Assim o deixamos, há apenas dois capítulos, a um canto da sala da gente Santos, em conversação com as senhoras. Hás de lembrar-te que Flora não despegava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a achava inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar. Inexplicável que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica por quê?

Quis perguntá-lo ao conselheiro, mas não achou ocasião, e ele saiu cedo. A primeira vez, porém, que Aires foi a São Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente o obséquio de uma definição mais desenvolvida. Aires sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé. Foi só o tempo de inventar esta resposta:

— Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem a choupana choupana. Se se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com tanta paciência, que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero.

Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso és mais velha e mais fina que ela, pode ser que a não aches mais clara. Ele é que não acrescentou nada, para não ficar incluído entre os artistas daquela espécie. Bateu paternalmente na palma da mão de Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé dele, a mocinha confessou que tinha idéia justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada, melhor seria ficar só na música. A música ia bem com ela, o francês também, e o inglês.

— Pois só a música, o inglês e o francês, concordou Aires.

— Mas o senhor promete que não me achará inexplicável? perguntou ela com doçura.

Antes que ele respondesse, entraram na sala os dois gêmeos. Flora esqueceu um assunto por outro, e o velho pelos rapazes. Aires não se demorou mais que o tempo de a ver rir com eles, e sentir em si alguma coisa parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer,creio.