidos olhos. Ella não pressente
O ar, o estridor, a farpa, até que á cércea
Mama ferra-se a ponta e funda o sangue
780Virgineo bebe. Acodem logo as socias,
Trépidas a senhora sustentando.
Entre alegria e susto Arunte escapa-se;
Nem mais confia em dardo, nem da virgem
Arrostar ousa as lanças. Quando o lobo,
785Antesque os tiros chovam, por desvios
Vai-se, morto o pastor ou nedio almalho,
Na montanha esconder; conscio da audacia,
Pavido o rabo encolhe e as selvas busca:
De evadir-se contente, assim medroso,
790Arunte no tropel desapparece.
A haste ella a morrer saca; mas o ferro
Pregado ás costas fica-lhe entre os ossos.
Desmaia, baça a vista, exsangue e fria;
Desbotam-lhe no rosto as frescas rosas.
795A donzella, a expirar, dos seus cuidados
Á confidente e mui querida falla:
«Mais, Acca irmã, não posso; ao golpe acerbo
Falleço, e tudo se me ennoita em roda.
Já, leva de Camilla o final termo:
800Turno succeda-me, e repilla os Teucros.
Adeus, adeus.» E então largando as redeas,
Da sella cahe; gelada a morte aos poucos
Solve-lhe o corpo, languida a cabeça
E o collo pousa, demittindo as armas;
805Geme e agastada a vida aos manes baixa;
Subito grita immensa atroa os astros,
Mais se encruece a pugna; em mó concorrem
Teucros, Tyrrhenos e de Evandro as alas.
Mas, por Diana, ha muito em celso monte
810Espreita Opis impávida as pelejas;
E, avistando entre os jovens clamorosos
Ao passamento a víctima rendida,
Exclamou suspirosa: «Ai! triste virgem!
De encarares o Phrygio atroz castigo!
815Honrar a Trivia por desertos matos,
Nem hombrear valeu-te aljavas nossas.
Porêm tua raínha em tal affronta
Não sem lustre ou renome te abandona,
Nem morrerás inulta. As justas penas,
820Quemquerque seja o temerario, pague-as.»
De um teso ás faldas, sob azinha opáca,
Do lacio rei Dercenno havia antigo
De terreo acervo o mausuléo: parando
O impeto alli, do combro a nympha bella
825Pesquisa Arunte; a relumbrar tumente
Como o avistou: «Vem cá; porque te afastas?
Recebe de Camilla os dignos premios.
Que! vam manchar-se em ti de Phebe as armas?»
Dice, e do aureo carcaz ligeira setta
830Qual Thracia tira, e infensa o corno atesa,
Encurva e puxa, até que ajunta as pontas,
E toca a séstra mão no ferro agudo,
Na têta o nervo e a dextra: simultaneo
Ouve Arunte o zunido e o ar sonoro,
835Sente o farpão no corpo. Em mortaes vascas
No ignito pó gemendo, os seus o esquecem;
E Opis libra-se, adeja á casa etheria.
Morta a raínha, a leve turma foge;
Fogem Rutulos, foge o mesmo Atinas;
840Chefes e esquadras, por salvar-se, ao muro
Em confusão galopam destroçados.
Ninguem resiste aos sitibundos Phrygios
E aos letíferos dardos: mal sustentam
Os bambos arcos nos languentes hombros;
845No trote o chão pulvéreo as patas batem.
Volve ás muralhas turbida caligem;
E dos balcões, os peitos lacerando,
Aos céos clamor femíneo as mães levantam.
Os que attingem primeiro as francas portas,
850Baralhado o inimigo os acabrunha:
Ao patrio umbral, da morte não se evadem;
Em seus lares expiram traspassados.
Parte, os portões cerrando, abrir não ousa,
Nem recolher os socios que o supplicam:
855Dos que prohibem, dos que entrar forcejam,
Nasce triste matança; atroz conflicto!
Os de fóra, ante os paes e as mães chorosas,
Uns, na ância, aos fossos em despenho rolam,
Uns, sôlta a brida, no alvorôto cegos,
860De encontro a hombreiras e batentes marram.
Camilla ao vêrem (santo amor da patria!),
No último transe intrepidas matronas
Das amêas por ferro precipitam
Pértigas, fustes, achas; e as primeiras
865Por morrer na defensa alli se inflammam.
Na emboscada porêm, cruel notícia!
Acca enche a Turno do tumulto ingente:
Que, perdida Camilla e os Volscos rotos,
O hostil próspero marte arrasa tudo;
870Que avança o Phrygio, e o medo ganha os muros.
Furente (assim o quer severo Jove)
O aspero colle e fauces desoccupa.
Extra-alcance, mal que elle os campos toca,
Entra a livre espessura o padre Enéas,
875Supera o cume, sahe da escura selva.
E entre si longos passos não distando,
Ambos em veloz marcha aos muros correm.
Tanto que a fumear enxerga Enéas
Poento o plaino e os batalhões laurentes;
880Turno as armas conhece e o bravo chefe,
E o nitrído e o tropel dos brutos ouve.
Logo a batalha e as brigas travar-se-iam,
Se já no ibero ponto o roseo Phebo
Os cavallos cansados não tingira,
885Cedendo á noite o dia. Ante a cidade
Assentam-se arraiaes e se entrincheiram.
NOTAS AO LIVRO XI.
