O Crime do Padre Amaro/XX: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:O Crime do Padre Amaro|Capítulo 20]]
 
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Que lágrimas quando Amélia soube a notícia! A sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a caminho para o Brasil!
 
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— Tudo se há-de arranjar, é esperar em Deus!
 
Era bom o momento para contar com Deus, quando Ele, indignado, a acabrunhava de misérias! E aquela indecisão, num homem e num padre, que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperava-a; a sua ternura por ele
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sumia-se como a água que a areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o desejo persistente já transluzia o ódio.
 
Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro não se queixava; aquelas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de soluços; e aquilo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar também de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
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Também Amélia pensava que fora "uma asneira". E não ter nunca imaginado que aquilo lhe poderia suceder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta, certa que escaparia, ela, - e agora que sentia nas entranhas o filho, eram as lágrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lúgubre: de dia tinha de se conter diante da mãe, aplicar-se à sua costura, conversar, afetar felicidade... Era de noite que a imaginação desencadeada a torturava com uma incessante fantasmagoria de castigos, deste e do outro mundo, misérias, abandonos, desprezo da gente honrada e chamas do Purgatório...
 
Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão àquela ansiedade que se ia tomando um hábito mórbido do seu espírito.
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Uma noite a criada do cônego apareceu, esfalfada de correr, a dizer que a Sra. D. Josefa estava à morte.
 
Na véspera a excelente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado, mas insistira em ir à Senhora da Encarnação rezar a sua coroa; voltou transida, com uma dor maior e uma ponta de febre; e nessa tarde, quando o doutor Gouveia foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda. '
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A S. Joaneira correu logo a instalar-se lá como enfermeira. E então, durante semanas, na tranquila casa do cônego, foi um alvoroço de dedicações aflitas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas a fazer promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em permanência, saindo e entrando no quarto da doente com passos de fantasmas, acendendo aqui e além lamparinas às imagens, torturando o doutor Gouveia com perguntas piegas. À noite na sala, com o candeeiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lúgubres; e ao chá, entre cada mastigadela de torrada, havia suspiros, lágrimas furtivamente limpadas...
 
O cônego lá estava a um canto, aniquilado, sucumbido com aquela brusca aparição da doença e do seu cenário melancólico - as garrafadas de botica enchendo as mesas, as entradas solenes do médico, as faces compungidas que vêm saber se há melhoras, o hálito febril espalhado em toda a casa, o timbre funerário que toma o relógio de parede no abafamento de todo o ruído, as toalhas sujas que ficam dias no lugar em que caíram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva
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eterna... De resto, um pesar sincero prostrava-o; havia cinquenta anos que vivia com a mana e era animado por ela; o longo hábito tomara-lha cara; e as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa faziam como uma parte mesma do seu ser... Além disso, quem sabe se a morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o não levaria também!...
 
Para Amélia aquele tempo foi um alívio; ao menos ninguém pensava, ninguém reparava nela; nem a sua face triste e os vestígios de lágrimas pareceriam estranhos, naquele perigo em que estava a madrinha. Demais, os serviços de enfermeira ocupavam-na: como era a mais forte e a mais nova, agora que a S. Joaneira estava estafada de vigílias, era ela que passava as longas noites à beira de D. Josefa: e não havia então desvelos que não tivesse, para abrandar Nossa Senhora e o Céu com aquela caridade pela doente, para merecer igual piedade quando o seu dia viesse de estar também prostrada num leito... Vinha-lhe agora, sob a impressão fúnebre que se exalava da casa, o pressentimento repetido que morreria de parto: às vezes só, embrulhada no seu xale aos pés da doente, ouvindo-lhe o gemer monótono, enternecia-se sobre a sua própria morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos de lágrimas, numa saudade vaga de si mesma, da sua mocidade e dos seus amores... lá então ajoelhar-se junto da cômoda, onde uma lamparina bruxuleava diante dum Cristo projetando sobre o papel claro da parede a sua sombra disforme que se quebrava no teto; e ali ficava rezando, pedindo a Nossa Senhora que não lhe
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recusasse o Paraíso... Mas a velha mexia-se com um ai doloroso; ia então aconchegar-lhe a roupa, falar-lhe baixo. Vinha depois à sala ver no relógio se era o momento do remédio; e estremecia às vezes, sentindo vir do quarto próximo um pio de flautim ou um som rouco de trombone; era o cônego a ressonar.
 
