Luciano e o amigo desceram pela rua do Catete conversando e devagar, num exercício de boa digestão.
O Rosas bamboleava o corpo curto e grosso, com o veston azul aberto na frente e as mãos sumidas nos bolsos; o Luciano ia ao lado, distraído, com os braços p'r'as costas e o bengalão suspenso entre as duas mãos.
Os bondes passavam cheios. Em uma ou outra casa iam-se moças à janela, quase todas bonitas, bem vestidas.
Ia caindo docemente a noite. Um propheta corria de lampião a lampião, com a blusa de zuarte flutuante, o varal erguido e o chapéu enterrado até as orelhas.
A rua tinha trechos menos tumultuosos de feição aristocrática, onde as casas não se abriam tão burguesmente à poeira e à curiosidade de fora; mas logo em outro quarteirão, tudo mudava, aspecto de pessoas e de coisas, como se se tivesse dado um salto para outro bairro. Então, em vez de prédios grandes, de cortinas cerradas e plantas ornamentais nas entradas, eram as casas apertadas, desiguais; e, de vez em quando, ou um frege tresandando a azeite e sardinhas, ou uma quitanda apertada, cheirando a fruta apodrecida e a hortaliça murcha. Nesse ponto andavam crianças aos magotes pela calçada, de mãos dadas, embaraçando os transeuntes. À porta de um barbeiro ou de outra qualquer casa de negócio, sufocada por prédios maiores, conversavam algumas pessoas com muitos gestos e poucas risadas.
Luciano prestava atenção às mínimas coisas, querendo em vão comparar o aspecto dessa rua de então, como do tempo em que ali tinha morado, havia largos anos!... A diferença estaria na sua maneira de olhar? perguntava ele a si próprio.
O Rosas conhecia meio mundo, morava por ali havia muito, por isso cumprimentava quase toda a gente; quando o fazia a alguma senhora chic, Luciano não tardava em perguntar-lhe:
- Quem é?
Pelo meio da rua rolavam maciamente os carros particulares, de volta do passeio a Botafogo e em demanda dos lares. O Rosas citava o nome das donas, gente boa, freqüentadora do Lírico e de Petrópolis.
O Luciano pedia-lhe que o apresentasse, não conhecia ninguém, e era sociável, afeito às saias e a conversações com senhoras.
O Rosas sorria.
- Você está-me com cara de conquistador.
- Ora...
- Hoje apresentar a gente um amigo como você em casa de outro... é um perigo... enfim, não direi que...
- Faça-se de puritano!
- E sou; desde que me sucedeu o que você sabe, então, nem se fala!...
- Ora adeus!
Nisso o Rosas apontou para um carrinho elegante e leve, que vinha da cidade guiado por uma moça de claro, airosa, bem sentada na almofada. Como a luz já fosse escassa, Luciano não a pode ver bem. Atrás dela desenham-se as silhouéttes de dois lacaios empertigados.
- Quem é? inquiriu Luciano, reparando para um gesto do Rosas.
- Clara Silvestre... uma ex-atriz do Recreio.
- Parece chic.
- É uma das mais bonitas, aí...
- Apresenta-me?
- Sem escrúpulo.
Houve um sorriso. Passavam pela esquina de Santo Amaro. Luciano parou, mostrando um prédio em frente.
- Já morei naquela casa... era então rapazinho, andava às voltas com exames de francês.
- Você não foi nascido e criado em Minas?
- Não. Ali ao lado era uma padaria e aqui, nesta esquina, um armazém.
- Já as reminiscências vão tomando um caráter mais positivo. Mas, que diabo! Não me lembra que seu pai tenha morado aqui!...
- Pois não, foi só depois do meu nascimento que meu pai se resolveu a ir para a província; voltamos de lá por doença de minha mãe. No fim de dois anos ela morreu, meu pai regressou para a província e eu fui então morar com o nosso correspondente, o Gustavo Ferreira...
- Tio da Simões...
- Sim, tio da Simões...
- Conheci-o. Morreu, sabe?
- Disse-mo a sobrinha.
- Ah... Ela pô-lo ao corrente de todos os sucessos... Falaram do passado?
- Um pouco...
- Devia ter sido linda, a Simões.
- Esplêndida! e depois viva, alegre!... parece muito mudada. Era de meter medo!... Hoje não é a mesma... ainda assim... não lhe digo nada...
- É chic. Agora, fora de caçoada, não se ponha a brincar com o fogo inutilmente! A Simões é seria; você deve evitar a convivência, visto não querer casar. Conheço bem a nossa sociedade... isto está feio...
- Que mania!
- Tome sentido!
- Que diabo! Ernestina é uma viúva, não é mulher que se deixe iludir... Será capaz até de me iludir a mim!
- Qual! E quer saber uma coisa? Em todo este desmando em que vivemos, eu não culpo as mulheres, culpo os homens. Elas são boas.