22-181. — 20-177. — As bellezas que ha nestes funeraes, na pintura do aio Acetes, e na do misero Evandro que ficava sem posteridade, não se podem enumerar; he mister sentil-as. Esta nota he para justificar Virgilio de duas arguições: 1º que o pio Enéas immola no túmulo de Pallante alguns dos prisioneiros; 2º que elle mata, no desfecho do poema, o seu rival Turno, apezar das preces do vencido. — Quanto á primeira arguição, opponho que pius significa religioso, temente aos deuses, amante de seu pae e familia; e, aindaque extensivamente signifique compassivo, a superstição e o habito arrastavam o chefe a crêr indespensavel tam barbaro sacrificio para aplacar os manes do morto. Enéas, bem que amigo da justiça, tinha as preoccupações do seu tempo, e a dureza de guerreiro o assaltava tambem: o seu natural o levava á compaixão; a colera, que lhe accendera a morte de Pallante, emprestou-lhe a crueldade que exerceu. Virgilio certamente não approvava esta acção; mas quiz nella pintar aquelle seculo feroz, em que os proprios homens bem formados não sabiam sopear sempre os impetos da vingança. E nós os christãos, criados com o leite puro da vera doutrina, esclarecidos á luz do evangelho, não temos por grandes e pios, mesmo por santos, a homens que obraram peior que Enéas? Se lhes perdoamos, devemos desculpar o furor de um pagão. Repetirei o que dice em outra nota, que Enéas só foi duro depois que lhe roubaram Pallante; e com taes rigores tambem tinha em vista aterrar e abreviar a guerra. De mais, a experiencia mostra que a ira he desmedida nos que raramente sam della assaltados. — Quanto á morte de Turno, a crítica nem mereceria resposta, se não fôsse tantas vezes renovada. Escolhi este lugar para a combater, por ser nele que vem a plena justificação do poeta. Enéas, acolhido pelo antigo hóspede de Anchises, tudo obtem da sua benevolencia, guerreiros, cavallos, víveres, a alliança de Tárchon e dos Tyrrhenos: e até um filho unico lhe confia Evandro, apezar dos seus tristes pressentimentos. Pallante, na flor dos annos, bravo, generoso, depois de ter obrado prodigios de valor, morre ás mãos de Turno, não em um encontro fortuito, mas por querer de proposito o rei dos Rutulos causar tamanha dôr ao pae, e mesmo na occasião dice que desejava alli a Evandro para testemunhar a scena. Soube-o Enéas, accusa-se de não ter precavido aquelle desastre; faz ao morto um pomposo funeral, e o envia a Pallantéa. Evandro sólta-se em pranto; mas a final, como se Enéas estivesse presente, rompe nestas vozes: «Se a luz nesta orphandade eu soffro, Enéas, A tua dextra he causa, ao filho e ao padre Olha que deves Turno: este o serviço Que do teu brio espero e da fortuna.» E este recado he enviado ao heroe troiano. Encontram-se os dous rivaes, rende-se Turno, e aos seus rogos Enéas quasi ia cedendo, quando vê o talim de Pallante ao hombro do seu vencedor; então, lembrado das preces de Evandro e dos seus deveres para com elle, immola a Turno, dizendo-lhe que era Pallante quem naquelle golpe o matava. Se Enéas em taes circumstancias lhe perdoasse, por certo obraria como um anticipado discipulo de Christo, mas não obraria bem segundo as idéas e opiniões do seu seculo, e segundo as obrigações contrahidas para com Evandro. Eu sublinhei o adverbio quasi, porque Virgilio, que julgava ser uma necessidade para Enéas aquella morte, não diz que tivesse lugar só por causa do talim, mas que tal apparecimento lhe apagou a momentanea compaixão. Se acontecesse o contrario, então he que devia Enéas ser tido por um bom córte de frade capucho, como alguns lhe tem chamado. — Nos versos que abrange esta nota lê-se o que elle tornou em resposta aos embaixadores latinos, quando vieram pedir tregoas para enterrar os mortos: «E a paz, diz entre outras razões, quereis somente Para os da luz privados nas batalhas? Eu quereria concedel-a aos vivos.» Isto, a repugnancia com que matou a Lauso, o duello que offerece para evitar effusão de sangue, as generosas condições que propoz no caso de vencer, ao revez das de Turno e Latino, convencem da injustiça com que Mr. Amar, comparando Enéas a Achilles, diz assim de Virgilio: «Si du moins il prêtait de temps en temps à son héros ces retours de sensibilité que l'on retrouve avec tant de plaisir dans Achille lui-même!...» De sorte que, na opinião de Mr. Amar, em Achilles ha mais toques de sensibilidade que em Enéas! E este nem de tempos a tempos a tem!!
225-293. — 219-285. — Este pedaço, bem pouco apreciado, he um dos mais bellos, e em que mais se mostra a philosophia do autor. Latino e Turno deputam Venulo a Diomedes, pedindo-lhe auxílio contra Enéas: Diomedes recusa, e o poeta põe o elogio da paz na bôca desse guerreiro, que outrora só conhecia o jus da espada, e se atreveu a acommetter e ferir o proprio deus Marte[5]. Repare-se na habilidade do poeta em o fazer tecer os louvores de Enéas, lembrando o combate que ambos tiveram, como consta da Iliada liv. V. O que porêm assinaladamente se deve approvar, he o patriotismo com que Virgilio aproveita a occasião de recommendar o repouso de que necessitava o seu paiz, depois de tantas e tam cruas guerras intestinas.
300-485. — 292-469. — No conselho por Latino convocado, que principiou alguns versos atrás, sam admiraveis os discursos do rei, de Drances, e mórmente o de Turno: a prudencia e o fim pacífico
- ↑ No original, há aqui aspas injustificadas, suprimidas na segunda edição.
- ↑ No original, não há aspas nesse lugar.
- ↑ ádriaco no texto original; erro tipográfico corrigido na segunda edição.
- ↑ concelho no texto original; erro tipográfico corrigido na segunda edição.
- ↑ Na verdade, Diomedes feriu Vênus; lapso de Odorico.