I

A pensão Barkley, na rua do Paysandú, tinha a celebridade honesta de um lar de familia.

Discreta, sem reclamo algum, nem sequer uma placa no portal de granito, confortavelmente installada em um predio antigo e vasto, parecia dormir um somno de encanto á sombra do arvoredo, no fundo do jardim, onde una cascatinha, de pedrouço e rocalha, alegrava o silencio com um leve, perenne e fresco murmurio d’agua.

Caramancheis copados de jasmins e de rosas cercavam refugios apraziveis e as camaxirras, attrahidas pela quietação, teciam, com segurança, nos ramos musgosos, nas sébes de acalypha ou de cedro os seus ninhos a que Miss Barkley, todas as manhans, á hora do pão, já espartilhada e com toda a casa em regimen, dava uma lenta vista de olhos, como se considerasse aquellas frageis alcôfas de palha e plumas aposentos, tambem sujeitos á sua vigilancia. Além do predio, ao fim de uma alea de acacias, havia um chaletsinho que a ingleza, com o seu gosto sobrio e o seu meticuloso aceio, atapetára, mobilára e empannára para Frederico Brandt, professor de piano, critico musical e compositor eximio.

Naquelle refugio o artista, que só dispunha da noite para o estudo, porque as horas do dia mal lhe chegavam para as lições em bairros distantes, podia, sem incommodar os hospedes avessos á musica, como o velho commendador Bernaz, que occupava os melhores aposentos do primeiro andar. á frente, com o seu rheumatismo e seiscentos e tantos contos a juros, repassar os seus classicos e compor, em hora de genio, no estylo mysterioso e nostalgico de Grieg. Miss Barkley realizava com o silencio divino o prodigio da ordem. A um gesto seu, ao luzilar dos seus olhos azues acerados, que os oculos ainda mais accendiam, os criados curvavam-se sem ruido, sem afropello, cada qual no seu serviço.

Se ella descia ao jardim e relanceava um olhar dir-se-ia que os passaros cantavam mais trefegos. que as rosas desabrochavam mais Dellas; a mesma agua da cascatinha, sempre escassa no limido fluir, parecia correr mais abundante, com um som mais alto, à sombra humida dos fetos e dos tinhorões.

Era uma mulheraça magra, angulosa e hirta. Os seus lisos bandós côr de ambar, repuxados, ainda mais lhe afilavam o rosto. A boca redonda dava a impressão de estar sempre assobiando. o queixo agudo arrebilava-se como attrahido pelo nariz adunco, afiado em lamina de foice.

Pouco falava e a face, severa e dura. era impermiavel ao sorriso.

Um estudante. o Décio, que costumava apparecer em visita ao pianista. escandalisando a casa com a sua alegria esfusiante, definia. em phrase cerce, a aprumada e resequida ingleza: «É um homem aleijado em mulher». Mas gabava-lhe o tino, o genio administrativo, a austeridade puritana e o culto exaltado de Tennyson.

Alma escarpada, apparentemente esteril, um alcantil sem arestas, de todo nú e secco, era. entretanto, adorada na visinhança. A: noite, vultos atravessavam sorrateiramente o jardim, com embrulhos — eram os seus pobres que vinham à ração diaria,

Mais dfficil do que a conquista de uma cidade hem artilhada e abastecida era conseguir um aposento naquella casa de tanta simplicidade e modestia.

Miss Barkley preferia conservar os seus aposentos vasios, a alugal-os sem todas as garantias. Tomava informações e. ouvindo-as, os seus olhos faiscavam como incendiados. aclarando-lhe a sagacidade coscovilheira. e só depois de convencer-se, com provas, da honestidade do pretendente, entregava-lhe a chave, com as rígidas condições de moralidade e uma tabela regulamentar com a lista dos extraordinários.

Mas era uma alta recomendação a residência naquela casa: o recibo da “Pensão Barkley”, valia como fiança no comércio e como folha corrida na sociedade.

