Décio modorrava preguiçosamente estirado no divã, os braços sob a cabeça, balançando de leve os pés cruzados. Do incensório de bronze, pousado sobre a estante de músicas, evolava-se um lento e fino fio aromal de fumo. Sentindo-me, o estudante abriu os olhos, estirou retesadamente os braços e sentou-se de repelão encarando-me com a fisionomia desabotoada em sorriso:

— Trazes o papirpos?

— Parte. O melhor levou-o agora mesmo o dono.

— Quem? Exclamou num berro de surpresa. O inglês?!

— Sim.

— Esteve aí?

— Um minuto.

— Então foi por isso que miss Barkley mandou chamar o nosso Orfeu.

— Brandt?

— Lá está com ela. O Alfredo arrebatou-me o justamente quando ele preludiava Dukas. Atirou-se pesadamente na fofa poltrona e pôs-se a brincar com as borlas de uma braçadeira. De repente, num rompante, pondo-se de pé, desatou a rir: Então o inglês abalou com o livro misterioso.

— Palavra...

— É fantástico! Exclamou a rir apertando-me nos braços.

— Não acreditas...? Perguntei vexado. Ele acendeu um cigarro e disse:

— Realmente o tipo do homem é dos que impressionam. Se eu houvesse convivido com ele, como tu, garanto que teria feito um poema em versos raros, celebrando a beleza, a graça e a força olímpica...

— Mas duvidas do que te digo?

— Meu caro, a verdade é a beleza. Que importa a origem? Dizes que ela vem daquela cabeça acadêmica, seja! Mas has de permitir que os meus louvores vão todos ao teu gênio modesto. Senta-te, abre essa pasta e encanta-me.

— Juro-te que não há aqui senão o trabalho de um tradutor e mau, e se venho ler estas tiras, que pouco valem como concepção e forma, é porque nelas sinto o mistério. Para ti como para todos os que as lerem não passarão jamais de pura fantasia, mas eu conheci James na intimidade, ouvi-o, toquei-lhe a cicatriz do corpo...

— Como S. Thomé tocou a de Cristo...?

— Não rias. Que necessidade tinha esse homem de apresentar-se como um monstro? Décio, a sua narrativa foi feita com tão dolorosa sinceridade que o que nela me impressionou não foi o prodígio, mas o sofrimento. A vida de James Marian se não é um mistério é uma loucura rebuçada em melancolia.

— Talvez.

— Acreditas na ciência dos mahatmas?

— Eu? Em matéria de ciência duvido de tudo. Mahatmas?

— Sim. Esses solitários da Índia que conservam, como um fogo místico, que ainda há de resplandecer em nova aurora, toda a sabedoria antiga.

— Sei lá disso...

— Pois, meu amigo — ou James é um doido ou a sua vida é um paradoxo, um absurdo, a mentira encarnada na Verdade...

— Homem, falas com tanta convicção... Que diabo! Isso é sério?

— Por minha honra que o é Décio levantou-se preocupado, foi ao fundo da sala em passos, medidos e deteve-se contemplativo diante da Vênus de Milo, em mármore, resplandecente à luz. Fitou o olhar enamorado no corpo alvo e divino e disse:

— Isto também é um mistério. Toda Beleza é misteriosa. E a propósito — eram nele frequentes as transições improvisas que desnorteavam — sabes que ando a procurar com ânsia uma Afrodite, a deusa perfeita, filha da espuma branca? Calou-se de olhos muito abertos, extasiado; e continuou docemente em palavras pausadas: Meu velho, não há como a água para conservar e dar esplendor à beleza. O banho, com um sabonete fino e uma gota de essência, é um rito. A virtude do batismo está na lavagem. Não há perfume melhor que o da água: o corpo lavado rescende. Fez uma pausa e, arrepelando os cabelos, exclamou: É o que encanta naquela mulher diabólica — o aroma de asseio. Porque, não sei se já observaste — um corpo lavado tem todos os perfumes, como um jardim... E a água não cheira. O branco, não sendo cor, é a fusão das cores, assim a água, sendo inodora, é a síntese dos aromas. Aspirou com volúpia e, de mãos postas, adorativamente, louvou a Vênus marinha: — divina entre as divinas! Logo, porém, esquecendo a deusa, correu à porta, saiu ao jardim e, na sombra, sob os ramos do jasmineiro em flor, murmurou impaciente: E Brandt que não vem? Mas quase no mesmo instante exclamou arrojando os braços: Ai vem ele! Então, engrossando a voz, bradou: Depressa!

