Ficamos no ponto em que uma das janelas do quarto aumentou a dose de luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; também podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velho, se não de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quase infinito. Já pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da derradeira amiga espiar da porta entreaberta, voltava o seu para outro lado e engrolava uma cantiga da infância, para enganá-la e viver.

Flora não recorria a tais cantigas, aliás tão próximas. Quando via o céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez quis desenhar, mas não lho consentiram. Se a morte a espiava da porta, tinha um calafrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abri-los fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ela.

— Você amanhã está pronta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para Petrópolis, disse Natividade disfarçando as lágrimas, mas a voz fazia o ofício dos olhos.

— Petrópolis? suspirou a doente.

— Lá terá muito que desenhar.

Eram sete horas da manhã. Na véspera, quando os gêmeos saíram de lá, já tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso que a realidade venha atrás deles; daí as esperanças. Também não bastam esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe algum sossego; às sete horas, depois daquelas palavras de Natividade, Flora pôde dormir.

Quando Pedro e Paulo voltaram a Andaraí, a enferma estava acordada, e o médico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer aplicações, que declarou enérgicas. Todos tinham sinais de lágrimas. De noite, Aires apareceu trazendo notícias de agitação na cidade.

— Que é?

— Não sei; uns falam de manifestações ao Marechal Deodoro, outros de conspiração contra o Marechal Floriano. Há alguma coisa.

Natividade pediu aos filhos que se não metessem em barulhos; ambos prometeram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas, grupos, patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamarati iluminado, tiveram a curiosidade de saber o que houve e havia; vaga sugestão, que não durou dois minutos. Correram a meter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na manhã seguinte os criados levaram os jornais com as notícias da véspera.

— Veio algum recado de Andaraí? perguntou um.

— Não, senhor.

Ainda quiseram ler, por alto, alguma coisa. Não puderam; estavam ansiosos de sair de casa e saber notícias da noite. Posto levassem os jornais consigo, não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de pessoas presas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso tudo, que deram por si na casa de D. Rita, antes de entender o que houvera. Flora ainda vivia.

— Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias.

— Não fales tanto, minha filha, acudiu D. Cláudia. Triste estou sempre que adoeces. Fica boa e verás.

— Fica, fica boa, interveio Natividade. Eu, em moça, tive uma doença igual que me prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando já ninguém esperava.

— Então já não esperam que me levante?

Natividade quis rir da conclusão tão pronta, com o fim de a animar. A doente fechou os olhos, abriu-os daí a pouco, e pediu que vissem se estava com febre. Viram; tinha, tinha muita.

— Abram-me a janela toda.

— Não sei se fará bem, ponderou D. Rita.

— Mal não faz, disse Natividade.

E foi abrir, não toda, mas metade da janela. Flora, posto que já mui caída, fez esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição ficou sem dar de si; os olhos, a princípio vagos, entraram a parar, até que ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, trazendo recados e levando-os; fora, espreitavam o médico.

— Demora-se; já devia cá estar, dizia Batista.

Pedro era médico, propôs-se a ir ver a enferma; Paulo, não podendo entrar também, ponderou que seria desagradável ao médico assistente; além disso, faltava-lhe prática. Um e outro queriam assistir ao passamento de Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu à sala, e, sabendo o que era, respondeu negativamente. Não podiam entrar; era melhor que fossem chamar o médico.

— Quem é? perguntou Flora, ao vê-la tornar ao quarto.

— São os meus filhos que queriam entrar ambos.

— Ambos quais? perguntou Flora.

Esta palavra fez crer que era o delírio que começava, se não é que acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade ia pelo delírio. Aires, quando lhe repetiram o diálogo, rejeitou o delírio.

A morte não tardou. Veio mais depressa do que se receava agora. Todas e o pai acudiram a rodear o leito, onde os sinais da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rápidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de defunta que de escultura. As janelas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o céu.