Apesar da vastidão senhorial do prédio eram poucos os que gozavam a sua tranquilidade, o conforto macio das suas poltronas Maple, a alvura cheirosa dos seus linhos, a sua sólida e farta refeição, as flores do seu jardim, que nunca faltavam à mesa do jantar, nas étageres, nos aposentos dos hóspedes, e sempre frescas.

No primeiro andar — o grande salão e dois quartos eram ocupados pelo comendador Bernaz.

Rabugento e caseiro, sempre a esmoer, passava os dias encerrado ou, nos grandes calores, aproveitando as manhãs e as tardes, com um costume branco de linho, largo chapéu de palha, saía ao jardim rondando as sombras, sempre com um alfarrabio ou metiase em um dos caramancheis para dormitar à sesta.

Era o hospede mais antigo; dizia-se até que fora ele quem adiantara o capital a Miss, por isso ela o tratava com intimidade e um carinho quase meigo.

Miss Fanny, professora. Tinha o seu aposento fronteiro ao de Miss Barkley — um quarto amplo, abrindo sobre a área central, cheia de vasos de plantas, com uma janela para o jardim. Passava os dias fora, recolhendo à tarde da sua peregrinação pelo bairro a ensinar crianças, espalhando as regras e infundindo a pronuncia do inglês, lecionando história, geografia, desenho e música.

Sempre com uma bolsinha atulhada de brochuras inglesas, ao ver um pequenito em algum jardim, chamava-o e, através das grades, passava-lhe um dos opúsculos, mostrando-lhe as figuras; às vezes ajuntava à oferta lápis de cores, cartões e seguia apressada, batendo rijamente as solas.

Aos domingos, reunia bandos gárrulos de crianças, levava-as aos jardins públicos, às praias e alegre, rindo, com o sangue a manchar-lhe as faces, os olhos muito brilhantes, corria com elas pela relva fina, por entre as árvores, ao longo do areal molhado, fortalecendo-as ao sol, na sadia exalação dos bosques ou ao grande ar salitrado que vinha do oceano azul.

Era sardenta e sofria de enxaquecas, sempre com um vidrinho de sais e cápsulas no bolso.

À mesa falava o inglês ou estropiava, a contra gosto, o português, com esgares de nojo, rolando as palavras na boca, como se lhe causassem náuseas.

Em um dos quartos que abriam sobre a varanda, Alfredo Penalva, quintanista de medicina, muito casmurro, ainda que, certa manhã, o jardineiro o encontrasse estirado em um dos caramanchões, a roncar, com um embrulho agarrado ao peito. Quando o levantou nos braços, chamando-o respeitosamente à decência, o embrulho caiu-lhe das mãos, desfez-se, e ovos duros rolaram pelo saibro.

No andar superior, perto da escada, eu tinha uma saleta e um quarto. Ao fundo, em vastos salões, Pericles de Sá, viúvo, empreiteiro de obras e fotógrafo aos domingos, e à frente, enchendo o salão e três peças, inclusive o terraço entulhado de tinas e de vasos de plantas como um jardim babilônico, o formoso e excêntrico James Marian.

Sim, Basílio um guarda-livros; tinha no primeiro andar, um quarto ascético, que era o desespero de Miss Barkley, porque o homem fazia questão de o manter em desordem, com os livros espalhados, os jornais, as revistas pelo chão e berrava, vociferava quando, ao entrar, via os volumes em rimas ordenadas, os jornais emaçados, as revistas em pilhas, os cachimbos em uma prateleirinha. Esteve uma vez para mudar-se porque Miss Barkley, com o seu espírito de ordem, pôs-lhe no quarto uma estante de ferro e, pacientemente, com verdadeiro prazer, arrumou nela os livros.

No porão, à frente, moravam três rapazes exemplares — um estudante de direito, Chrispim; os dois outros, irmãos, Carlos e Eduardo, de família inglesa, empregados em uma casa importadora.

Miss Barkley levantava-se às 5 da manhã, no inverno, e às no verão, e, às 6 horas a casa resplandecia.