Estamos à tua espera no limiar do mistério. Aligeira esse andar penseroso, homem do arroubo. E o artista respondeu em voz risonha, tranquilamente:

— Ai vou. O estudante adiantou-se em ligeiros passos ao encontro do amigo e, travando-lhe do braço, interrogou-o:

— Que diabo queria de ti a inglesa? E, recuando de salto com severo aspeito e voz roncante: Sabe o senhor que começo a desconfiar dessas intimidades noturnas? Terá o Cavalheiro usado de sortilégio para desempedrar o coração rígido do monstro? Brandt sorriu.

— Miss é sempre a mesma .Minerva virtuosa prudente, amiga da paz e da ordem. Chamou-me para aconselhar-me, pedir-me um pouco mais de paciência com o guarda-livros.

— Homem, é verdade... Tu hoje estiveste faiscante! Os teus olhos pareciam o Olimpo de Zeus inflamado em raios. E então? Expulsa-se o ribaldo?

— Não sei... É impertinente, perverso: irritame. Só de ouvi-lo fico com os nervos arrepiados. Não fala — range, rasca. Não é raiva que sinto, é frenesi. Tenho medo de mim...

— Queres o meu conselho? Parte-lhe a cara. Brandt repoltreou-se no divã, estrincou os dedos e, encarando-me risonho, perguntou:

— É então verdade que estás senhor do segredo da vida de James?

— Sim, é verdade.

— Maravilhas, hein? Um poema para ser musicado por Debussy?

— Talvez. Indolentemente estendeu o braço, tomou o cachimbo na prateleira, encheu-o de fumo e disse com lástima:

— A mim confesso que deixa saudades o tal homem. E foi-se sem uma palavra, como uma sombra muda. Só agora miss Barkley soube da sua partida.

— Partida?

— Sim, no Avon, anteontem. Num arrancado ímpeto pus-me de pé hirto, eletrizado, sentindo um como repuxamento em todos os nervos. A voz saiu-me silvante, áspera, articulando a custo as palavras:

— Partiu! Como? Não é possível.

— Foi, pelo menos, o que ouvi ao Smith, que lá está com miss Barkley saldando as contas de James. Décio pôs-se a assobiar baixinho relanceando o olhar à sala e, sentindo a minha perturbação, naturalmente para não vexar-me, caminhou direito à janela e lá se deixou ficar brincando com o ramo do jasmineiro.

— Não! Não é possível! Insisti. É troça.

— Troça?! Repito o que ouvi, redarguiu Brandt imperturbável.

— Digo-te, afirmo-te que não é possível. James esteve comigo há coisa de um quarto de hora, lá em cima. Veio buscar o volume que me emprestou e os originais que traduzi. Falei-lhe, acompanhei-o à escada...

— Tu...?

— Sim, eu. Encaramo-nos em silêncio. Brandt, com o seu vivo olhar, penetrante e claro, fitava o meu rosto e eu, envergonhado do estudante, que se conservava discretamente à janela, sentia-me envolver em um calor estranho como se todo o meu corpo se fosse lentamente inflamando. O sangue estuava-me nas artérias aos latejos frementes: meus olhos eram brasas. Súbito, violento tremor sacudiu-me, sombra forte e instantânea escureu o aposento ou foi a minha vista que se obumbrou em vertigem e, quando se reabriu a claridade, eu estava junto ao piano, frio, arrepiando-me em crispações e os dois rapazes, a meu lado, pareciam guardar-me atentos e carinhosos.

— Que foi isso? Perguntou Décio tomando-me o pulso. A minha resposta foi em grila frenética, insistindo na afirmação:

— Não é possível! James esteve comigo há pouco, falou-me, pediu-me o livro, os originais... Não é possível! Um momento Brandt guardou o silêncio, de olhos baixos, remordendo o bigode. Por fim, como receoso, disse em palavras serenas:

— Se queres convencer-te... Smith ainda deve estar com miss Barkley. Vamos até lá. Arrojei-me resolutamente ao jardim seguido pelos dois rapazes. Ia como levado num voo, sem sentir a terra que pisava. O ar da noite era gélido e eu tinha a impressão macia de ir esgarçando finas brumas.

