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Mais estimulava a sua curiosidade o cuidado com que em criança a tinham arredado da casa em ruínas, já inspirando-lhe um terror supersticioso da louca, já recomendando-lhe que nunca se dirigisse para aquela banda.
 
Também quando a menina queria saber a história de Zana, e a razão por que a negra doida ali vivia abandonada numa casa em ruínas, que devia ter pertencido a pessoa abastada, ninguém lhe respondia; mas procuravam uma evasiva para não falar sobre tal assunto.
 
Tudo isto, longe de arredar a menina daquele sítio, bem ao contrário desenvolvia nela uma dessas tentações de criança que não conhecem obstáculos. A pouco e pouco, de susto em susto, animou-se ao cabo de muitas semanas a aproximar-se das ruínas, e observar Zana em distância, até que afinal se convenceu que era uma criatura inofensiva a mísera doida.
 
Já tinha então Berta seus quinze anos, e com a afoiteza da idade também ganhara mais largueza e desenvoltura dade ação para sair de casa e demorar-se fora sem inspirar cuidados.
 
Berta passava por enjeitada e ela o sabia, pois nunca lho ocultavam. Fora a mãe de Miguel, nhá Tudinha, quem a recolhera e criara com o maior desvelo. Na casa, porém, onde se achava emprestada e por comiseração, era ela a verdadeira senhora, pois que os donos se faziam cativos seus, e porfiavam em adivinhar-lhe as vontades para satisfazê-las.
 
Sem dúvida que nhá Tudinha queria mais bem ao filho de suas entranhas; mas não tinha para ele os extremos, as debilidades e carinhos, que fazia por essa filha de criação, a enjeitadinha. De seu lado, Miguel, embora se estremecesse pela mãe, decerto que pensava mais em Berta, sua colaça.
 
Sentindo a sedução que exercia em torno de si, não abusava todavia a menina, transformando-sea em uma pequena tirania doméstica, à imitação de certas crianças dengosas. A não ser para conservar a liberdade, a que a habituara uma educação campestre, no mais esquivava-se quanto podia ao império que lhe deferiam os súditos de sua graça e gentileza.
 
Assim explica-se como podia Berta passar horas e horas nas ruínas, observando Zana, e esforçando por desvendar o mistério dessa louca solitária, que ali vivia ao desamparo, completamente esquecida e nutrindo-se de terra e de raízes cruas, antes que a menina se incumbisse da tarefa de prover a sua subsistência.
 
No dia em que estamos não acabou Zana a pantomima de sua visão diária.
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Quando se aproximava pé ante pé da janela da alcova, em atitude de quem espreita, os olhos da negra esbarraram com os de um homem. Era o Barroso que assomara de dentro do mato, pouco antes, e dirigiu-se passo a passo para as ruínas.
 
Estremeceu a doida, e tão violenta foi a propulsão, que a fez saltar sobre si. Com os olhos esbugalhados, a boca escancaradaescâncara e os beiços arregaçados, ficou banza um instante; mas logo, espancada pelo terror, precipitou-se para fora tão desastradamente que errou a porta e bateu em cheio na taipa.
 
De novo arremeteu, e, rechaçada pelo choque, andou aos embates contra a parede, até que acertando com o vão da porta fugiu estremunhada dedo pavor.
 
Advertida pelo primeiro sintoma de estupefação da louca, Berta seguindo-lhe a direção do olhar, avistara também o Barroso, que nesse momento parado em face da janela, a alguns passos apenas, a encarava com uma expressão de profundo rancor.
 
Teve medo a menina, e recuou instintivamente. Estava acostumada a correr só os campos vizinhos, onde freqüentementefrequentemente encontrava caipiras e toda a casta de gente malfazeja, de quem aliás nunca se receara. Esse homem, porém, inspirava-lhe uma indefinível repugnância e terror.
 
Esteve o Barroso a considerá-la alguns instantes, com ar de quem se resolve. Por fim, mascando um riso mau, que revia-lhe dos lábios, afastou-se murmurando:
 
— Eu hei de saber! Ah! se fosse!...
 
Com a partida do desconhecido, recuperou Berta a calma de espírito, e volvia os olhos pela sala procurando Zana, que vira fugir, quando lhe feriram o ouvido gritos esganidos e sufocados, que vinham do terreiro.
 
Precipitando-se da alcova, a preta viera até o terreiro da cozinha, onde, faltando-lhe as forças, abateu-se como um fardo a que retiram o apoio.
 
Imediatamente de dentro do balseiro saltou com o arremesso de um gato do mato uma estranha criatura cuja roupa de grosso brim escorriaescuro, mosqueado de nódoas, ainda mais concorria para a ilusão. Acocorando-se em cima do corpo inerte da louca, apertava-lhe ao pescoço as mãos crispadas, procurando esganá-la, enquanto com os pés e os joelhos malhava-lhe o ventre.
 
Foi esta cena cruel que Berta viu de relance ao chegar à porta da cozinha, chamada pelos gritos. Arrojando-se do mesmo ímpeto ao terreiro, seus lábios lançaram com um tom de severa exprobração o nome do perverso, que espancava tão barbaramente uma criatura inofensiva.
 
— Brás!
 
Não se animou o rapaz a erguer a cabeça, tão acabrunhado ficara, e tão corrido de sua barbaridade. Naquele instante não haviahaviam forças para obrigá-lo a fitar o semblante de Berta, e afrontar a cólera de seu olhar.
 
Agachado, como se quisera sumir-se pela terra a dentroadentro, fugira ele antes que a menina chegasse para tirar-lhe a preta das garras; e foi esconder-se por detrás de um marachão da taipa, que esboroaraesbroara da parede do outão.
 
Cuidou Berta de levantar a cabeça da doida, na esperança de reanimá-la, o que só conseguiu depois de muito tempo. Quando a preta se podepôde erguer, ajudou-a ela a ganhar o cubículo, onde à noite se agasalhava a infeliz. Havia tempo quelhe trouxera a menina uma esteira, sobre a qual a acomodou, prometendo a si mesma voltar logo mais com aguardente e pano para deitar sobre a contusão que tinham deixado as mãos de Brás.
 
Este continuava agachado por trás do medão de taipa; espiando à sorrelfa os movimentos de Berta, quedava-se com a humildade do rafeiro quando espera que a mão do senhor o fustigue pela falta cometida. Ao rumor dos passos da menina, que vinha de seu lado, encolheu-se ainda mais; parecia concentrar-se todo para o transe difícil.
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Trazia Berta no olhar uma profunda repulsão, e o lábio frisado por um assomo de cólera. A perversidade do rapaz contra a mísera doida a revoltara dolorosamente a ponto de esquecer que também esse ato cruel era de um espírito enfermo, e quem sabe se mais digno de lástima.
 
Parou ela em face do culpado, perplexa, hesitando por venturaporventura no castigo que devia infligir-lhe. Por fim deixou cair dos lábios um sorriso de desprezo e afastou-se rapidamente.
 
Esperava o rapaz uma severa repreensão. Este desprezo mudo e repentino abandono, o trespassaram de dor. Quis levantar-se para correr após a menina, e as pernas lhe fugiram. Voltando-se ao rugido que ele soltara, o viu Berta de joelhos, estorcendo as mãos súplices, e esforçando arrancar das fauces uma palavra que o sufocava.
 
— Não! disse a menina.
 
Esta palavra fulminou Brás, que estrebuchou no chão, estorcendo-se em uma convulsão medonha, que dobrou-lhe o corpo hirto, como se fosse uma verga de chumbo. Espumava-lhe a boca, e os dentes rangiam com horríveis contrações, que deformavam-lhe o semblante.