Os hóspedes tratavam-se com intimidade, só o inglês do segundo andar, o apolíneo James Marian, retraia-se a todo o convívio, sempre sorumbático, calado, aparecendo raramente à mesa às horas das refeições, tomando-as só ou no quarto, quando não as fazia no jardim, a uma pequena mesa de ferro, sob uma árvore, com champagne a refrescar em um balde, ouvindo os passarinhos.

Aos domingos, cedo, todo de branco sairia com uma raquete para o tênis ou com a bolsa em que levava a roupa para o futebol.

Era, em verdade, um formoso mancebo, alto e forte, aprumado como uma coluna.

Mas o que logo surpreendia, pelo contraste, nesse atleta magnífico, era o rosto de uma beleza feminina e suave. A fronte límpida, serena e como florida de ouro pelos anéis dos cabelos que por ela rolavam graciosamente, os olhos largos, de um azul fino e triste, o nariz direito, a boca pequena, vermelha e um pescoço roliço e alvo como um cipó sustentando a beleza perfeita da fisionomia de Vênus sobre a força viril e energica de Marte.

O comendador, que o não via com bons olhos, só lhe chamava — o “Boneco”, e Basílio, sempre azedo, não o suportava, achando-o ridículo com aquela cara de manequim de cabeleireiro.

James entrara com uma bagagem de lord e grandes recomendações de Smith & Brothers. Miss Barkley admirava-o e, à noite, na varanda, ouvia-o, com enlevo, falar das suas viagens nas terras bárbaras, em caravanas, caçadas de grande risco nos juncais da Índia, luta com uma cabilda negra, no Sudão, aventuras e temeridades de toda a sorte.

Conhecia o mundo e sonhava com uma viagem ao pólo para olhar os extremos frios da terra de cima de um fjord, ouvir rugir o urso, bramarem as renas sobre as banquises errantes.

Os hóspedes revoltavam-se contra a indiferença, as maneiras secas de James; achavam-no sem educação. “Se tem libras, coma-as, dizia o comendador, ninguém lhes pede. O bruto! Nem para dizer bom dia... Pensa que está a lidar com os negros da África... Engana-se!” Miss Fanny intervinha apaziguando com a sua voz infantil e o seu português araviado: “Ele era até distinto. Um pouco acanhado, vergonhoso... Falassem-lhe...”.

— Falar! A quem? Ao Boneco? Ora! Pelo amor de Deus! O Decio almoçando, um domingo, na pensão, aludiu a um lindo inglês que vira.

— Imaginem, a mais formosa cabeça de mulher sobre o tronco formidável de um hércules de circo. A beleza e a força. Toda a Estética!

— Pois saiba o amigo, adiantou o comendador, mexendo, com vagar, a sua salada de batatas, que toda essa Estética, ou como diz, é o maior grosseirão que ó céu cobre.

— O comendador conhece-o?

— Se o conheço!? Se ele mora aqui! Decio arregalou os olhos exclamando, num berro:

— Aqui!

— Sim, senhor. Olhe, pergunte a Miss Barkley. Miss baixou os olhos, com um leve rubor nas faces. Mas alguém ousou contrariar o comendador; foi Frederico Brandt:

— Não é um grosseiro, é um tímido. Todos voltaram-se para o pianista que se servia de peixe.

— Um tímido! exclamou Basílio, carregando o sobrecenho. Por que tímido e não grosseiro?

— Eu explico. Miss Fanny repousou o talher, interessada, e todos os olhos fitaram-se no rosto moreno do professor. Uma noite — eu estudava a Pathetica de Beethoven, quando, em uma pausa, pareceu-me ouvir andar no jardim, passos cautelosos que se distanciavam. Corri à janela, abri-a e, ao luar, reconheci Mister James.

Ainda estive um momento a contemplar a noite, voltei depois ao piano e toquei até tarde. Quando me levantei para fechar a janela ele subia á varanda, lentamente.

Depois dessa noite nunca mais falhou aos meus estudos e eu toco, certo de que ele está por ali, entre as árvores, em algum canto, ouvindo-me. Conhece-me, olha-me. Encontra-mo-nos todos os dias. Nunca me falou.