Enfim, uma manhã, o doutor Gouveia declarou D. Josefa livre de perigo. Foi um vivo regozijo para as senhoras - certa, cada uma, que aquilo era devido à intervenção particular do seu santo devoto. E dai a duas semanas houve uma festa na casa, quando D. Josefa, pela primeira vez, amparada nos braços de todas as amigas, deu dois passos trêmulos no quarto. Pobre D. Josefa, o que dela fizera a doença! Aquela vozinha irritada em que as palavras eram despedidas como setas envenenadas, assemelhava-se agora apenas a um som expirante, quando, num esforço ansioso da vontade, pedia a escarradeira ou o xarope. Aquele olhar sempre alerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo das órbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E o seu corpo, tão teso outrora, duma secura de ramo de sarmento, agora ao cair no fundo da poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia um trapo também.
 
Mas enfim o doutor Gouveia, apesar de anunciar uma convalescença longa e delicada, dissera rindo ao cônego, diante das amigas (depois de ter visto D. Josefa manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar á janela) que com muita cautela, tônicos, e as orações de todas aquelas boas senhoras - a mana estava ainda para amores...
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— Ai doutor, exclamou D. Maria, as nossas orações não lhe hão-de faltar...
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— Veja o senhor, - dizia ele a Amaro, uma noite no escritório, - veja o que eu tenho sofrido... Durante a doença, que desarranjo, que desordem na casa! Chá fora de horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive, que me emagreceram... E agora, quando eu pensava poder ir refazer- me para a praia, não senhor, vai para a Ricoça, dispensa os teus banhos... Isto é o que eu chamo sofrer! E no fim de tudo não fui eu que estive doente. Mas sou eu que as aguento... Perder dois anos a fio os meus banhos!
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Amaro, então, deu de repente uma punhada na mesa, e exclamou:
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— Homem, famosa idéia!
 
— É que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joaneira, longe, não sabe o que se passa. Sua mana goza os ares... A Amélia tem um sítio escondido para a coisa... À Ricoça ninguém a vai ver... A D. Maria também vai pra Vieira. As Gansosos, idem. A rapariga deve ter o bom sucesso ai pelos princípios de
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Novembro... Da Vieira, e isso fica por sua conta, não volta ninguém dos nossos até princípios de Dezembro... E quando nos reunirmos de novo está a rapariga limpa e fresca.
 
— Pois senhores, por ser a primeira idéia que você tem nestes dois últimos anos, é uma grande idéia!
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— Pois é, mãos à obra! É mãos à obra!
 
— E é necessário não perder tempo, porque o
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escândalo estala. Olhe que esta manhã, lá em casa, a besta do Libaninho pôs-se a gracejar com a rapariga, a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
 
— Oh, que patife! rugiu o pároco.
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— E o Artur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrúpulo.
 
O cônego largou a rir, com gosto. O pobre Artur, sem dentes, cheio de filhos, com os seus
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olhos de carneiro triste, acusado de perder virgens!... Não, essa era boa!
 
— Não pega, pároco amigo, não pega! Outra, outra...
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Já se sabe, não se dizia explicitamente à mana, - mas dava-se-lhe a entender que fora o Femandes.
 
E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do escritório. Esteve lá meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o cônego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangeres das solas de Amaro, ora tosse cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo escritório, da estante para a janela, com as mãos atrás das costas e a caixa do rapé nos dedos, ia considerando quantos incômodos, quantas despesas lhe traria ainda aquele "divertimento do senhor pároco"! Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis meses... Depois o médico, a parteira que era ele naturalmente que havia de pagar... Depois algum enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao pequeno?... Na cidade, a Roda fora suprimida; em Ourém, como os recursos da Misericórdia eram escassos e a afluência dos enjeitados escandalosa, tinham posto um homem ao pé da sineta da Roda, para interrogar e
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pôr embaraços; havia indagações de paternidade, restituições de crianças; e a autoridade, finória, combatia o excesso dos enjeitamentos com o terror dos vexames...
 
Enfim, o pobre padre-mestre via diante de si todo um eriçamento de dificuldades para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a digestão... - Mas o excelente cônego, no fundo, não se indignava; sempre tivera uma afeição de velho mestre pelo pároco; para a Amélia sempre o inclinara um fraco meio paternal, meio lúbrico; e mesmo já sentia pelo "pequeno" uma vaga condescendência de avô.
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— Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de falar à S. Joaneira, e de a levar para a Vieira quanto antes...
 
— Outra coisa, amigo, interrompeu o cônego. Tem
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você pensado no destino que se há-de dar ao fruto?
 