Por vezes, num zoar de vertigem, a cabeça reboava e parecia crescer, dilatar-se ou retraia-se com uma sensação constrita de arrocho, ameaçando estalar e tudo era vago dentro em mim — as ideias revolviam-se em torvelinho como folhas secas às rajadas de um vento de borrasca. Subi, a correr, os degraus da escada.

Miss conversava à varanda com Smith. Ao verem-nos calaram-se. Brandt, mais calmo e forçando o riso, pediu desculpa de interromper a palestra para “acabar com uma teima” e perguntou ao inglês: “se não era verdade haver James partido no Avon?”.

— Sim, senhor: partiu. Deixei-o a bordo. Como arremessado por uma força bruta arremeti para o inglês:

— Não é possível! Tão inopinado e violento desmentido fê-lo voltar-se em rodopio, encarando-me carrancudo e miss, estranhando, sem dúvida, a minha contestação desabrida, interveio confirmando as palavras do seu compatriota:

— Pois não, partiu no Avon. Não viu o nome na lista dos passageiros? Fiquei aturdido e Brandt, para justificar o meu arvoamento, explicou a Smith: “Que eu garantia que James Marian estivera, pouco antes, nos meus cômodos”.

— Oh! Fez o inglês bambaleando-se na cadeira. Ele tem excentricidades, James, oh! Mas aparecer aqui quando está a muitas milhas no mar, isso... Miss sorria, de acordo,

— E a sua bagagem? Interroguei.

— Estava em minha casa, na Tijuca. O pouco que ele aqui tinha levou-o, há dias, o meu criado. Os móveis que ele adquiriu, tenho ordem de os vender; o resto é da casa. E risonho, espalmando, de estalo, as mãos nas coxas magras: Então o senhor viu-o?

— Como o estou vendo ao senhor. E mais ainda: falei-lhe, fiz-lhe entrega de um livro que ele me emprestara e dos originais de uma novela.

— Um livro de garranchos e garatujas? Vi. Andava sempre com ele. Em Java furtaram-lhe e ele ofereceu mil libras a quem lhe restituísse. Levaram-lhe ao hotel. E Smith, como se tão curta narração o houvesse fatigado, deixou-se escorregar molemente na cadeira de vime, estirou as pernas e, com a cabeça derreada, as mãos enclavinhadas no ventre, disse num arranco: Pois é verdade... A esta hora deve andar nas alturas da Bahia. Aprumou-se e, voltando-se para miss Barkley, retomou o tio da palestra. Brandt então despediu-se:

— Obrigado! Boa noite. Desceram os dois. Eu deixei-me estar como paralisado.

— Não vens? Perguntou do jardim o estudante. Fiz um gesto vago e ainda demorei-me a olhar; por fim, vagarosamente, frouxo, desespiritualizado, num languor de quebranto, caminhei em direção à escada e, sem consciência, fui subindo.

Em cima, esfalfado, respirei a haustos largos, sentindo uma opressão asfixiante. O soalho fugia-me debaixo dos pés, as paredes oscilavam, o teto abobadava-se e a claridade, de uma lividez mortuária, longe de alumiar, era opaca dando-me a impressão de uma muralha amarela que me encerrasse — era uma luz que emparedava, clarão funéreo de sepulcro. Horrível!

Tateando cheguei instintivamente à porta do meu aposento. Ao tocar a maçaneta do trinco foi como se eu acionasse um comutador elétrico — a luz clareou e brilhou desempanada: vi! Mas os ouvidos eram como cavernas profundas que estrondavam, um fragor tempestuoso atroava-me o crânio e aos rebojos, em burburinho férvido, como arrojos de ondas rebentando em praia escabrosa, ruídos azoinavam-me.

Atirei-me ao divã apertando aflitamente, com as mãos geladas, a cabeça aturdida. Sentia-a crescer, inchar túmida, bojando como um balão e, de todos os pontos da sala, em cascalhada irônica, esfuziavam risinhos de mofa: era uma zombaria geral, o chasqueio das coisas em assuada que me enervava e retransia num grande, inenarrável medo.

Oh! O medo!... Ele vinha como uma inundação, eu sentia-o chegar, subir sensível, palpável como as grossas e escuras águas revoltas de uma enchente. Um prurido de dormência formigava-me nos pés que esfriavam regelando-se, como de pedra.