— É um romântico, explicou o Décio.

— Orgulho! Bradou o guarda-livros.

— Qual orgulho. Timidez. Décio corroborou:

— Pode ser. Em geral, esses colossos são tímidos e ingênuos como crianças. A verdadeira força é simples como a natureza.

— Ora, a natureza! A natureza não tem obrigação de ser educada. Um homem sim, deve ser polido. Já se vê que ninguém se revolta contra as palmeiras aí da rua, porque não se afastam para dar passagem nem contra a chuva que molha, mas um homem, vivendo entre homens, tem obrigação de ser cortês. Agora um bruto passar por mim, muito teso, batendo com os pés, sem, ao menos, tocar no chapéu... Isso lá, mais devagar... E grosseria, é grande!

— É besta! Resumiu Basílio. Explodiu uma gargalhada. Pericles de Sá, que se conservara em silêncio, pigarreou. Penalva teve um engasgue e pôs-se a tossir e os dois irmãos, Carlos e Eduardo, muito vermelhos, abafaram o riso com os guardanapos. Miss Barkley fechou a cara ressentida e os seus olhos lampejantes ergueram-se para o guarda-livros que mastigava com gana. Pairou um silêncio que Brandt interrompeu dizendo:

— Eu mesmo tenho dessas coisas: só falo quando conheço.

— E ele? Não nos conhece? Não mora aqui?! Bradaram, a um tempo, com fúria igual o comendador e Basílio.

— Sim, mas...

— Mas, o quê? Não há mais. Quer o senhor tomar as dores pelo homem só porque ele vai ouvir as suas músicas. Ora, pelo amor de Deus!

— Eu não peço auditório, comendador. Quando o quero anúncio um concerto.

Houve um hiato de acanhamento, olhares cruzaram-se; sentia-se o mal estar vexado. Miss Barkley acudiu a tempo:

— Ó senhores, que discussão! Que é isto? Com um dia tão bonito, realmente. Esqueçam mister James com as suas excentricidades. O inglês é assim, tem nevoeiros na alma. Deixem vir o sol e hão de vê-lo alegre como um pássaro. Almocemos em paz.

Ainda discutiam quando a campainha vibrou. O criado subiu ao segundo andar e voltou comunicando a Miss Barkley que mister James queria o almoço em cima, e champagne.

No dia seguinte, uma brumosa segunda- feira de vento, Basílio, ao descer para o almoço, encontrou Miss Barkley no vestíbulo, onde tinha a sua escrivaninha protegida por um biombo, e houve entre os dois uma troca de palavras a propósito da cena da véspera, à mesa.

— O senhor compreende: tenho aqui rapazes, preciso manter o respeito.

— Tem razão, Miss, eu sou mesmo esquentado, é o meu gênio. Mas não há dúvida. Não falarei mais no homem: morreu para mim. E olhe — diga ao Alfredo que não me bula na mesa, deixe tudo como está. Era a defesa da desordem.

Uma noite, estava eu a adiantar um trabalho, quando me pareceu ouvir gemidos, depois o baque de um corpo, nos aposentos do inglês. Estive um momento indeciso, á escuta, mas como os gemidos continuassem sai ao corredor, adiantei-me até a porta do salão — estava aberta, havia luz. Os gemidos cessaram e eu já me decidia a voltar quando vi aparecer mister James, mais lívido que nunca, os olhos imensos, alargados com expressão de pavor, a boca entreaberta, o alvo e formoso pescoço nu até a gola baixa da camisa de seda.

Viu-me, correu a mim, tomou-me as mãos ambas, arrastou-me até o sofá onde se deixou cair arquejando. Atordoado com tamanho imprevisto fiquei sem ação, a olhar aquele homem que se debatia metendo os dedos pela gola da camisa como para alarga-la, agitando aflitamente a cabeça, num desespero de ar.

De repente, fitando em mim os grandes olhos maravilhosos, sorriu, com meiguice feminina, abrindo largamente os braços no encosto do sofá e derreando a cabeça dourada e revolta.

Tomei-lhe o pulso, estava agitado; toquei-lhe a fronte: era de neve. Sentei-me junto dele e interroguei-o:

— Que sente? Agitou-se, estirou as pernas, estalaram-lhe de rijo os dentes.

Sobre a mesa havia uma garrafa e copos: uísque. Preparei-o com água e ofereci-lhe. Bebeu a goles espaçados. Esteve ainda um momento inerte, de olhos cerrados, como adormecido, respirando a custo, mas pouco a pouco, readquirindo a calma, sorrindo em êxtase, murmurando palavras vagas, pôs-se a passar a mão pelo peito. Levantou-se de ímpeto e, muito brando, muito afetuoso, apertou-me a mão chalé Ainda esteve um momento em silêncio, conservando a minha mão na sua, por fim afastou-se, pôs-se a caminhar pelo salão, chegou ao limiar do terraço, retrocedeu hesitante, a olhar perdidamente e a sorrir.

Despedi-me, oferecendo-me para o que fosse preciso. Ele acompanhou-me à porta muito agradecido, explicando “que era sujeito aquelas vertigens”. E apertou-me efusivamente a mão, sorrindo: Thank you! Thank you!

Recolhi aos meus aposentos e nessa noite não consegui adiantar uma palavra ao trabalho que tinha em mãos. Estive à janela fumando, li, deitei-me insone, preocupado com o caso e era madrugada — começava o movimento na rua — quando adormeci.

De manhã, atravessando a álea de acácias a caminho do banheiro, descobri James parado sob uma árvore acompanhando, com interesse, as idas e vindas de uma camaxirra que se instalava em um ramo, tecendo o ninho.

Ouvindo os meus passos voltou o rosto. Eu ia falar-lhe quando o vi afastar-se vagarosamente, os braços para as costas, a cabeça baixa.

Senti uma revolta. Decididamente o comendador e Basílio tinham razão.

E nunca mais nos encontramos. Do meu quarto, à noite, eu ouvia-lhe os passos até tarde, às vezes cantarolas; mais nada.

Uma noite passeávamos na praia de Botafogo, Brandt e eu, quando o vimos passar em um carro aberto.

— Lá vai o excêntrico, disse o músico atirando à rua a ponta do charuto. Comentamos aquela vida misteriosa e eu referi o caso da noite, “a vertigem” e Brandt, depois de ouvir-me em silêncio, disse:

— Para mim é um doente d’alma. Queria que o visses à noite, quando toco.

O homem vem até à minha janela e ali fica horas e horas, ouvindo. Há certas músicas que o irritam, não sei porque. Mal as começo, vai-se, nervoso, resmungando. Outras atraem-no como a Melodie-nocturne de Meyer-Helmund, por exemplo — e não me causará surpresa vê-lo, uma noite, entrar no chalé, ouvir e retirar-se sem dizer palavra. Beethoven e Schumann exercem verdadeiro prestígio sobre ele. Se queres convencer-te vem ao chalé e verás. E o mais interessante é que Miss Fanny adora-o.

— Quem? Miss Fanny!

— Sim. Até não sei se o homem fica no jardim para ouvir-me ou se o meu piano é apenas um pretexto. Conversam, passeiam juntos. Vejo-os andar por ali até tarde.

— Miss Fanny!

— Pois não.

— Ora!... Não é possível. Miss Fanny? Não creio.

— Quando quiseres convencer-te.

— Amanhã, então...!

— Seja amanhã. Vai cedo: às 9.

— Está dito. E despedimo-nos. Brandt ia a um aniversário rico, estava no programa com uma Elegia e a Marcha dos mistas.

A noite abafava. Ao longe, sobre o mar oleoso, luziam relâmpagos alumiando um céu denso e revolto. Golpes de vento levantavam torvelins de poeira.

Na noite seguinte, à hora convencionada, entrei no chalé. Brandt esperava-me folheando vagamente a partitura do Parsifal.