O pároco coçou desconsoladamente a cabeça:
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A S. Joaneira teve um silenciozinho desconsolado:
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— Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem deixar a pequena... Se eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.
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Era isso o que fazia choramigar Amélia: perder a estação da Vieira, o divertimento dos banhos!... Ir enterrar-se todo um Verão naquele sinistro casarão da Ricoça! A única vez que lá fora, já ao fim da tarde, ficara estarrecida de medo. Tudo tão escuro, dum eco tão côncavo... Tinha a certeza que ia lá morrer, naquele degredo.
 
— Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de me ter inspirado esta idéia de salvação. Demais tens a D. Josefa, tens a Gertrudes, o pomar
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para passear... E eu vou-te lá ver todos os dias. Até hás-de gostar, verás.
 
— Enfim que lhe hei-de eu fazer? É aguentar. E com duas grossas lágrimas nas pálpebras, amaldiçoava intimamente aquela paixão que só amarguras lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forçava a ela a ir fechar-se na solidão da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os cães uivar na quinta... - E a mamã, que diria a mamã?
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Daí a dias, depois duma cena de prantos, Amélia partiu com D. Josefa para a Ricoça num char-à-banc.
 
Tinham arranjado, com almofadas, um recanto cômodo para a convalescente. O cônego acompanhava-a, furioso com aquele incômodo. E a Gertrudes ia em cima na almofada, à sombra da montanha que faziam sobre o tope do carro os baús
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de couro, os cestos, as latas, as trouxas, os sacos de chita, o açafate onde miava o gato, e um fardo amarrado com cordas contendo os painéis dos santos mais queridos de D. Josefa.
 
Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joaneira para a Vieira, de noite, por causa da calma. A Rua da Misericórdia estava atravancada com o carro de bois, que conduzia as louças, os enxergões, o trem de cozinha; e no mesmo char-à-banc que fora à Cortegassa, ia agora a S. Joaneira e a Ruça, que levava também no regaço um açafate com o gato.
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— Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê notícias! Recados ao padre-mestre. Adeus, minha senhora! adeus, Ruça...
 
O char-à-banc partiu. E pelo mesmo caminho por onde ele ia rolando, Amaro foi andando devagar até à estrada da Figueira. Eram então nove horas; nascera já o luar duma noite cálida e serena
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de Agosto. Uma tênue névoa luminosa suavizava a paisagem calada. Aqui e além uma fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do arvoredo. Ao pé da Ponte, parou ao olhar melancolicamente o rio que corria sobre a areia com uma sussurração monótona; nos lugares em que as árvores se debruçavam, havia escuridões cerradas; e adiante uma claridade tremia sobre a água, como um tecido de filigrana faiscante. Ali esteve, naquele silêncio que o calmava, fumando cigarros e atirando as pontas para o rio, embebido numa tristeza vaga. Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a cidade, passou pela Rua da Misericórdia num enternecimento de recordações: a casa, com as janelas fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos das janelas... Quantas vezes Amélia e ele se tinham encostado àquela varanda! Havia então um craveiro fresco, e conversando, ela cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha acabado agora! - E na Misericórdia, ao lado, o piar das corujas no silêncio dava-lhe uma sensação de ruína, de solidão e de fim eterno.
 
Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrasados de água.
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A criada veio logo à escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, numa aflição, viera procurá-lo duas vezes, haviam de ser nove horas. A Totó estava a morrer, e só queria receber os sacramentos da mão do senhor pároco.
 
Amaro, apesar da sua repugnância supersticiosa em voltar assim nessa noite, para um fim tão triste, no meio das recordações felizes da sua
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paixão, foi, para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquela morte, coincidindo com a partida de Amélia, e como completando a súbita dispersão de quanto até aí o interessara ou estivera misturado à sua vida.
 
A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escuridão da entrada topou com duas mulheres que saíam suspirando. Foi logo direito à alcova da paralítica: duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam sobre uma mesa: um lençol branco cobria o corpo da Totó; e o padre Silvério, que fora decerto chamado por estar de semana, lia o Breviário, com o lenço nos joelhos, os seus grandes óculos na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
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Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lençol, mas deixou-o logo recair sobre a face da morta. Depois subia acima, ao quarto onde o sineiro, estirado sobre a cama, voltado para a parede soluçava desesperadamente; estava com ele outra mulher, que se conservava a um canto, muda, e imóvel, com os olhos no chão, no vago aborrecimento que lhe dava aquele pesado dever de vizinha. Amaro tocou no ombro do sineiro, falou-lhe:
 
— É necessário resignação, tio Esguelhas...
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São decretos do Senhor... Para ela é até uma felicidade.
 
O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o pároco, por entre o véu das lágrimas que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mão, quis beijar-lha. Amaro recuou: