O Crime do Padre Amaro/VIII: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 08]]
 
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O padre Amaro voltara para casa aterrado.
 
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Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
 
Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar à mãe, ao escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreensão - dizer-lhe com pompa: - "São esses desregramentos que desonram o sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" - Poderiam desterrá-lo outra vez para alguma freguesia
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da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?
 
E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito - a sua paixão, crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!
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— É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?
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— Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?
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E suspirou; desejava que o cônego o interrogasse, facilitasse as confidências.
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— Então só hoje é que pensa nisso, Amaro?!
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— Você compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cônego. A casa da S. Joaneira...
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Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abade, o catarro da pobre D. Maria da Assunção, a doença de fígado que ia minando o engraçado cônego Sanches - Amaro saiu, quase contente agora de se não "ter desabotoado com o padre-mestre".
 
O cônego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquela resolução de Amaro de deixar a casa da S. Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera de hóspede para a Rua da Misericórdia, combinara com a S. Joaneira diminuir-lhe a mesada que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se logo: a S. Joaneira, se não tinha hóspede, dormia só no primeiro andar: o cônego podia então saborear livremente os carinhos da sua velhota;- e Amélia na sua alcova, em cima, era alheia a este "conchegozinho". Quando veio o padre Amaro, a S. Joaneira cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama de ferro ao pé da filha: e o cônego então reconheceu, como ele disse, desconsolado - "que aquele arranjo tinha estragado tudo". Para gozar as doçuras da sesta com a sua S. Joaneira, era necessário que Amélia jantasse fora, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações importunas: e ele, cônego do cabido, na egoísta velhice, quando precisava ter recato com a sua saúde, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e higiênicos as dificuldades dum colegial que ama a senhora professora. Ora se Amaro saísse, a S. Joaneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas comodidades, as tranquilas sestas. É verdade que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!
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— Que diabo! ao menos está um homem à sua vontade, resumiu ele.
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Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:
 
— Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr.
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padre Natário: grande jantar! Conte lá, conte lá!
 
Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão teológica; depois falaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, - o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial
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Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
 
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobília, como disse o cônego, "podia passar a veteranos"; algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros; e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados, as paredes riscadas
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de fósforos, e até sobre um poial da janela duas peúgas quase negras.
 
Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manhã o cônego ajustou-lhe uma criada, a Sra. Maria Vicência, pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o cônego Dias) era a própria irmã da famosa Dionísia!
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— Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por quê: é que este arranjo do quarto em cima, etc., está-me a arrasar a saúde.
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Deu outras razões de prudência higiênica, e acrescentou passando-lhe com bondade os dedos pelo pescoço:
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— Olhe, senhor pároco, disse a S. Joaneira, não se ofenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho... e levou o lenço aos olhos.
 
— Tolices, exclamou o cônego. Pois então
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ele não pode vir aqui em amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?... O homem não vai para o Brasil, senhora!
 
— Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tê-lo de portas adentro!
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É forçoso deixar-te e partir!
 
Então, àquela chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir
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encostar o rosto à vidraça, esconder as duas lágrimas que irreprimivelmente lhe saltavam das pálpebras. Os dedos de Amélia embrulhavam-se também no teclado; até a mesma S. Joaneira disse:
 
— Oh! filha, toca outra coisa, credo!
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Quando Amaro, nessa noite, se viu só naquela casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente
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e um tédio tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar ali a morrer!
 
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório, a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a mofo; e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existência! E seria sempre assim!...
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Desesperou-se então contra Amélia: acusou-a, com o punho fechado, das comodidades que perdera, da falta de mobília, da despesa que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo ao seu quarto, dizer-lhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu não estou zangada! - Porque enfim quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos adocicados! Mas não, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do Beijo!
 
Jurou então não voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensava - no que havia de fazer para humilhar Amélia. Q quê? Desprezá-la como uma cadela! Ganhar influência na sociedade devota de Leiria, ser muito do senhor chantre: afastar da Rua da Misericórdia o cônego e as Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altar-mor, à missa do domingo; dar a entender que a mãe era uma prostituta... Enterrá-la!
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cobri-la de lama! E na Sé, ao sair da missa, regalar-se de a ver passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, enquanto ele, à porta, de propósito, conversaria com a mulher do governador civil e seria galante com a baronesa de Via-Clara!... Depois pregaria um grande sermão, na quaresma, e ela ouviria dizer, na arcada, nas lojas: "Grande homem, o padre Amaro!". Tornar-se-ia ambicioso, intrigaria, e, protegido pela Sra. condessa de Ribamar, subiria nas dignidades eclesiásticas: o que pensaria ela quando o visse um dia bispo de Leiria, pálido e interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores, ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os roucos cantos do órgão? E ela o que seria então? Uma magra criatura murcha, embrulhada num xale barato! E o Sr. João Eduardo, o escolhido de agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado sobre o seu papel almaço, imperceptível na terra, adulando alto e invejando baixo! E ele, bispo, na vasta escadaria hierárquica que sobe até ao Céu, estaria já muito para cima dos homens, na zona de luz que faz a face de Deus-Padre! - E seria par do reino, e os padres da sua diocese tremeriam de o ver franzir a testa!
 
Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
 
Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam - ela roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé, o bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada
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subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava daquela maldita! E era impossível obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua da Misericórdia, pedi-la à mãe, vir à Sé dizer-lhe: "Senhor pároco, case-me com esta mulher", e beijar, sob a proteção da Igreja e do Estado, aqueles braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa de Alegros!...
 
Abominava então todo o mundo secular - por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na idéia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga - mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?... - E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéia que esse domínio só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé - mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava,
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no seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas do Céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denúncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé, fazer estremecer, à idéia de castigos torturantes, aqueles que aspirassem a realizar felicidades - que lhe eram a ele interditas; e pensando em João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! - Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada, ambições grandiosas de tirania católica: - porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico ou nas suas ambições de dominação universal: todo o subdiácono se julga uma hora capaz de ser santo ou de ser papa: não há seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado com ternura à caverna no deserto em que S. Jerônimo, olhando o céu estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça, como um abundante rio de leite: e o abade pançudo que à tardinha, à varanda, palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos dum Torquemada.