A sala era um encanto. Móveis amplos, de repouso: poltronas e divãs de marroquim verde; o grande piano Bechstein, de cauda, aberto, e um harmonium. Um biombo de seda a um ângulo com altas cegonhas a fio de ouro, pensativas, fincadas em uma pata, sobre estrias trêmulas que figuravam um ribeiro e a haste longa, esguia e recurva de um lírio, aberto em cálice, emoldurava as aves.

Num cachepôt, em coluna de faiança, uma palmeira inclinava graciosamente as folhas em flabelos e nas paredes quadros preciosos, gravuras, retratos, máscaras carrancudas de samurais, porcelanas antigas; uma panóplia autêntica arranjada em torno de um escudo com um morrião ao alto e, irradiando, um troféu de flexas indígenas, e zarabatanas e tacapes e borés à volta de um vistoso cocar de plumas flanqueado por um cinto de tucum franjado de campanulas de coco e uma luzida cabeleira negra, longa, a escorrer como a cauda farta de um potro selvagem.

As estantes de música regorgitavam de alguns. Um reposteiro verde encobria a porta do quarto.

Brandt abriu uma das persianas e logo um ramo de jasmineiro, estrelado de flores, inclinou-se com intimidade invadindo o aposento.

Um luar triste nevava.

Fora, à margem, as árvores faziam um sussurro de sedas amarrotadas e, a espaços, um grito agudo, lancinante, magoava o silêncio. Era na vizinhança, uma senhora a rolar gorgeios em falsete histérico.

Brandt sorriu e, tomando um álbum na estante, abriu-o ao piano e sentou-se, dizendo-me serenamente:

— Vou atraí-lo. Correu o teclado, esteve um momento recolhido, de olhos altos, como à espera de um influxo superior...

Os dedos moveram-se de leve, serenos, num arroubo, desenhando na alma essa suave Pastoral, de Beethoven. Os sons iam cantando, espalhando a divina poesia, abrindo o sentimento para o mistério da natureza, voando, borboletas do sonho, para o sonho da noite, a confundir-se com o perfume, lá fora, na serenidade mística do espaço adormecido, ao luar.

Ia-se-me da memória a razão daquele encanto, a causa daquela festa harmoniosa quando o pianista que, de instante a instante, inclinando-se lançava os olhos ao jardim, avisou-me imprimindo mais alma à maravilhosa sinfonia: “Aí vem ele!”.

Eu ocupava uma poltrona fronteira à janela e vi distintamente o vulto branco adiantar-se, ora em plena luz, ora velado pela sombra dos languidos ramos.

Soergui-me na poltrona para ver melhor, nada; adiantei-me até a janela, olhei: lá estava ele imóvel, junto a uma palmeira, ouvindo.

Longe, outro vulto branco, leve como a neblina das manhãs, parecia oscilar ao fim da álea de acácias como balouçado em lenta redouça. Era Miss Fanny. E assim estiveram emquanto a música soou.

Calando-se o piano, James deixou o seu posto e foi-se vagarosamente ao encontro da professora. Seguiram como visões pálidas, perderam-se na sombra, ladeando um dos caramancheis que o luar caleava.

— Tens razão. É um idílio.

— Estás convencido?

— É verdade.

— Já vês que o inglês não é tão excêntrico como parece.

— Mais do que parece, Brandt. Lindo como é, com a fortuna que possui, podia levar o coração mais alto e dar aos olhos o encanto de uma face divina. Miss Fanny... has de convir... Excelente moça, não há dúvida, mas...

— Quem sabe lá! Miss Fanny é inteligente, tem uns cabelos que a transfiguram e o amor contenta-se com pouco. Há quem concentre a paixão em um sorriso, em um gosto, no som da voz, abstraindo tudo mais. Ama-se, às vezes, a dor. Quem sabe lá! As almas puras aprofundam-se. Nenhum dos dois é um ser vulgar: ele, um excêntrico; ela, uma idealista. A formosura é van. O coração não vê, sente. A vista é da inteligência, não do sentimento: está na cabeça... e a cabeça é o que flutua na realidade, — o coração, esse mergulha no mistério, é o ritmo. Quem sabe lá! Mas deixemo-nos disso. Agora Schumann, a Reverie. E preludiou.

