A Viúva Simões/III: diferenças entre revisões

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}}[[Categoria:A Viúva Simões|Capítulo 03]]
 
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Luciano e o amigo desceram pela rua do Catete conversando e devagar, num exercício de boa digestão.
 
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Os bondes passavam cheios. Em uma ou outra casa iam-se moças à janela, quase todas bonitas, bem vestidas.
 
Ia caindo docemente a noite. Um propheta corria de lampião a lampião, com a blusa de zuarte flutuante,
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o varal erguido e o chapéu enterrado até as orelhas.
 
A rua tinha trechos menos tumultuosos de feição aristocrática, onde as casas não se abriam tão burguesmente à poeira e à curiosidade de fora; mas logo em outro quarteirão, tudo mudava, aspecto de pessoas e de coisas, como se se tivesse dado um salto para outro bairro. Então, em vez de prédios grandes, de cortinas cerradas e plantas ornamentais nas entradas, eram as casas apertadas, desiguais; e, de vez em quando, ou um frege tresandando a azeite e sardinhas, ou uma quitanda apertada, cheirando a fruta apodrecida e a hortaliça murcha. Nesse ponto andavam crianças aos magotes pela calçada, de mãos dadas, embaraçando os transeuntes. À porta de um barbeiro ou de outra qualquer casa de negócio, sufocada por prédios maiores, conversavam algumas pessoas com muitos gestos e poucas risadas.
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O Rosas conhecia meio mundo, morava por ali havia muito, por isso cumprimentava quase toda a gente; quando o fazia a alguma senhora chic, Luciano não tardava em perguntar-lhe:
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- Quem é?
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- É uma das mais bonitas, aí...
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- Apresenta-me?
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- Devia ter sido linda, a Simões.
 
- Esplêndida! e depois viva, alegre!... parece
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muito mudada. Era de meter medo!... Hoje não é a mesma... ainda assim... não lhe digo nada...
 
- É chic. Agora, fora de caçoada, não se ponha a brincar com o fogo inutilmente! A Simões é seria; você deve evitar a convivência, visto não querer casar. Conheço bem a nossa sociedade... isto está feio...
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- Ora!
 
A noite tinha caído completamente. Durante a travessia do cais da Glória, sentiram frio. O Rosas
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falava sempre, Luciano mal o ouvia, com o pensamento afastado.
 
Atravessavam agora a rua da Lapa.
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Moças cheias de fitinhas e de papelotes recostavam-se ao peitoral das janelas baixas; na calçada os moleques assobiavam o Chegou, chegou, chegou, e os baleiros roçavam pelas crianças, oferecendo-lhes balas. Ali não podiam conversar, a calçada era estreita, muito atravancada; Luciano caminhava atrás do Rosas, reparando para os tipos, admirado de ver tão poucas pretas. Uma ou outra mulata cruzava-se de vez em quando no caminho, carregada de essências e de laços, muito espartilhada, exagerando a moda do vestido e do penteado. Onde se teriam metido os pretos do ganho, os minas, de cara retalhada, rodilha na cabeça, cesto na mão? E o fervilhamento de crioulas na rua, de vestido de riscado e manga curta, mais a quantidade de formosas baianas, muito limpas, como seu belo traje flamante, a camisa de renda, o turbante airoso, o pescoço e os braços cheios de contas de vidro e de corais, a manta riscada, a tiracolo, a sala muito franzida rebolando aos movimentos dos sólidos quadris carnudos, e as chinelinhas tac-que-tac nas calçadas?
 
E os chins de trança longa, roupa de algodão grosso, vara no ombro gigos pendentes, percorrendo as ruas num passo apressado e ferindo o ar com a sua voz achatada - camalon - péce!?
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E os crioulos que vendiam calçado em caixas envidraçadas, apregoando, numa melopéia grave e prolongada - Sapato! E as gôndolas, diligências desengonçadas, suspensas sobre as suas quatro rodas altas, rodando aos solavancos sobre os paralelepípedos, num fracasso tremendo? E os meninos vendedores de cana, entoando musicalmente:
 
- Vai cana, sinhá, vai cana sinhá, vai cana sinhá, bem doce!? E os carregadores de pianos, empunhando o caracaxá tradicional, que vinha desde longe num rumor inconfundível?
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Que vento dispersara aquela gente? para que país teriam fugido todos aqueles tipos a que se habituara na infância? Agora só via caras estrangeiradas, muitos italianos, turcos imundos, quase toda a gente branca, muito luxo, muitas equipagens, cavalos de raça guiados por titulares, com lacaios e grooms ingleses, muitas toilettes vistosas, muitos brilhantes e uma variedade infinita da cores nas bandejas de balas e nas cabeças das burguezinhas pobres, cheias de papelotes!
 
De dia para dia as coisas mudam de aspecto e muda a observação dos olhos que as vêem. Luciano sentia saudades da sua maneira dever e de sentir de outrora! Então as impressões ficavam-lhe sem que o espírito as analisasse, agora submetia tudo a crítica e a comparação estúpida e fatigante, sem conseguir fixar bem no espírito o caráter
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especial do lugar e do povo por que passava.
 
Tinham chegado ao largo da Lapa e encaminharam-se para o passeio. O Rosas retomou o fio da conversa; para ele era ponto de fé: a felicidade no lar era prejudicada pelo marido.
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O Rosas não respondeu; seguiram pela alameda da esquerda até o terraço, fugindo ao povo que se aproximava do restaurant, à espera da música.
 
E foi então à luz das estrelas que tremulava lá em cima entre flocos de nuvens, e ao olhar
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das ondas cá em baixo, que um desfiar do anedotas, de parte a parte, os obrigava muitas vezes a parar e a torcerem-se de riso.
 
Uma hora depois despediram-se. O Rosas ia para um voltarete com amigos e Luciano para o teatrooteatro.