O medo chegou-me aos joelhos pesado, inteiriçante, de ferro, cingiu-me em anéis constritos, ciliciando-me o ventre, entalando-me o peito e o coração pôs-se a bater sôfrego, aflitíssimo como forçando as grades da prisão para evadir-se. A garganta travou-se-me jugulada, o trismo aperrou-me as mandíbulas e a minha respiração, aos sorvos, era a de um agonizante e rascava.

Estendi-me a fio no divã, fechei os olhos o uma visão fantasmagórica bruxuleou na treva — lileres de lume bailando, formas colubrinas estriando coriscos, um confuso e extravagante jogo malabar de fogos e negrumes, centelhas e línguas de chamas em promiscuidade com atros corpos de formas indecisas, ora em curva, ora longos; já esféricos, já em espiras.

Abri assombrado e repentinamente os olhos, apoiei-me ao encosto do divã forcejando por levantar-me, mas a minha energia ficou inutilizada em uma moleza flácida, fofa, como se eu me firmasse em pastas de algodão.

Lá fora, tão perto! A vida agitava-se — eu ouvia vozes, rumor de carros, sons de piano; por vezes, à aragem da noite, o doce rumor das palmeiras arfava como um ofego de amor. E eu sofria.

Como se andassem a apagar luzes dentro em mim, uma a uma, eu sentia a treva avançar, fria e trágica.

O meu cérebro escurecia como uma cidade ao amanhecer — longas avenidas, iam ficando em sombra, nubladas, desertas. Eu ia acabar, era o meu último dia, a minha hora extrema e finava-me desamparado, só, sem, ao menos, poder chamar alguém em meu socorro porque faltava-me a voz.

Os olhos, poderosamente atraídos, voltaram-se para a porta, a porta por onde entrara e saíra James, o homem espectro e, olhando-a fixamente, vi que toda a parede dissolvia-se sobre um fundo estrelado, que era o céu e, em baixo, estendia-se a amurada de um navio encostado à qual, imóvel, os olhos fitos no meu rosto, estava James Marian, belo e pálido envolto em suave luar misterioso.

Apesar do atordoamento eu ainda pensava, raciocinava e sentia que era vítima de uma alucinação, posto que a vista fosse perfeita, nítida como se, efetivamente, representasse o real. Mas não, era bem a minha sala, e, insistindo no olhar, pouco a pouco foi-se a visualidade esbatendo, diluindo, a parede reapareceu encobrindo o céu e a figura do mancebo e, onde ele estava, recortou-se a porta entreaberta. Só então dei por mim sentado, com o suor em bagas pela fronte. Ardia abrasado em intenso calor de febre, mas os dentes entraram a bater com estrepito.

Clarões e treva, como em tormenta cortada de relâmpagos, sucediam-se; ressoaram as vozes, os rumores confusos, voltou-me a vertigem e tudo, à volta de mim, pôs-se a giro-girar e eu tive a sensação de ir pelos ares, com a casa, desabaladamente, levado num alô de ciclone.

Estendi as mãos como em busca de amparo, ergui-me atônito, cheguei a caminhar alguns passos sem equilíbrio, fui de encontro à mesa e, ao descobrir a minha imagem no espelho, eriçaram-se-me os cabelos de pavor.

Arrojei-me em ímpeto de fuga, mas os meus movimentos eram contrariados por uma força superior. Quando eu julgava haver avançado achava-me no mesmo lugar lutando, debatendo-me inutilmente.

Chorei. As lágrimas rolavam-me dos olhos grossas e silenciosas.

As palavras formavam-se-me no cérebro, vinham-me à boca e retrocediam sem eu as poder dizer; o mesmo grito arremetia e recuava como a pelota que um frontão repulsa. Era horrível!

Eu estava possuído, era uma vítima daquele demônio sucubo que me infiltrava na alma os seus sortilégios.

Era um demônio, um verdadeiro demônio. Oh! Eu bem o sentia...! Tivera-o ali, momentos antes vira-o, falara-lhe, entregara-lhe objetos, entanto ele lá ia longe, por mares remotos, impossibilitado de comunicar-se materialmente comigo e como fizera?

Sons vibraram docemente no beato silêncio, entraram pela janela aberta em visita meiga à minha alma e, como por seu prestígio melodioso, foram morrendo, calando-se os pávidos ruídos que me atordoavam atroadoramente e eu reconheci a Marcha nupcial de Mendelssohn.

Era Brandt que tocava, era ele, o artista admirável que me defendia com a sua arte divina, exorcizando o espírito obsessor.