De novo, ao luar, alvejaram os dois vultos. Em passo moroso e pensativo James, destacando-se da companhia, veio ficar junto da palmeira e Miss Fanny conservou-se no mesmo ponto em que apparecera, immovel e branca, como de mármore.

Ao fim da sentida página James, silenciosamente, retomou o caminho a juntar-se à professora e, confundidos em uma só mancha, desapareceram na sombra.

— É curioso!

— Que dizes?

— Não sei. A noite ia alta, serena e afagante, com o luar cada vez mais alvo como uma flor que se fosse abrindo no silêncio. A aragem fresca meneava os ramos sacudindo as flores fecundas ou virgens que amavam esparzindo aroma ou recebendo germens. O perfume subia como uma voluptuosa serenata: era o hino nupcial das rosas sensuais, o epitalâmio das magnólias e dos jasmins, a divina harmonia das corolas.

Languidamente os galhos inclinavam-se e as sombras negras dos ramos, movendo-se na areia das áleas, eram como vigias de amor, escondendo discretamente o colóquio noturno.

Brandt, à janela, repeliu a frase:

— Quem sabe lá! Pode ser um puro amor espiritual, essa divina, afinidade que estabelece uma corrente de atração entre almas distanciadas, fazendo sair do frio do Norte um homem louro para os braços morenos de uma filha do país do sol. O povo chama a essa força misteriosa — Destino. E por que não — Simpatia? A formosura é uma ilusão dos sentidos. Belo, verdadeiramente Belo só o Ideal. A noiva de Menipo é um símbolo. Não há formosura que resista ao Tempo, e o Belo é eterno como o Ser.

Eu te digo: há ocasiões em que me sinto ardentemente apaixonado e a Mulher que eu amo (chamemos-lhe Mulher, que é a expressão do feminino) não vive, e existe; é imaterial e eu sinto-a. Vejo-a numa onda de sons como se vê o fumo que sobe dos turíbulos. Envolve-me com a sua essência e dá-me o puro gozo espiritual, que é o êxtase, mais doce, mais fecundo que o espasmo efêmero que gera a morte. É a Melodia, dirás. Não sei, eu chamo-lhe Amor. Nunca amaste?

— Verdadeiramente, nunca. Tenho tido impressões fugazes.

— Fugazes... O amor é uma ideia fixa: sobe do coração em sentimento e torna-se pensamento no cérebro. Quem sabe lá? Esse homem encontrou, talvez, em Miss Fanny o complemento do seu ser, o seu feminino. Eram duas ânsias que se procuravam no Ideal. As palmeiras não amam à distância?

— E já notaste, Frederico, que o rosto de James não tem um só traço viril?

— Rosto de esfinge, meu amigo.

— Dizes bem: de esfinge. Boa noite, Brandt. E obrigado pelo espetáculo.

— Se te agradou, volta. E, à porta, acrescentou: Ainda espero arrastá-lo até aqui. Orfeu domava as feras, sustava o curso dos rios com a sua lira mística. Não é muito que eu avassale uma alma.

— Tens a Arte toda poderosa. Até amanhã. Chegava à varanda rescendente e clara quando o silêncio abriu-se em sons de enternecida e comovedora doçura. Encostei-me à balaustrada, ouvindo. Era o “arioso” de Elsa, a descrição do sonho, o canto humilde da Fragilidade fortalecida pela Fé, à margem do Scaldo, entre a crueldade pérfida de Frederico e Ortruda e a indiferença dos brabanções. De onde vinha? Que voz o espalhava pela noite com tão doce meiguice?

Mas uma exclamação estranha arrepiou-me:

O my soul! Where art thou, my soul..!

Relanceei um olhar e vi o branco vulto de James perto do caramanchel, os braços levantados para o céu, em suplica e, de rojo à borda de um canteiro, como uma ruína, Miss Fanny chorava.