Nenhuma dessas coisas preocupava Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da ilha Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer dos olhos. Esta opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Há outros, também ruis, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre.

Bem sei que há gente para quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem as bailadeiras são outra coisa mais que mulheres de ofício. Também eu, se é lícito citar alguém a si mesmo, também eu acho que a dança é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos anos longos e grisalhos, mas também outra que não digo, por não valer a pena. Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo.

Por exemplo, D. Cláudia. Também ela pensava no baile da ilha Fiscal, sem a menor idéia de dançar, nem a razão estética da outra. Para ela, o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência. Via-se já com a família imperial. Ouvia a princesa:

— Como vai, D. Cláudia?

— Perfeitamente bem, Sereníssima senhora.

E Batista conversaria com o imperador, a um canto, diante dos olhos invejosos que tentariam ouvir o diálogo, à força de os fitarem de longe. O marido é que... Não sei que diga do marido relativamente ao baile da ilha. Contava lá ir, mas não se acharia a gosto; pode ser que traduzissem esse ato por meia conversão. Não é que só fossem liberais ao baile, também iriam conservadores, e aqui cabia bem o aforismo de D. Cláudia que não é preciso ter as mesmas idéias para dançar a mesma quadrilha.

Santos é que não precisava de idéias para dançar. Não dançaria sequer. Em moço dançou muito, quadrilhas, polcas, valsas, a valsa arrastada e a valsa pulada, como diziam então, sem que eu possa definir melhor a diferença; presumo que na primeira os pés não saíam do chão, e na segunda não caíam do ar. Tudo isso até os vinte e cinco anos. Então os negócios pegaram dele e o meteram naquela outra contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo lugar ou nunca se sai dele. Santos saiu e já sabemos onde está. Ultimamente teve a fantasia de ser deputado. Natividade abanou a cabeça, por mais que ele explicasse que não queria ser orador nem ministro, mas tão somente fazer da Câmara um degrau para o Senado, onde possuía amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno.

— Eterno? interrompeu ela com um sorriso fino e descorado.

— Vitalício, quero dizer.

Natividade teimou que não, que a posição dele era comercial e bancária. Acrescentou que política era uma coisa e indústria outra. Santos replicou, citando o Barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher declarou por um modo seco e duro que aos sessenta anos ninguém começa a ser deputado.

— Mas é de passagem; os senhores são idosos.

— Não, Agostinho, concluiu a baronesa com um gesto definitivo.

Não conto Aires, que provavelmente dançaria, a despeito dos anos; também não falo de D. Perpétua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural que dançasse, e muito, não obstante o afinco e paixão dos seus estudos. Vivia enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, além do busto de Hipócrates, tinha os retratos de algumas sumidades médicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita moléstia pintada, peitos cortados verticalmente para se lhes verem os vasos, cérebros descobertos, um cancro de língua, alguns aleijões, coisas todas que a mãe, por seu gosto, mandaria deitar fora, mas era a ciência do filho, e bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros.

Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsícore, era acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que com pouco se enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse o mar, e se consolasse com a esperança de o mirar, advertiria também que a noite escura tolheria a consolação. Que multidão de dependências na vida, leitor! Umas coisas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si.

Mas donde viria o tédio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, não; este era, como sabes, um dos dois que lhe queriam bem. Salvo se ela queria principalmente ao que estava em São Paulo. Conclusão duvidosa, pois não é certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a ambos com a mesma simpatia, o que fazia agora a Pedro na ausência de Paulo, e faria a Paulo na ausência de Pedro, não me faltará leitora que presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que não fosse ao baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem esse, leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quinto, ninguém mais. Uma esquisitona, como lhe chamava a mãe.

Não importa; a esquisitona foi ao baile da ilha Fiscal com a mãe e o pai. Assim também Natividade, o marido e Pedro, assim Aires, assim a demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bela idéia do governo, leitor. Dentro e fora, do mar e de terra, era como um sonho veneziano; toda aquela sociedade viveu algumas horas suntuosas, novas para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos, — ou, quando menos, para a nossa amiga Natividade — e para o conservador Batista.

Aquela considerava o destino dos filhos, — coisas futuras! Pedro bem podia inaugurar, como ministro, o século XX e o terceiro reinado. Natividade imaginava outro e maior baile naquela mesma ilha. Compunha a ornamentação, via as pessoas e as danças, toda uma festa magna que entraria na história. Também ela ali estaria, sentada a um canto, sem se lhe dar do peso dos anos, uma vez que visse a grandeza e a prosperidade dos filhos. Era assim que enfiara os olhos pelo tempo adiante, descontando no presente a felicidade futura, caso viesse a morrer antes das profecias. Tinha a mesma sensação que ora lhe dava aquela cesta de luzes no meio da escuridão tranqüila do mar.

A imaginação de Batista era menos longa que a de Natividade. Quero dizer que ia antes do princípio do século, Deus sabe se antes do fim do ano. Ao som da música, à vista das galas, ouvia umas feiticeiras cariocas, que se pareciam com as escocesas; pelo menos, as palavras eram análogas às que saudaram Macbeth: — "Salve, Batista, ex-presidente de província!" — "Salve, Batista, próximo presidente de província!" — "Salve, Batista, tu serás ministro um dia!" A linguagem dessas profecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade é que ele se arrependia de as escutar, e forcejava por traduzi-las no velho idioma conservador, mas já lhe iam faltando dicionários. A primeira palavra ainda trazia o sotaque antigo: "Salve, Batista, ex-presidente de província!" mas a segunda e a última eram ambas daquela outra língua liberal, que sempre lhe pareceu língua de preto. Enfim, a mulher, como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia pela boca, isto é, que já sentia em si aquelas futurações. O mesmo lhe repetiu na manhã seguinte, em casa. Batista, com um sorriso disfarçado, descria das feiticeiras, mas a memória guardava as palavras da ilha: "Salve, Batista, próximo presidente!" Ao que ele respondia com um suspiro: Não, não, filhas do Diabo...

Ao contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu na ilha. Conjeturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões que lá ficam, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a vizinhança do mar, os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampiões de gás, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis aí aspectos novos que a encantaram durante aquelas horas rápidas.

Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e própria. Toda ela compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, sorria, esquecia-se do resto para se meter consigo. Também invejava a princesa imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais recôndito do paço, fartando-se de contemplação ou de música. Era assim que Flora definia o ofício de governar. Tais idéias passavam e tornavam. De uma vez alguém lhe disse, como para lhe dar força: "Toda alma livre é imperatriz!”

Não foi outra voz, semelhante à das feiticeiras do pai nem às que falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. Não; seria pôr aqui muitas vozes de mistério, coisa que, além do fastio da repetição, mentiria à realidade dos fatos. A voz que falou a Flora saiu da boca do velho Aires, que se fora sentar ao pé dela e lhe perguntara:

— Em que é que está pensando?

— Em nada, respondeu Flora.

Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma coisa e insistia por ela. Flora disse como pôde a inveja que lhe metia a vista da princesa, não para brilhar um dia, mas para fugir ao brilho e ao mando, sempre que quisesse ficar súdita de si mesma. Foi então que ele lhe murmurou, como acima:

— Toda alma livre é imperatriz.

A frase era boa, sonora, parecia conter a maior soma de verdade que há na Terra e nos planetas. Valia por uma página de Plutarco. Se algum político a ouvisse poderia guardá-la para os seus dias de oposição ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que ele mesmo escreveu no Memorial. Com esta nota: "A meiga criatura agradeceu-me estas cinco palavras".