E um momento — suave e consolador momento! — Fiquei em repouso, ouvindo e pensando, na solidão daquele recinto assombrado, tão perto da vida e tão perto da morte.

Concentrei-me na música, como em homizio. Os sons envolveram-me, formaram em torno de mim um verdadeiro círculo mágico e, enquanto durou a melodia encantadora o medo, posto que eu o sentisse rondando-me, não se chegou a mim. Eu estava como um ralé que houvesse desapertado a grilheta e repousado os grilhões — sentia os ferros, mas não lhes sofria o peso nem a compressão vincante e dolorosa. Súbito, porém, o silêncio recaiu mais abafado e logo recomeçaram as visões, as alucinações. A dúvida terrível reentrou-me ao espírito torturando-o. Era possível que um homem que ia tão longe se manifestasse, em corpo real, aos meus sentidos, no ambiente da vida? Era possível?

Levantei-me de golpe e desatinada, atabalhoadamente rebusquei na mesa, com mão nervosa, o livro misterioso, os originais da novela e só achei páginas escrevinhadas, notas rápidas, cartas, bilhetes.

Entretanto, ainda naquela manhã eu consultara o livro e durante todo o dia, como se adivinhasse o imprevisto desfecho, trabalhara sem pausa na tradução.

Detive-me cansado, desalentado. O meu pensamento baralhava-se, ideias confundiam-se, coisas do passado, da infância afluiam-me de mistura com incidentes do dia; reminiscências flutuavam surgindo do fundo da memória no revólver violento do meu espírito turbado e os olhos, largamente abertos e desvairados, não viam o real, senão bizarras quimeras: arabescos zebrando o espaço, discos, estrias, lumes, encandeiando-se em deslumbramentos ou cegando-se em trevas.

O calor aquecia-me, golfos de chamas envolviam-me e logo, em transição repentina, o frio gelava-me, tolhia-me, inteiriçava-me rigidamente como se me encerrassem em uma prisão de gelo. Tenho uma vaga lembrança de luta, vultos agitando-se em torno de mim...

Quando reentrei na vida o que logo me impressionou foi o branco aposento em que me achei, quase tão nu como a cela de um monge. Um homem seguia-me atentamente os passos, todo de branco, de avental e gorro. Solicito, acudia ligeiro ao meu mais leve aceno, sentava-se junto ao meu leito de ferro e, à noite, eu sentia-o perto, vigilante. Às vezes, abrindo os olhos, na penumbra triste, via-o alvejando imóvel, a fitar-me, como um duende.

Não raro, no silêncio noturno, uma voz gania lancinante; gritos, guaiados atroavam. Eu estremecia apavorado, sentava-me no leito e logo o homem aparecia tranquilizando-me, entabolava conversa, ou ficava a fumar, silencioso, olhando-me.

Uma noite, tarde, levantou-se em toda a casa um alarido agoniado. Saltei da cama, pus-me à escuta: “Onde estou? Que hospital é este?” perguntei ao vigia que acorrera. Ele trejeitou atarantado sem achar resposta pronta; disse apenas:

— O senhor já está bom. O diretor vai dar-lhe alta. O alarido cessou e o silêncio estendeu-se mais abafado e mais lugubre.

Na manhã seguinte, cedo, chegando à janela gradeada do meu quarto, vi ao longe a cidade luminosa, o mar azul e, em baixo, no fundo de horta e parque, homens de lavoura regando talhões e enfermos passeiando vagarosamente, na doçura do ar fresco, pela alfombra dos caminhos palhetados de sol. Mas, de instante a instante, lá vinham gritos como de ergástulos, um vozeio angustioso e soturno de emparedados.

Era um hospital de loucos, de loucos! E porque me achava eu ali, observado por um médico, vigiado por um enfermeiro, seguido a toda a parte, sem liberdade de um movimento, logo cercado, como uma fera perigosa, se me desviava do passeio habitual tomando o caminho em aclive, por entre sebes, que levava ao corpo monstruoso da pedreira que, de quando em quando, tonitruosamente, estrondava abalando a casa em oscilações de terramoto? Por quê?

Uma manhã Décio apareceu-me. Não o alegre e facundo companheiro, mas um rapaz comedido e discreto, de uma meiguice serena, falando-me com palavras ponderadas, sem o arranque estroina do seu gênio jocundo.

Parecia sondar minha alma antes de entrar por ela com a sua alegria ruidosa e esfuziante, receando, talvez, despertar o que dormia ou tocar em fragilidades.

