Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pai dera à Regente daquele trecho do discurso. Protestou contra ela, em casa; quis fazê-lo também em público, mas Natividade interveio a tempo. Aires pôs água na fervura, dizendo ao futuro bacharel:
— Não vale a pena, moço; o que importa é que cada um tenha as suas idéias e se bata por elas, até que elas vençam. Agora que outros as interpretem mal é coisa que não deve afligir o autor.
— Afligir, sim, senhor; pode parecer que é assim mesmo... Vou escrever um artigo a propósito de qualquer coisa, e não deixarei dúvidas...
— Para quê? inquiriu Aires.
— Não quero que suponham...
— Mas quem duvida dos seus sentimentos?
— Podem duvidar.
— Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar comigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro também. Seremos três à mesa, um almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Alemanha...
No domingo foram os dois ao Catete, menos pelo almoço que pelo anfitrião. Aires era amado dos dois; gostavam de ouvi-lo, de interrogá-lo, pediam-lhe anedotas políticas de outro tempo, descrição de festas, notícias de sociedade.
— Vivam os meus dois jovens, disse o conselheiro, vivam os meus dois jovens que não esqueceram o amigo velho. Papai como está? E mamãe?
— Estão bons, disse Pedro.
Paulo acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.
— E tia Perpétua?
— Também está boa, disse Paulo.
— Sempre com a homeopatia e as suas histórias do Paraguai, acrescentou Pedro.
Pedro estava alegre, Paulo preocupado. Depois das primeiras saudações e notícias, Aires notou essa diferença, e achou que era bom para tirar a monotonia da semelhança; mas, enfim, não queria caras fechadas, e indagou do estudante de Direito o que é que ele tinha.
— Nada.
— Não pode ser; acho-lhe um ar meio sorumbático. Pois eu acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam comigo.
Paulo rosnou uma palavra que nenhum deles entendeu e sacou do bolso um maço de folhas de papel. Era um artigo...
— Um artigo?
— Um artigo em que tiro todas as dúvidas a meu respeito, e peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.
Aires propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro concordou com este alvitre, alegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser, naturalmente. Aires meteu o caso à bulha e aceitou ouvir o artigo.
— É pequeno, sete tiras.
— Letra miúda?
— Não, senhor; assim, assim.
Paulo leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós: "Ouvi esta palavra, vacas gordas que estais no monte de Samaria..." As vacas gordas eram o pessoal do regime, explicou Paulo. Não atacava o imperador, por atenção à mãe, mas com o princípio e o pessoal era violento e áspero. Aires sentiu-lhe aquilo que, em tempo, se chamou "a bossa da combatividade". Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:
— Conheço tudo isso, são idéias paulistas.
— As tuas são idéias coloniais, replicou Paulo.
Deste intróito podiam nascer piores palavras, mas felizmente um criado chegou à porta anunciando que o almoço estava na mesa. Aires ergueu-se e disse que à mesa daria a sua opinião.
— Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, coisa especial! Vamos a ele.
Aires queria cumprir deveras o ofício que aceitara de Natividade. Quem sabe se a idéia de pai espiritual dos gêmeos, pai de desejo somente, pai que não foi, que teria sido, não lhe dava uma afeição particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fora de propósito que ele buscasse somente matéria nova para as páginas nuas do seu Memorial.
Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdém, Aires sem uma nem outra coisa. O almoço ia fazendo o seu ofício. Aires estudava os dois rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de uma erupção de pele da idade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não acompanharam o ex-ministro. A política veio morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derrubar a monarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o gérmen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dois regimes no mesmo salmão delicioso.