- Ora essa!
- Se você quer a Simões, case-se com ela.
- Isso não.
- Então não volte a Santa Tereza.
- Eu tenho muita prática... conheço bem as mulheres!...
- Pode enganar-se uma vez. Você agora está em Paris...
- Parisiense ou não, a mulher é sempre a mesma!
- Pois sim! ouça o meu conselho!
- Ora!
A noite tinha caído completamente. Durante a travessia do cais da Glória, sentiram frio. O Rosas falava sempre, Luciano mal o ouvia, com o pensamento afastado.
Atravessavam agora a rua da Lapa.
Moças cheias de fitinhas e de papelotes recostavam-se ao peitoral das janelas baixas; na calçada os moleques assobiavam o Chegou, chegou, chegou, e os baleiros roçavam pelas crianças, oferecendo-lhes balas. Ali não podiam conversar, a calçada era estreita, muito atravancada; Luciano caminhava atrás do Rosas, reparando para os tipos, admirado de ver tão poucas pretas. Uma ou outra mulata cruzava-se de vez em quando no caminho, carregada de essências e de laços, muito espartilhada, exagerando a moda do vestido e do penteado. Onde se teriam metido os pretos do ganho, os minas, de cara retalhada, rodilha na cabeça, cesto na mão? E o fervilhamento de crioulas na rua, de vestido de riscado e manga curta, mais a quantidade de formosas baianas, muito limpas, como seu belo traje flamante, a camisa de renda, o turbante airoso, o pescoço e os braços cheios de contas de vidro e de corais, a manta riscada, a tiracolo, a sala muito franzida rebolando aos movimentos dos sólidos quadris carnudos, e as chinelinhas tac-que-tac nas calçadas?
E os chins de trança longa, roupa de algodão grosso, vara no ombro gigos pendentes, percorrendo as ruas num passo apressado e ferindo o ar com a sua voz achatada - camalon - péce!? E os crioulos que vendiam calçado em caixas envidraçadas, apregoando, numa melopéia grave e prolongada - Sapato! E as gôndolas, diligências desengonçadas, suspensas sobre as suas quatro rodas altas, rodando aos solavancos sobre os paralelepípedos, num fracasso tremendo? E os meninos vendedores de cana, entoando musicalmente:
- Vai cana, sinhá, vai cana sinhá, vai cana sinhá, bem doce!? E os carregadores de pianos, empunhando o caracaxá tradicional, que vinha desde longe num rumor inconfundível?
Que vento dispersara aquela gente? para que país teriam fugido todos aqueles tipos a que se habituara na infância? Agora só via caras estrangeiradas, muitos italianos, turcos imundos, quase toda a gente branca, muito luxo, muitas equipagens, cavalos de raça guiados por titulares, com lacaios e grooms ingleses, muitas toilettes vistosas, muitos brilhantes e uma variedade infinita da cores nas bandejas de balas e nas cabeças das burguezinhas pobres, cheias de papelotes!
De dia para dia as coisas mudam de aspecto e muda a observação dos olhos que as vêem. Luciano sentia saudades da sua maneira dever e de sentir de outrora! Então as impressões ficavam-lhe sem que o espírito as analisasse, agora submetia tudo a crítica e a comparação estúpida e fatigante, sem conseguir fixar bem no espírito o caráter especial do lugar e do povo por que passava.
Tinham chegado ao largo da Lapa e encaminharam-se para o passeio. O Rosas retomou o fio da conversa; para ele era ponto de fé: a felicidade no lar era prejudicada pelo marido.
- Somos uns viciosos acrescentava ele - pensamos em duas coisas - roleta e mulheres; ainda no Rio não é nada, mas nas províncias? Nós damos às nossas esposas o luxo que podemos, mas não as associamos aos nossos empreendimentos, não as fazemos entrar em nosso espírito. Compreende você? São objetos de luxo e de comodidade... também percebendo isto mesmo, algumas delas, desde que não nos faltem botões na roupa branca e o almoço à hora certa, não têm muito escrúpulo em nos retribuírem as mentiras que lhes pregamos.
- Homem! Você é um original! Se outro o dissesse...
- Isto não quer dizer que a maioria das famílias aqui não sejam honestíssimas!
- Honestidade é palavra que se não usa em países civilizados...
O Rosas não respondeu; seguiram pela alameda da esquerda até o terraço, fugindo ao povo que se aproximava do restaurant, à espera da música.
E foi então à luz das estrelas que tremulava lá em cima entre flocos de nuvens, e ao olhar das ondas cá em baixo, que um desfiar do anedotas, de parte a parte, os obrigava muitas vezes a parar e a torcerem-se de riso.
Uma hora depois despediram-se. O Rosas ia para um voltarete com amigos e Luciano para oteatro.