Foi ele o único amigo que vi naquele aposento triste, ele só, nenhum outro e foi com ele e com o meu correspondente que, em uma radiosa manhã de domingo, ao repique festival dos sinos, deixei a minha cela presidiária e aquele homem de branco que, às vezes, parecia sair das paredes caleadas, como um espectro, alvacento, caminhando para mim sem rumor de passos, o olhar duro e fito, as mãos estendidas, trágico. O correspondente, mostrando-me uma carta de minha mãe, na qual a infeliz pedia que me fizessem seguir para a fazenda acompanhado de pessoa de confiança, pôs-se ao meu dispor declarando que podíamos, se eu quisesse, partir no noturno. Concordei. Ao tomar o carro, que nos esperava à porta, lançando um derradeiro olhar ao portão formidável da casa em que eu vivera, inconsciente do eclipse da minha alma, perguntei ao Décio:

— Mas então eu estive louco...?

— Louco?! Qual loucura, homem! Olhou-me risonho e, como o carro partisse, agarrou-me com força nos braços e disse-me com a sua alegria vívida e todo o calor da sua mocidade feliz: Neurastenia, meu velho. A nossa neurastenia! Queres saber? Nós todos, todos sem exceção, se fôssemos surpreendidos em certos momentos, nos tais “estados d’alma” havíamos de passar algumas horas em casas como esta. Não penses que isto é só para os loucos, é também um abrigo para os que são apanhados pela tormenta passageira dos grandes sonhos.

— E quem não tem a sua telhazinha! Sentenciou o correspondente.

— E a minha rajada de loucura foi... James Marian?

— Sim. O inglês formoso...

— Foi, então, um sonho?

— A existência do homem, não, está visto... O caso do livro, o aparecimento naquela tarde... Lembras-te?

— Sim, lembro-me: quando ele foi reclamar o livro do seu destino e os originais do que ele inculcava como a história da própria vida. Lembro-me. Disseram-me que tal visita era impossível porque ele achava-se...

— Muitas léguas ao mar.

— Pois eu garanto-te, juro... O correspondente pigarreou trejeitando a Décio. Tranquilizei-o assegurando-lhe o meu perfeito juízo e continuei para o estudante: Se foi por isso que me encerraram naquela casa, meu caro Décio, digo-te que os alienistas... Mas o estudante interrompeu-me estrepitosamente:

— Deixemos o passado. Foi uma crise, um mergulho no azul. Ah! Meu amigo, o azul é para ser contemplado de longe, assim — e, inclinando-se, atirou o braço, num gesto largo mostrando o céu límpido, luminoso, resplandecendo ao sol.

— Dia para um pic-nic, lembrou o correspondente.

— Com mulheres! Acrescentou o estudante. E o carro rodava.

Eu reentrava na vida como um convalescente, que saísse, pela primeira vez, ao sol, sentindo e gozando todo o encanto da natureza, participando da felicidade geral, vendo o sorriso e a tristeza, passando entre a fortuna e miséria, os dois renques da alaméda da Vida. Mas a dúvida, meu Deus! A dúvida, que há de ser a minha eterna companheira, a dúvida torturante, ou melhor: a Certeza, que eu nunca provarei aos que me alijaram entre loucos, da verdade do incidente da aquela tarde, a certeza horrível da visita de James Marian, da sua presença no meu aposento, do seu pedido, da entrega dos livros e dos originais, da sua partida, do rumor dos seus passos na escada... Tudo, tudo! Essa Certeza, meu Deus!... Loucura?

Não, eu estou perfeitamente calmo, rememoro todos os fatos sem omissão de um pormenor, lembro-me de episódios insignificantes... Pois se eu tudo refiro e se é tudo verdade porque justamente há de ser Loucura aquilo que mais fundamente me impressionou e de que eu me lembro com mais exatidão?

E agora, quantos me virem dirão que sou louco. Aqueles dias de encerro inutilizaram-me para o todo sempre... E eu estou certo de que a Verdade está comigo: Eu vi!

Mas quem dará crédito à minha palavra? Quem?

Talvez os séculos confirmem o que digo. Os séculos!...

Quando fulgurar o dia da Verdade quem se lembrará de um triste que passou?

Já agora tenho o meu estigma, como um galé: estive em uma casa de doidos.

Tantos inocentes têm sido justiçados... Quantos, como eu, hão de ter sofrido pela verdade? Quantos!

FIM